Vou votar no Lula e no PT, sim, basicamente porque, como diz aquela letra do Caetano, a vida é real e de viés. Isso (a frase) vale tanto para os descaminhos (vieses, se é que o plural existe) do PT quanto para o caráter conflituoso, difícil, da minha escolha. Quero dizer que sobretudo, a minha escolha se distingue justamente da "certeza dos puros" que caracteriza os que estão condenando o PT em voz alta e por exemplo votando no PSOL, ou fazendo da bandeira da ética (por incrível que pareça) uma justificativa para votar no PSDB. É uma escolha ao lado dos que, escolhendo o caminho do fazer, nem sempre fazem certo, têm dúvida, perderiam uma esgrima verbal porque sua posiçção, como a vida, é cheia de contradições internas.
Você sabe que sou PT há 20 anos, militei MESMO no Partido, na construção de núcleos, da democracia interna etc. O que você não sabe é que desde 1998 me afastei da militância interna, partidária propriamente dita, justamente porque vi e vivi, concretamente, que os métodos da Direção Nacional (Lula e o núcleo em torno dele: Zé Dirceu, Genoino etc.) não eram mais os métodos da democracia e da lisura acima de tudo. Eram, já, na política de alianças e na forma de ganhar as votações internas no partido, caracterizados pelo "os fins justificam os meios". Ainda assim, me afastei da militância partidária, mas não me desfiliei nem deixei de votar. Dizíamos (não eu, mas muitos, em quem eu confiava, com quem eu aprendia) que esses métodos, mesmo que nossos líderes acreditassem que os levariam ao poder com a intenção de mudar a cara do Brasil e da política, esses métodos em si mesmos já eram um golpe fatal nessa possibilidade de, chegando ao poder, mudar de fato a política. Cobrariam seu preço, adiante - pelos tipo de aliança que ensejavam, por se autonomizarem do controle e da retificação pela base social ou do partido etc. Dito e feito. Mas apesar de dizermos isso na época, não saímos do PT, porque reconhecíamos no PT, e mesmo naquelas pessoas que condenávamos, os únicos atores sociais capazes de fazer a política mudar um pouquinho, avançar, arejar um pouco - levar, em última instância, com todos os vícios e desvios adquiridos, a realidade e os interesses da maioria do povo ao centro dos acontecimentos, das reflexões, das intenções do poder e da administração pública. Resumindo: quando todos comemoramos (todos: inclusive os que hoje estão no PSOL, no PPS, no PDT...) a eleição do Lula em 2002, não éramos inocentes em relação às mudanças que ele e o PT haviam sofrido. Não ignorávamos nem as concessões éticas nos métodos políticos, centro dos escândalos atuais, que concernem aos métodos de angariar apoio no Congresso e financiamento de campanha mas não envolvem nenhuma denúnica de enriquecimento pessoal de petistas graúdos (embora não soubéssemos que chegava ao absurdo da compra de apoio em dinheiro); nem tampouco as concessões nas propostas econômicas, que meses antes da eleição foram objeto da famosa Carta aos Brasileiros, em que Lula afirmava que iria manter a política macro-econômica dos governos FHC. Não quero dizer com isso que somos obrigados a aprovar nem uma nem outra coisa. Mas recuso veementemente assumir uma posição de "puro", escandalizado, como assumiram Cristovam Buarque, Heloísa Helena, Roberto Freire e milhares de amigos meus (estou falando apenas dos esquerdistas - não vou nem mencionar a hipocrisia do PSDB e do PFL). Como disse o Ciro Gomes, em dezembro de 2005, no auge da crise do mensalão (permita-me o recorta e cola): "depois de 20 anos vendendo a imagem de monopolista da ética e verdugo das contradições morais, o PT viu-se apanhado por uma contradição da vida política real. Esta imagem, construída durante anos, fez com que a esmagadora maioria da população acreditasse na possibilidade de um governo de anjos emergir ao poder. Ora, este é um fato sem precedentes na história. Nenhuma obra humana na vida pública, em nenhum lugar do mundo, em nenhuma cultura, em nenhum momento da história, aconteceu sob um governo sem falhas. E isto se deve ao fato, que temos que encarar, de que a relação entre dinheiro e política nunca foi resolvida."
Veja bem, espero que adiante eu consiga deixar claro que não estou dizendo que vou votar no Lula porque todo mundo faz o que ele fez. Estou dizendo que vou votar no Lula porque, apesar de ter feito o que ele fez nesse âmbito, ele também fez muito mais. Num certo sentido, acho que, numa certa medida, naquilo que interessa aos mais pobres, o governo dele fez o que prometeu. Se a gente assume uma posição realista (não conformista, condescendente nem cínica), a gente passa a trabalhar com o os problemas reais e os limites e as possibilidades reais que temos de enfrentá-los. O problema de "mudar de bonde" agora, como você sugeriu, é o conforto que tem nesta posição: o conforto de continuar poder dizendo que não tem nada a ver com isso, como se na sua vida pessoal você jamais tivesse sido confrontado com uma situação em que não estava claro para você o que é certo, em que não havia contradições insolúveis, em que você não pecou por covardia ou omissão. Mas, sobretudo, o problema e o conforto maior de que, assim, se mantém uma crença de que há um "bonde" de puros, onde não há contradições, onde ninguém, em nenhum momento, cedeu a nenhum egoísmo ou vileza. O PSOL, por exemplo, tem pessoas que, para defender os privilégios dos quais certa parcela do funcionalismo público não abre mão, conduzem greves, por exemplo, no INSS ou nas universidades públicas nas quais o único prejudicado é a população que precisa do serviço público. O PDT tem, no meu estado e na minha área de atuação profissional, um deputado que é apoiado pelos donos de hospital psiquiátrico privado que ganham dinheiro do SUS à custa de manter doentes mentais isolados sem acesso ao tratamento que os levaria à alta e à reinserção social, e coloca seu mandato em defesa do velho status quo do velho modelo psiquiátrico que estamos a duras penas conseguindo transformar. O PFL não preciso falar. O PSDB comprou votos para aprovar a reeleição com a excrescência dela beneficiar o então presidente, mas impediu a CPI, como aliás o Alckmin fez recentemente em SP. O slogan do Gabeira na propaganda de televisão é "precisamos acabar com a corrupção que tomou conta do Brasil nos últimos quatro anos". Peraí!? Nos últimos quatro anos?! Ou nos últimos quatrocentos? Dizer isso é pegar carona numa onda fácil, ao preço de consentir em participar de um reducionismo que é falso, e não é ingênuo, pois atende a interesses bem claros. Como disse o Jorge Bornhausen, presidente do PFL, no auge do mensalão, ano passado, "agora vamos varrer esta raça pelos próximos 30 anos".
Você sabe quem é o Franklin Martins. Participou do seqüestro do Embaixador americano em 69, hoje é jornalista, era o comentarista de política do Jornal Nacional, do Jornal da Globo e da Globonews – até não ter o seu contrato renovado no começo deste ano por não abordar o mensalão do jeito que a Globo queria. Ele é o entrevistado da edição deste mês da Caros Amigos, revista que você deve conhecer. Nunca foi petista. Infelizmente os poucos trechos da entrevista que estão no site não são expressivos do essencial do que ele diz. Tem uma questão que ele aborda na entrevista a partir de um fenômeno que eu acho que toca no sentimento que você expressou no seu e-mail e que é o teu, o meu, o de todo mundo, que é o que é um absurdo votar num governo com tantos escândalos. A questão que ele aborda é o fato de que essa opinião é a dos segmentos mais informados (a classe alta e a classe média mais intelectualizada), mas, ao contrário das outras eleições, a opinião dos "formadores de opinião" não está formando a opinião dos menos informados. Não está acontecendo o efeito "pedra no lago": a pedra cai na água e as ondas vão se alastrando concentricamente. Dessa vez não, e aí as classes letradas dizem: as classes desinformadas foram compradas, cegadas, pelo assistencialismo e pelo populismo, é o voto dos grotões, dos que se agarram às migalhas do Bolsa Família. Pois bem, ele diz que essa leitura é preconceituosa, porque atribui a resistência das classes baixas em seguir a opinião das classes altas a uma espécie de inferioridade e ou deficiência das classes baixas. Segundo ele, a razão dessa insistência dos pobres em apoiar o Lula está no seguinte: a vida dos pobres melhorou no governo dele. Algo como: "vocês da classe média dizem que eu não posso votar nele, mas a minha vida está melhor hoje em dia e eu quero discutir isso também. Não sou refém apenas dos seus valores morais" (e moralistas também). Como ele informa: o BNDES abriu financiamento para 300.000 computadores pessoais de até R$1.400,00 reais – para quem? Classe C. Segundo dados de todos os jornais, 6 milhões de pessoas passaram da classe D para a C (10% do mercado brasileiro). Ele diz que isso é mais do que assistencialismo e que sobretudo o importante é respeitar e entender o fato de que há aí um novo setor "formador de opinião" - e que isso é resultado do fenômeno Lula, inclusive no seu aspecto simbólico ou carismático. Ele diz, por exemplo, que os jormais dirigidos às classes A e B não crescem há anos, enquanto nascem e crescem inúmeros jornais dirigidos à classe C, o que é sinal de que há mais gente se incorporando à cidadania e sobretudo não nos permite reduzir as intenções de voto no Lula a "coisa de ignorante". Enfim, não quero ficar fazendo propaganda oficial, só vou citar mais um dado: o salário mínimo hoje compra 70% há mais de alimentos do que há 4 anos!
Quanto à política: no governo FHC houve as denúncias de compra de votos de deputados para aprovar a reeleição, e o governo conseguiu impedir que houvesse CPI. No governo Lula, as CPIs funcionaram livremente. No governo FHC, a Polícia Federal fez uma prisão importante envolvendo assessores de candidato, com conseqüências eleitorais: no momento em que a Roseana Sarney, do PFL, ultrapassou o Serra, candidato do governo, a PF fez um flagrante de dinheiro no comitê dela, que acabou com a candidatura dela, deixando a do PSDB como única viável no seu espectro político. Atualmente, a PF faz flagrante e prende assessores de quem? Do candidato do governo ao qual ela está subordinada. É uma diferença, não?
Veja, eu também estou decepcionado com o governo Lula. Esperava que ele ousasse em diversos âmbitos: mudasse a política macro-econômica (não mudou, a meu ver infelizmente, limitando-se a ajustá-la para produzir os resultados que citei acima, e alguns outros); elevasse o nível ético e de debate da atividade política (foi seu pior aspecto); produzisse inclusão social, tanto econômica quanto de participação mais geral na cidadania (fez, em alguma medida); e recuperasse o estado brasileiro, que a ditadura militar tornou ineficiente e a serviço de interesses privados, mas por outro lado forte e nacional/nacionalista, e o governo FHC tornou "mínimo", isto é, incapaz de exercer qualquer papel de intervenção social (também fez, em alguma medida, mas foi tímido, por sistematicamente recuar diante da grita da opinião pública "moderna e liberal"). Não estou votando no PT como quem diz ou pensa que "tem que ser assim mesmo". Meu candidato a Deputado Estadual, o Alessandro Molon, é um jovem de 34 anos que tem sustentado uma discussão interna sobre os rumos e os métodos do próprio partido, infelizmente agora não mais contando com o Chico Alencar, o Leandro Konder, o Carlos Nelson Coutinho, que militavam com ele e saíram. Tenho a expectativa de que este segundo mandato dele seja um canal por onde se possa ter uma intervenção na vida interna do partido que tenha conseqüências, já que os núcleos, como os que tínhamos, não apitam mais nada. Pode ser que não dê, e tenhamos que fazer o que você sugeriu. Estive por sair do PT diversas vezes, e pode ser que o faça um dia. Mas outro dia ouvi uma passagem do Mao Tsé Tung que me foi inspiradora: perguntaram a ele o que ele achava da Revolução Francesa, e ele falou: é um fato ainda muito recente para podermos ter dele a real perspectiva histórica. Não poderemos nem devemos esperar 200 anos para avaliar definitivamente o PT, mas não quero colaborar para que 4 anos espremidos entre 50 de PSDB sejam nossa única chance. Digo 50 porque se volta hoje o PSDB, daqui a 4 anos tem a possível reeleição do Alckmin, depois 8 anos de Aécio, depois... como disse o Bornhaunsen, "essa raça" terá sido banida por pelo menos 30 anos. Não com a minha ajuda.
2006-10-10
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