Entre setembro de 1991 e janeiro de 2001, realizaram-se 152 transplantes hepáticos em adultos (idade > 18 anos) no Serviço de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Em 20 desses 152 transplantes a etiologia da doença hepática foi cirrose alcoólica, correspondendo a 13,8% das indicações de TH em adultos no referido Serviço. O diagnóstico de cirrose alcoólica foi feito com base na história de consumo abusivo de álcool (60 g de etanol/dia para homens e 40 g de etanol/dia para mulheres por, pelo menos, 8 anos) na ausência de outras causas de doença hepática, achados laboratoriais e clínicos compatíveis, biopsia hepática compatível com cirrose alcoólica e achados do exame anatomopatológico do fígado nativo retirado no transplante. Todos os pacientes foram submetidos a avaliação psicossocial na fase pré-transplante, sendo exigido período mínimo de abstinência de, pelo menos, 6 meses antes do TH.
As seguintes variáveis pré e pós-transplante foram coletadas na revisão dos prontuários médicos: idade na ocasião do transplante, sexo, grau de disfunção hepática pré-TH de acordo com a classificação de Child-Pugh, presença concomitante de hepatite viral crônica e/ou hepatocarcinoma, tempo de abstinência pré-transplante, sobrevida do paciente pós-transplante, ocorrência de complicações tais como rejeição do enxerto, infecções, complicações técnicas vasculares e biliares, necessidade de retransplante, causas de óbito. O consumo de qualquer quantidade de bebida alcoólica após o transplante foi considerado recidiva e baseou-se na coleta de informações contidas nos prontuários médicos além de: (1) informações fornecidas pelo paciente e/ou familiares através de contato telefônico e/ou pessoal; (2) anormalidades bioquímicas sugestivas de consumo abusivo de álcool (macrocitose e elevação da gama-glutamiltransferase), associadas a anormalidades histológicas compatíveis com lesão pelo etanol.
Até 1998, esquema de imunossupressão primária empregou prednisona, ciclosporina em microemulsão, e azatioprina. Desde 1999 o Serviço passou a adotar como esquema padrão na imunossupressão primária o tacrolimus associado à prednisona com retirada gradual do corticóide. O uso do micofenolato de mofetil foi reservado para casos especiais como resgate de episódios de rejeição e para redução da dose dos inibidores da calcineurina devido à instalação de efeitos adversos intoleráveis atribuídos a esses fármacos.
Análise estatística
Os resultados das variáveis contínuas foram expressos em mediana e variação, e das variáveis categóricas em percentagens. O programa computacional utilizado foi o software Statistic 6.0® para Microsoft Windows®.
DHA representa a segunda principal indicação de TH na atualidade, sendo superada apenas pela hepatite C(4, 12). Antes do advento do transplante, não existia terapia específica para a DHA, com exceção da abstinência alcoólica. Embora esta medida seja o fundamento do tratamento da cirrose alcoólica, sabe-se que seu impacto na sobrevida de portadores de doença hepática avançada é limitado. Nessas circunstâncias, o TH é a única opção que oferece real benefício em termos de sobrevida a longo prazo. O presente estudo, avaliando 20 adultos portadores de cirrose alcoólica e em abstinência de consumo de álcool por pelo menos 6 meses, encontrou sobrevida de 1 e 3 anos pós-TH de 75% e 50%, respectivamente. Esses resultados de assemelham aos encontrados em portadores de outros formas de doença hepática em nosso Serviço (dados não publicados) bem como aos reportados em outros centros transplantadores(1, 2, 7, 8, 9, 10, 13, 16). Segundo a literatura, existem apenas mínimas diferenças quanto à sobrevida do paciente, sobrevida do enxerto e outras avaliações de saúde, quando comparados receptores com doença hepática alcoólica e o restante dos receptores do transplante hepático.
A inclusão da DHA nos programas de transplante hepático sempre sofreu resistência por parte da opinião pública e de segmentos da comunidade médica. O principal argumento utilizado era a grande probabilidade de que índices elevados de recidivismo diminuíssem a sobrevida a longo prazo quer pelo desenvolvimento de lesões graves no enxerto associadas ao etanol, ou devido a outros problemas médicos com uso inadequado de imunossupressores ou complicações associadas ao alcoolismo crônico. Na presente série a taxa detectada de recidiva, definida como consumo de qualquer quantidade de álcool após o transplante, foi da ordem de 15%. Vale mencionar que, como os instrumentos utilizados para coleta de tal informação incluíam análise retrospectiva de prontuários médicos e, quando possível, entrevista ou contato telefônico com pacientes e familiares, é provável que os dados obtidos subestimem a real prevalência de recidivismo.
Muitos estudos a respeito da recidiva do consumo de álcool após o TH têm sido publicados na última década(2, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13). A maioria deles são estudos retrospectivos, com períodos relativamente curtos de acompanhamento (geralmente inferior a 5 anos) e número pequeno de pacientes. Entretanto, algumas conclusões coerentes podem ser extraídas desses estudos. Contestando os baixos índices de recidiva encontrados inicialmente por STARZL et al.(15), provavelmente 30% a 50% dos receptores alcoolistas admitem ou são identificados como tendo consumido alguma quantidade de álcool nos 5 primeiros anos pós-transplante. Muitos dos episódios de consumo de álcool após o TH são eventos isolados, após os quais os pacientes restabelecem abstinência. Felizmente, o uso continuado ou abusivo é muito menos comum, afetando 10% ou menos dos receptores alcoolistas. TANG et al.(17) sugeriram que o intervalo entre o transplante e o retorno ao consumo abusivo de álcool é pequeno, freqüentemente menor que 1 ano.
KUMAR et al.(9) relataram a taxa de 43% de recidiva nos pacientes que bebiam ativamente dentro do 6 meses que antecederam o TH, em contraste com a taxa de 6,7% em pacientes que permaneceram abstinentes por, pelo menos, 6 meses antes do transplante. Outros estudos também confirmaram a correlação entre a duração da abstinência pré-transplante e a recidiva ao alcoolismo subsequente(4).
BRAVATA et al.(3) não encontraram diferença estatisticamente significativa na proporção de receptores de transplante com DHA e não-alcoólica em relação ao relato de consumo de álcool após o TH (4% vs. 5% ao 6º mês e 17% vs. 16% ao 12º mês pós-transplante). Entretanto, entre os pacientes que consumiam álcool após o transplante, receptores com doença hepática não-alcoólica eram mais propensos ao consumo moderado (quatro a sete doses/semana), enquanto aqueles com DHA eram mais sujeitos aos consumo excessivo de álcool (>7 doses/semana). Dois dos três pacientes da presente série, apresentaram uso irregular do imunossupressor após a recidiva do consumo de álcool, um dos quais desenvolveu rejeição crônica tardia, evoluindo com perda do enxerto e óbito. Relatos sobre o uso inadequado do esquema imunossupressor são também encontrados na literatura(10, 17). Um dos pacientes que recidivou precocemente o consumo de álcool, apresentou sepse de origem pulmonar de evolução fatal.
LUCEY et al.(10) e VAILLANT(18) observaram que pacientes com consumo significativo de álcool após TH apresentam maior freqüência de problemas não-hepáticos, tais como pancreatite e pneumonia.
A análise das complicações técnicas e clínicas que ocorreram após o TH no grupo estudado, cuja mediana do tempo de seguimento pós-TH foi de 14 meses, não mostrou índices diferentes dos referidos na literatura médica (Tabela 2). As infecções foram a causa mais comum de óbito após o transplante. Em dois dos seis pacientes que tiveram evolução fatal pode-se considerar que a recidiva do consumo de álcool colaborou para o óbito: um caso em que o uso inadequado dos imunossupressores resultou em rejeição crônica ductopênica e um caso no qual, por recidiva precoce, houve abandono do seguimento e do uso correto dos imunossupressores, havendo instalação de sepse pulmonar e óbito. A freqüência de rejeição celular aguda e crônica foi de 40% e 5%, respectivamente. Vários estudos observaram que pacientes submetidos a transplante hepático devido a cirrose alcoólica apresentam menor freqüência de episódios de rejeição celular aguda do que pacientes que são submetidos a transplantes por outras etiologias. Tais dados podem refletir o estado parcial de supressão da imunidade celular em pacientes com DHA avançada(11).
Os dados do presente estudo permitem concluir que pacientes com doença hepática alcoólica, desde que devidamente selecionados, apresentam índices de sobrevida pós-transplante semelhantes aos encontrados em outras causas de doença hepática. É recomendável que tratamentos de suporte para a dependência química sejam mantidos no seguimento pós-transplante visto que, a recidiva do consumo de álcool pode ter impacto negativo na sobrevida pós-transplante.
2006-09-26 16:03:54
·
answer #5
·
answered by Lindinha 2
·
0⤊
2⤋