No mundo de hoje, todos os dias, 32 milhões de pessoas, por hora, consomem Coca-Cola, e 18 milhões comem um hambúrguer do McDonald's. Além disso, centenas de milhares de pessoas assistem aos filmes produzidos em Hollywood e as mesmas imagens da CNN entram em um bilhão de lares nos mais diversos recantos da terra.
A uniformização dos gostos, dos sabores, do que se consome e do que se deseja parece ser um fenômeno irreversível que aparentemente tem nos levado à uma padronização completa das nossas vidas. Será que o mundo tende a caminhar em uma única direção? Essa é a impressão imediata que se tem da globalização: um fenômeno de standartização de produtos e serviços que abarca os aspectos mais prementes da produção material e do consumo, bem como os aspectos mais subjetivos na construção de um modo de vida.
Entretanto, um olhar mais atento sobre esse processo nos revela que a globalização não é uma estrada de mão única. Nas palavras do sociólogo inglês Anthony Giddens: "Trata-se de um processo que liga localidades distantes, permitindo que eventos locais sejam moldados por eventos que acontecem a milhares de quilômetros de distância e vice-versa". Trata-se, pois, de uma via com muitos acessos, com caminhos e possibilidades tão amplas quanto for o número de pessoas que transitam por elas. Assim, o chamado processo de globalização não é responsável apenas por essa suposta padronização de gostos e pensamentos, ele traz em si também uma enorme diversidade, resultante, em grande medida, dessa relação que se estabelece entre o global e o local. A resultante desse processo nos permite, por exemplo, saborear no almoço a mais tradicional iguaria mexicana, experimentar no jantar pratos da culinária japonesa, ou ainda ter o prazer de degustar um legítimo queijo do interior da França, ou um autêntico presunto de um pequeno produtor de Parma, na Itália.
Essas possibilidades de escolha, embora não distribuídas igualmente entre todos, são cada vez mais comuns. Ao chegar em casa, depois de um estressante dia de trabalho, estando em São Paulo, podemos nos deitar e embalar em uma rede feita no Nordeste e ouvir uma relaxante música brasileira; ou ainda, passeando pelo calçadão de Copacabana, no Rio de Janeiro, tomar um delicioso açaí da Amazônia. Poder experimentar novos produtos, ter acesso a uma diversidade de serviços que, há algum tempo, certamente não seria possível é uma das facilidades que nos é dada por esse fenômeno. Escolher entre a Coca-Cola e o Guaraná, entre o paladar mundial e o paladar local.
Experimentar o sabor do sanduíche que é consumido no mundo todo e o sabor da fruta que só existe na Amazônia é, em síntese, um aspecto que o complexo, e já amplamente discutido, fenômeno da globalização nos possibilita. O filósofo e professor brasileiro Octávio Ianni assinalou que, "Há pouco tempo, a tão temida e discutida globalização, que universalizou e agilizou a informação e o conhecimento, registra um aparente paradoxo - a valorização da cultura local".
Nesse processo, o local e o global passam a apresentar conexões e possibilidades antes inimagináveis. O que antes caracterizava-se como uma ameaça de submissão do local pelo global, passa a configurar-se como possibilidade efetiva de uma inserção competitiva dos pequenos nesse jogo. O "glocal" traduz-se, assim, numa perspectiva que exalta a capacidade do local/tradicional de ser vencedor não só sobre a dimensão global, mas também de ultrapassar a fase industrial ou da mera produção fordista.
Esta constatação abre um amplo leque de oportunidades para as micro e pequenas empresas. Ao estarem imersas no local, estas empresas são detentoras de valores genuínos, próprios daquele ambiente onde atuam e, portanto, encontram-se em condições de agregar aos seus produtos e serviços, valores, imagens e símbolos que os impregnam de densidade cultural. Isso cria oportunidades de serem cada vez mais demandados por um mercado que valoriza além dos aspectos mais tangíveis como preço, qualidade e garantia, outras dimensões, aspectos intangíveis, singulares e inéditos, que possam diferenciá-los e induzi-los a experiências plenas de emoções e significados.
O potencial da diversidade brasileira
Um dos traços mais nítidos da cultura brasileira é a sua diversidade, que se caracteriza como mecanismo pelo qual a nossa identidade se produz e se fortalece. Aliado a isso, as condições geográficas, climáticas e históricas criaram elementos que definem um jeito brasileiro de ser como uma forte marca cultural.
As dimensões continentais, a própria mistura de raças, a existência de muitas culturas, a existência de populações indígenas em estado primitivo e de pessoas com acesso a padrões de modernidade e desenvolvimento comparáveis àqueles das sociedades economicamente mais desenvolvidas criam no Brasil fortes contrastes que não encontram paralelo no mundo.
O brasileiro não é o resultado apenas da miscigenação de três raças, somos hoje um povo formado pela autêntica diversidade de representantes de todo o mundo. No Brasil, existe a cultura do imigrante europeu, mas também a crença dos negros que vieram da África e também a força dos asiáticos que aqui escolheram viver, e ainda somos marcados pela presença do índio na floresta, enfim, pelos mais diversos matizes de cores, raças, credos.
Não podemos afirmar que uma pessoa de olhos puxados não seja um brasileiro, assim como dizer, por exemplo, que as tradições cultivadas pelos habitantes de vários recantos do Sul do Brasil, que organizam festas ao estilo de seus países de origem, não fazem parte da nossa cultura. Pelo contrário, fazem sim e contribuem para enriquecê-la. Podemos dizer que a Oktoberfest de Blumenau é tão brasileira quanto o carnaval do Rio de Janeiro. Essas duas manifestações fazem parte de nossa história e de nossa formação cultural.
Somos marcados pela nossa capacidade de aliar, com maestria, aspectos tão distintos que se complementam. Nosso povo e nossas cidades são marcados por isso. Vivemos em um país oficialmente católico, que convive com protestantes, umbandistas, enfim, abriga todas as crenças religiosas. Temos cidades como Salvador, com seus quase 500 anos, a primeira capital do país, e Brasília, com pouco mais de 50 anos de existência, e a atual capital. O Brasil que hoje vive uma democracia presidencialista já teve até império.
Essa diversidade cultural pode se constituir num elemento fundamental para o sucesso de alguns territórios do país e, especialmente, para as micro e pequenas empresas. A existência de uma força de trabalho caracteristicamente multicultural e multirracial, por exemplo, pode se constituir numa solução vantajosa quando se compete num mercado cada vez mais globalizado, onde existem profissionais muito qualificados. A existência de diferentes culturas interagindo e trabalhando no mesmo ambiente possibilita a criação de modelos organizacionais flexíveis e criativos.
Setores como o artesanato, a moda, o agroalimentar e o entretenimento, para não citar outros, poderão beneficiar-se dessa diversidade, caso seus produtos e serviços traduzam a pluralidade e o sincretismo da nossa cultura, sem perder as características universais que ampliam as possibilidades de consumo para o mercado em geral. Conceitos como alegria, hospitalidade e amabilidade, poderiam ser utilizados na valorização comercial de serviços ligados ao turismo, por exemplo. Aliado a isso, a valorização das manifestações populares bem como o manejo adequado dos recursos naturais podem contribuir para fazer do Brasil um importante pólo de turismo mundial.
Traçando estratégias de atuação
Se, por um lado, os produtos e serviços de elevado conteúdo cultural representam uma fronteira ainda amplamente inexplorada, de outro lado, a promoção de atividades econômicas fundadas no patrimônio cultural do país fornece às pequenas empresas um instrumento de crescimento muito acessível. Os milhões de homens e mulheres que tiram seu sustento - como empresários ou empregados - dos milhões de pequenos negócios estão de fato imersos neste patrimônio e contribuem, em grande medida, para sua conservação e difusão.
Hoje, no entanto, esses milhares de pequenos empresários e/ou empregados não conseguem, na grande parte dos casos, tirar desse patrimônio os instrumentos para a melhoria da própria condição. Segundo o sociólogo Domenico de Masi, "Quanto mais é marcada a identidade de um objeto, tanto mais esse será desejado por quem não se quer sentir massificado e homologado, por quem quer se distinguir".Torna-se necessário, então, utilizar o riquíssimo e vasto patrimônio cultural brasileiro em ações capazes de dotar os produtos e serviços de nossos pequenos negócios de uma identidade, de uma alma, enfim, de uma cara brasileira.
O objetivo central do projeto "Cara Brasileira" desenvolvido pelo Sebrae, com a consultoria da empresa S3 Studium, do sociólogo Domenico de Masi, é identificar e sistematizar o conhecimento dos traços da brasilidade, disseminar esses conhecimentos e promover sua incorporação junto a territórios, setores produtivos e, conseqüentemente, a micro e pequenas empresas.
A primeira ação foi identificar qual seria essa nossa cara compreendida aqui, para efeito desse projeto, como o conjunto dos traços peculiares ao estilo cultural, estético e comunicativo brasileiro, capaz de distinguir e de chamar a atenção para os sujeitos (pessoas ou empresas), produtos ou serviços que dele sejam portadores.
A atenção foi focalizada, em particular, naquelas características que, se adotadas pela empresa na sua forma de relacionar-se com o mercado, poderão conferir um fator de vantagem no plano do marketing e de penetração nos mercados locais e internacionais. Utilizar essas características, que nos distinguem dos outros povos, e promover de forma articulada é uma forma de mostrar a cara do Brasil para o mundo.
Então, a primeira pergunta que vem às nossas cabeças ao pensarmos na diversidade existente no Brasil é: o Brasil tem cara? Nas palavras do prof. Roberto DaMatta, "Os estrangeiros e os que têm a sabedoria de examinar a parte e o todo, ultrapassando a trivial perspectiva fragmentada e individualista que só vê diversidades, respondem afirmativamente. Sim, o Brasil tem cara e, como toda cara, ela é feita de pedaços distintos que se fundem e combinam numa feição e num rosto singular e único: um semblante reconhecidamente brasileiro".
Para refletir sobre uma questão tão complexa, o Sebrae realizou uma pesquisa que identificou alguns dos aspectos mais significativos da cultura brasileira e que podem ser utilizados dentro de uma estratégia de diferenciação dos produtos e serviços das micro e pequenas empresas.
A pesquisa teve a participação de vinte e cinco profissionais de grande renome nacional e internacional em suas áreas de conhecimento. Esse trabalho foi desenvolvido em duas etapas envolvendo especialistas de áreas diversas como: antropologia, economia, carnaval, marketing, publicidade, turismo, psicologia, artesanato, jornalismo, futebol, moda, literatura, história, ciências naturais, entre outras.
O método utilizado foi o Delphi e os resultados da pesquisa "Cara Brasileira" foram divididos em três partes: a primeira trata dos aspectos gerais da cultura brasileira; a segunda lista as possibilidades de valorização desta cultura no mundo dos negócios e a parte final da pesquisa trata da promoção da "cara brasileira" como estratégia para o país.
A primeira parte: trata da cultura brasileira e a pesquisa destaca, por exemplo, os pontos fortes e pontos fracos dos brasileiros que podem ajudar ou comprometer a imagem do país. Em síntese, a pesquisa aponta como principais pontos fortes do Brasil o pluralismo racial e cultural; os elementos culturais provenientes de tradições e experiências de vida autenticamente populares; a hospitalidade e a cordialidade; a ênfase nos relacionamentos pessoais e a criatividade. Destacou também alguns pontos fracos tais como a falta de auto-estima, que leva à valorização apenas do que vem de fora, resultante de pobreza cultural; a falta de confiança nas autoridades e no Governo, que se reflete na desconfiança geral em relação às empresas públicas; um certo desprezo por questões técnicas; a idéia de malandragem como necessidade de tirar partido de tudo, sobretudo em detrimento dos mais humildes; a escassa divulgação do trabalho cultural brasileiro em todos os setores.
É importante notar que esses pontos fortes e fracos encontram-se em um contexto amplo dentro da pesquisa. Fazer uma leitura de um aspecto de forma isolada pode levar à formação de estereótipos, uma vez que este pode ser reconhecido em muitos outros povos.
A segunda parte: indica as possibilidades de valorização da cultura no mundo dos negócios. Destaca, por exemplo, setores com potencial que, quando agregados os valores da cultura brasileira, podem dar um salto qualitativo. Esse "valor agregado cultural" oferecerá as maiores possibilidades de melhoria da competitividade das micro e pequenas empresas nos setores do turismo, vestuário, artesanato, produtos alimentícios e serviços culturais.
Outro dado interessante foi a indicação de que a música será a maior contribuição do Brasil no século XXI. Não só em termos da transmissão dos valores culturais, mas também como meio de obter ganhos econômicos.A música é apontada como uma manifestação coletiva, que cresce organicamente, em contínua mutação. É moderna, competitiva, refinada e bem-estruturada.
A pesquisa também indica oportunidades para setores específicos como o turismo, por exemplo, no qual será particularmente possível valorizar com sucesso o "estilo brasileiro de receber" e sobretudo, a hospitalidade como valor. Ao mesmo tempo, será adequado explorar a riqueza da natureza, entendida como localidade e identidade social, memória positiva e algo que traz saudade.
Nesta perspectiva, é preciso salientar que o Brasil possui um instrumento de grande atrativo turístico. Pode-se, de fato, afirmar que o Brasil é o país que realiza as maiores festas de massa de todo o planeta. Este recurso é de importância primária, pois as micro e pequenas empresas estão particularmente próximas, arraigadas nas comunidades onde atuam e, conseqüentemente, são as mais indicadas para desfrutar da energia que brota dessas manifestações.
Na terceira e última parte: a pesquisa conclui abordando a promoção da "cara brasileira" como uma estratégia para o país. De modo abrangente, se os brasileiros não desenvolverem uma imagem pelo menos tão boa quanto a que os estrangeiros lhe conferem, o Brasil continuará a perder numerosas oportunidades. Com efeito, o fato de não se perceber a dimensão dos próprios valores culturais pode, de um lado, conduzir ao aprofundamento de uma marcante falta de confiança em si próprio e, de outro lado, pode levar ao caminho inverso, que seria o de uma supervalorização.
Além disso, a pesquisa aponta que o brasileiro tem consciência de que possui certas qualidades tais como a sua condição de povo alegre, hospitaleiro e festivo; tolerante em relação a confrontos que envolvam outros povos, questões raciais, religiosas e culturais; bem como da sua condição de lutador, sobrevivente.
Portanto, os brasileiros podem e devem aproveitar-se da variedade e da sofisticação do patrimônio ambiental. Todavia, devem evitar o risco da "folclorização" e de "submissão" a seu "destino tropical".
A partir dos resultados da pesquisa, pode-se fazer três tipos de indicações úteis nas atividades do projeto:
1) a identificação de indicadores culturais para a valorização, tais como adaptabilidade e abertura à inovação, índole relacional, especificidades locais, características psicológicas, aspectos ligados à valorização do patrimônio natural, dentre outros;
2) a identificação de aspectos para a melhoria no funcionamento da organização dos produtos e dos serviços;
3) definição de estratégias de comunicação que promovam produtos, serviços, setores e territórios.
É importante ressaltar que o Brasil já explora alguns dos aspectos levantados. Existem produtos e serviços tipicamente brasileiros que obtêm sucesso no mercado justamente porque possuem essa "densidade cultural" - além, é claro, de qualidade, logística, boa comercialização, fatores também essenciais. São os casos da moda, do turismo, do artesanato, da cachaça, da pintura, do carnaval, dos produtos naturais e, especialmente, da música. Mas poderíamos fazer isso com muitos outros produtos que o mundo inteiro apreciaria exatamente porque se distinguem; são profundamente brasileiros, portadores de uma "cara brasileira", marcadamente dotados de "brasilidade".
O desafio nosso e de todos
Entendemos que os desafios colocados para um projeto como este são grandes, do tamanho do Brasil. As idéias surgidas a partir do Cara Brasileira não devem ser preocupação exclusiva do Sebrae, mas dos diversos atores que podem e devem interagir na construção de uma estratégia para o país, considerando a criação de um Made in Brazil diferente do que temos hoje. A proposta é fazer com que esse made in não classifique os produtos somente como "produzido no território brasileiro", mas o que foi "produzido com brasilidade".
Com o Cara Brasileira estamos apenas dando um primeiro passo. Queremos inicialmente chamar a atenção de todos para a importância e pertinência do tema. O que poderemos fazer sozinhos é muito pouco perto do que existe para ser feito, por isso estamos convidando todos os interessados no desenvolvimento do país para construirmos juntos esse processo.
Por nosso lado, já estamos dando alguns primeiros passos. Iremos selecionar setores e territórios em todo o Brasil para serem trabalhados com um enfoque voltado para a valorização das identidades locais. Pretendemos criar exemplaridade, mostrar que territórios e empresas podem se inserir nesse jogo, apostando nos seus traços característicos.
Contudo, não adianta todo esse esforço na criação de uma imagem positiva seja de produtos, serviços, setores ou territórios, se os segmentos produtivos não internalizarem aspectos tangíveis tais como qualidade, logística, garantia, rastreabilidade, entre outros. Também não será efetiva esta ação se não existir, por parte de toda a sociedade brasileira, o comprometimento de acertar estratégias amplas e articuladas para a melhoria dos indicadores econômicos e sociais e, conseqüentemente, da imagem do país.
2007-05-26 00:40:33
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answer #2
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answered by Anonymous
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