Um dicionário organizado pela Igreja
Católica afirma, entre outras pérolas,
que homossexualidade é doença
por Mario Sabino
Novecentas páginas, 78 verbetes. Essas são as dimensões da mãe de todas as bombas religiosas que o Vaticano acaba de despejar nas livrarias italianas. Seu título original é Lexicon – Termini Ambigui e Discussi su Famiglia, Vita e Questioni Etiche (Dicionário dos Termos Ambíguos e Discutidos sobre Família, Vida e Questões Éticas). Organizado pelo Conselho Pontifício para a Família, um dos braços da Cúria Romana, o livro é de uma clareza contundente a respeito do que a Igreja Católica pensa sobre questões como aborto, contracepção, divórcio, homossexualidade e sexo seguro. Não há nada que não tenha sido já afirmado e reafirmado pelo papa João Paulo II, em suas condenações do que considera a dissolução familiar perpetrada pela modernidade. Mas o Lexicon vai além: tenta revestir o que é puro dogma católico com explicações que oscilam entre a pseudo-ciência e a sociopsicologia de rodapé.
No verbete dedicado ao sexo seguro, decreta-se, talvez por inspiração do Espírito Santo, que essa é uma categoria que não existe. A intenção, aqui, é censurar o uso de preservativos (que, assim como a adoção de outros métodos contraceptivos artificiais, significa para a Igreja um passaporte para o inferno) e recomendar a abstinência sexual para quem não goza das delícias beatíficas do casamento monogâmico. Ao fulminar um anátema contra a camisinha, o autor do verbete diz que ela reduz a apenas 10% o risco de contrair Aids numa relação. "O que diríamos de um modelo de avião que caísse em 10% dos vôos?", compara. Trata-se de uma mentira: o uso de camisinha previne o contágio por HIV em 99% dos casos. Ou seja, o risco é de 1%, desprezível do ponto de vista estatístico.
O capítulo mais espantoso, no entanto, é o que discorre a respeito dos homossexuais. O Lexicon utiliza conceitos de um ateu convicto, Sigmund Freud, o pai da psicanálise, para concluir que a homossexualidade é um "conflito psíquico não resolvido que a sociedade não pode institucionalizar" – uma doença, enfim – e que o termo "homofobia" é uma "palavra criada por associações homossexuais para estigmatizar todos aqueles que se perguntam sobre o assunto e não aceitam a banalização e a 'normalização' da homossexualidade". Realmente Freud, que não se aprofundou muito no tema, formulou a hipótese de que a homossexualidade (em especial, a masculina) fosse fruto de uma diferente elaboração do complexo de Édipo. Mas jamais a timbrou como "conflito psíquico não resolvido". É bom lembrar ainda que, há mais de dez anos, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças – com o aval de médicos e psicólogos. Quanto ao termo "homofobia", ele surgiu para designar a perseguição concreta que os homossexuais ainda sofrem em diversas esferas da sociedade. Como a que o Vaticano agora promove contra eles.
O Lexicon – um monumento à intolerância visto com reservas até mesmo dentro do Vaticano – é a obra magna do cardeal colombiano Alfonso López Trujillo, presidente do Conselho Pontifício para a Família e uma das personalidades de maior prestígio da Cúria Romana. Na década de 80, ele ajudou a torpedear a Teologia da Libertação (o que não foi exatamente ruim, convenhamos) e foi acusado por seus inimigos de usar métodos truculentos para neutralizar padres e bispos da Colômbia que não compartilhavam de seus pontos de vista. Seu trabalho frente ao Conselho Pontifício para a Família é motivo de admiração entre os ultraconservadores e o transformou em papável bem cotado. Deus nos livre.
Fonte: Revista Veja
2007-01-24
05:31:49
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