A insônia primária no contexto das dissonias
Dentro das alterações do sono, encontram-se os transtornos primários do sono. A etiologia desses últimos não se relaciona com uma afecção psiquiátrica, uma doença médica ou dependência a um fármaco,1 o que leva a sugerir que poderia estar ligada a alterações dos mecanismos que regulam o sono e a vigília, agravados com freqüência por fatores de condicionamento.
Os transtornos primários do sono se subdividem em dissonias (caracterizadas por produzir sonolência diurna excessiva ou dificuldade para iniciar e/ou manter o sono) e em parassonias (caracterizadas pela presença de condutas anormais associadas ao sono, tal como é o caso do sonambulismo e sonilóquia).
Características clínicas da insônia primária
Dentro das dissonias se encontra a insônia primária, cujas características fundamentais são a dificuldade para iniciar ou manter o sono e a sensação de não ter tido um sono reparador durante período não inferior a 1 mês. O transtorno do sono pode dar lugar a um mal-estar clinicamente significativo ou a uma deterioração social no trabalho ou em outras áreas importantes de atividade do paciente.
Freqüentemente o paciente com diagnóstico de insônia primária apresenta dificuldade para começar a dormir e acorda seguidamente durante a noite. É menos freqüente o paciente se queixar unicamente de não ter um sono reparador, isto é, ter a sensação de que o sono foi inquieto e superficial.
A insônia primária se associa habitualmente a um aumento do nível de alerta fisiológico e psicológico durante a noite, junto a um condicionamento negativo para dormir. A preocupação intensa e o mal-estar relacionados com a impossibilidade de dormir dão lugar a um círculo vicioso, pois quanto mais o paciente tenta dormir, mais frustrado e incomodado se sente, o que acaba dificultando o sono. Com freqüência os pacientes dizem dormir melhor fora do seu quarto e do seu ambiente. A insônia crônica pode acarretar uma diminuição da sensação de bem-estar durante o dia, caracterizada pela alteração do estado de ânimo e da motivação, diminuição da atenção, da energia e da concentração e aumento da sensação de fadiga e mal-estar.
Embora existam sintomas de ansiedade ou de depressão, eles não permitem estabelecer o diagnóstico de um transtorno mental. No entanto, a alteração crônica do sono, que caracteriza a insônia primária, constitui um fator de risco para o aparecimento posterior de um transtorno de ansiedade ou depressão.2 Os pacientes que apresentam insônia primária crônica utilizam de maneira inadequada hipnóticos e álcool para favorecer o sono, e bebidas com cafeína ou outros estimulantes para combater a fadiga diurna.
A Classificação Internacional dos Transtornos do Sono3 considera a insônia psicofisiológica e a insônia idiopática dentro das dissonias. Do ponto de vista clínico e polissonográfico existe uma grande semelhança entre essas entidades clínicas e a insônia primária. Deve-se assinalar que na revisão sobre o tema, realizada por Reynolds et al4 antes do aparecimento do DSM-IV, os autores concluíram que a evidência empírica existente sobre a confiabilidade e validade desses subtipos de transtornos do sono era limitada, e que não existia uma base firme para abandonar o conceito de DSM-III-R da insônia primária.
Descobertas no laboratório do sono
A polissonografia indica a existência de alterações da indução, da continuidade e da estrutura do sono. Dessa maneira, a latência para o começo da etapa 2 do sono não-REM supera normalmente 30 minutos. O tempo de vigília logo após o começo do sono é superior aos 60-90 minutos e o número de vezes em que a pessoa acorda durante a noite é com freqüência maior que 10. A duração do tempo total do sono não supera 5-6 horas e a eficiência do sono (relação entre o tempo que o paciente permanece deitado e o tempo durante o qual dorme) é geralmente inferior a 80-85%.5
Relação da insônia primária com a idade e o sexo
A insônia primária é muito pouco freqüente durante a infância e a adolescência. Aparece geralmente no adulto jovem (entre 20 e 30 anos) e se intensifica gradativamente. Com freqüência, o paciente procura ajuda médica vários anos depois da insônia ter iniciado.
A insônia primária é mais freqüente na mulher. Parece existir uma predisposição genética feminina para um sono superficial e alterado, embora até o presente não tenham sido feitos estudos genéticos e/ou familiares para resolver o problema.
Desenvolvimento da insônia primária
Os fatores que desencadeiam a insônia primária podem ser diferentes daqueles que mantêm o processo. Na maioria dos casos, o início é repentino, coincidindo com uma situação de estresse psicológico (tristeza, afastamento de um familiar), social (perda do emprego, dificuldade econômica) ou médico (iminência de uma intervenção cirúrgica). A insônia primária persiste geralmente muito tempo depois do desaparecimento da causa original, devido à presença de um nível elevado de alerta e de um condicionamento negativo.
Incidência da insônia primária
Coleman et al6 analisaram 5.000 registros polissonográficos correspondentes a 11 Centros para o Estudo e Tratamento dos Transtornos do Sono. As alterações do sono e da vigília foram diagnosticadas de acordo com a nosologia proposta pela Associação dos Centros para o Estudo do Sono7 e o sistema de classificação proposto pelo DSM-III.8 A amostra de 26% apresentava dificuldade para o início e a manutenção do sono (insônia). Aproximadamente 50% desses pacientes tinham um diagnóstico maior de depressão. Desses pacientes com insônia, 15% eram portadores de uma insônia psicofisiológica (que foi assimilada à insônia primária).
Mais recentemente, Buysse et al9 estudaram 216 pacientes que se queixavam de insônia e caracterizaram seu tipo e freqüência de acordo com a Classificação Internacional dos Transtornos do Sono,10 o DSM-IV1 e o ICD-10.11 De acordo com a Classificação Internacional dos Transtornos do Sono, o diagnóstico mais usual foi a insônia associada a um transtorno do humor (32,2%), seguido de uma insônia psicofisiológica (12,5%). Com relação ao DSM-IV, os diagnósticos mais freqüentes foram de insônia relacionada à outra afecção psiquiátrica (44% dos casos) e de insônia primária (22,2% dos pacientes). Pode-se concluir, de acordo com estudos realizados em centros especializados, que entre 12,5% e 22,2% dos pacientes com insônia crônica apresentam um diagnóstico de insônia primária crônica.
Diagnóstico diferencial
A insônia primária deve diferenciar-se de:
1) Higiene inadequada do sono (ver mais adiante).
2) Transtorno afetivo. Isso é especialmente difícil na depressão "mascarada" (quando o paciente não tem a sensação consciente de tristeza ou de falta de esperança). A diferença se estabelece com base na presença de signos da depressão, como o despertar precoce na madrugada, a anorexia, a diminuição da libido, a variação diurna do humor (pior durante a manhã), a constipação etc. Também devem ser levados em consideração a existência de eventos recentes que possam levar à depressão e de indicadores biológicos como a diminuição da latência para o começo do sono REM.
3) Transtorno de ansiedade generalizada. Esse diagnóstico se realiza quando os sintomas psicológicos e somáticos da ansiedade são predominantes.
Tratamento da insônia primária
A insônia primária é um transtorno multidimensional e seu tratamento deverá combinar medidas não farmacológicas e farmacológicas. As estratégias não farmacológicas incluem a higiene do sono e a terapia cognitiva e de conduta.
Em relação à higiene do sono, os pacientes serão aconselhados a: realizar exercícios físicos exclusivamente durante a manhã ou nas primeiras horas da tarde; comer uma refeição leve acompanhada de ingestão de água limitada durante o jantar; evitar a nicotina, o álcool e as bebidas que contenham cafeína (café, chá, infusão de erva-mate, bebidas "cola" e inclusive o guaraná); providenciar que a cama, o colchão e a temperatura do quarto sejam agradáveis; regularizar a hora de deitar e levantar; utilizar o quarto somente para dormir; e manter a atividade sexual.
Terapias de conduta têm sido desenvolvidas durante os últimos anos para ajudar o paciente com insônia primária. As mesmas se dirigem a reduzir a ansiedade e a apreensão que, embora em grau reduzido, incidem marcadamente no quadro clínico.12 A forma de terapia de conduta utilizada com maior freqüência é a de relaxamento que compreende uma série de procedimentos, como relaxamento muscular, meditação transcedental, ioga, biorretroalimentação e controle de estímulos. Pode-se ainda acrescentar a terapia de conduta.13 Segundo Montgomery et al,14 os tratamentos baseados unicamente no relaxamento muscular são de êxito limitado, enquanto os que se dirigem a melhorar o desamparo do paciente e a diminuir o alerta emocional e cognitivo são mais efetivos.
O uso de fármacos hipnóticos desempenha um papel importante na administração da insônia primária. Diversos tipos de medicamentos têm sido utilizados como hipnóticos durante os últimos anos. Os derivados benzodiazepínicos foram introduzidos na década de 70 e têm sido indicados amplamente durante os últimos 25 anos.15 Recentemente três compostos não relacionados estruturalmente com os benzodiazepínicos passaram a estar disponíveis para o uso clínico. Esses são, respectivamente, a zopiclona (derivado da ciclopirrolona), o zolpidem (derivado da imidazopiridina) e o zaleplon (derivado da pirazolopirimidina). O midazolam (derivado benzodiazepínico) e o zaleplon são fármacos de vida média de eliminação plasmática ultracurta (1 hora), enquanto o triazolam (derivado benzodiazepínico), o zolpidem e a zopiclona têm vida média curta (2h a 3,5h). Por outro lado, o temazepam e o flunitrazepam (derivados benzodiazepínicos) têm vida média de duração intermediária (10h a 20h).16
Independentemente de sua estrutura química, todos os hipnóticos mencionados diminuem a latência para o início da etapa 2 do sono não-REM, o número de vezes que o paciente acorda durante a noite e o tempo de vigília logo após o início do sono em um paciente com insônia primária. Em geral, o incremento do tempo total de sono obtido com a zopiclona, o zolpidem e o temazepam oscila entre 6h e 8h. Por outro lado, o midazolam e o zaleplon incrementam a duração do sono no máximo de 2h a 3h, o que é um grave inconveniente para o paciente, uma vez que ele acorda no meio da noite sem poder conciliar o sono.
Todos os hipnóticos benzodiazepínicos diminuem acentuadamente o sono com ondas lentas (sono profundo) e o sono REM (com sonhos). Além disso, depois de algumas semanas de tratamento, começa a se observar a tolerância ao efeito hipnótico em uma porcentagem elevada de pacientes. A retirada brusca dos derivados benzodiazepínicos de ação hipnótica com vida média curta ou intermediária (midazolam 15 mg, triazolam 0,25 mg, flunitrazepam 1 mg) dá lugar a uma reincidência da insônia (acima dos valores anteriores ao início do tratamento) que pode persistir durante 2 ou 3 noites. Outra complicação freqüente durante o uso prolongado de benzodiazepínicos é o desenvolvimento de uma dependência aos fármacos e de um vício não inferior a 30-45% dos pacientes com insônia primária.
Os hipnóticos recentemente introduzidos (zopiclona 7,5 mg, zolpidem 10 mg) não modificam a estrutura do sono, ou seja, não diminuem o sono com ondas lentas e o sono REM. A reincidência da insônia logo após a suspensão brusca do tratamento é muito pouco freqüente, bem como o desenvolvimento de uma dependência aos fármacos.17
Do ponto de vista subjetivo, esses fármacos diminuem o tempo de indução do sono, aumentam sua duração e dão lugar a um sono reparador e tranqüilo.
Entre os efeitos adversos, observados durante a administração de fármacos hipnóticos, incluem-se a sonolência e a fadiga durante as primeiras horas da manhã. Os hipnóticos benzodiazepínicos alteram a memória anterógrada e podem afetar negativamente a esfera cognitiva e induzir disartria e ataxia em pacientes mais velhos e de terceira idade. A zopiclona causa o aparecimento de gosto amargo na boca, o que freqüentemente obriga a abandonar seu uso.
Embora a melatonina não seja um hipnótico, mas um ressincronizador do sono, tem mostrado certa efetividade no tratamento da insônia primária leve ou moderada do idoso. Em um estudo recente, no qual se incluíram pacientes de terceira e quarta idade com insônia primária crônica, a melatonina em doses de 3 mg deu lugar a um aumento clinicamente significativo do tempo total do sono em 5 de cada 10 pacientes.18
Não existem normas estritas sobre a duração do tratamento da insônia primária crônica com fármacos hipnóticos. Embora alguns autores sugiram que os hipnóticos não devem ser administrados durante períodos maiores de 1 a 2 meses, em muitas circunstâncias é necessário prolongar o tratamento durante meses ou anos. Considera-se que privar pacientes com insônia primária severa de uma medicação efetiva, especialmente os hipnóticos que apareceram recentemente, pode alterar significativamente a qualidade de vida familiar, social e do trabalho, e levar em médio prazo ao aparecimento de um transtorno de ansiedade ou uma síndrome depressiva.
Uma alternativa ao tratamento farmacológico contínuo é o uso intermitente de um fármaco hipnótico ("em demanda") de 4 a 5 dias por semana. Essa forma de administrar o hipnótico pode ser aceitável em pacientes com insônia primária leve ou moderada. Fármacos como o zolpidem estão especialmente indicados para esse tipo de tratamento, uma vez que a propensão a uma reincidência da insônia, quando sua administração é suspensa durante 1 a 2 dias, é mínima.
ok
2006-12-23 06:23:24
·
answer #2
·
answered by M.M 7
·
2⤊
0⤋