Um poder paralelo
Cenas de violência policial se espalham em todo o País e mostram que a PM é incontrolável
"Apanhei e agora não me sinto seguro sequer para dizer quem me bateu"
M., de 18 anos
FRANCISCO ALVES FILHO
Ao comentar, no sábado 5, as cenas de violência policial em Diadema, na Grande São Paulo, em entrevista à imprensa, o governador do Rio de Janeiro, Marcello Alencar (PSDB), profetizou: "É bom deixar as barbas de molho. Isso pode acontecer em qualquer outra grande cidade do País." A profecia não custou a se tornar realidade. Dois dias depois, o Jornal Nacional divulgou novo vídeo com imagens de violência praticada por PMs - dessa vez as vítimas eram moradores da favela Cidade de Deus, na zona oeste do Rio. As imagens, gravadas na noite de 23 de março por um cinegrafista amador, mostram 11 pessoas sendo espancadas em um paredão por um grupamento de seis militares. Além de socos, pauladas e joelhadas, os policiais também submetem as vítimas a sessões de palmatória e chicotadas, roubam dinheiro e fazem ameaças. Entre os episódios de Diadema e Cidade de Deus, vieram à tona várias histórias escabrosas envolvendo policiais militares - extermínio na Bahia, espancamento em Alagoas, agressão no Rio Grande do Sul -, indicando que as PMs são hoje forças autônomas, fora do controle dos governadores.
Essa verdade, que só agora parece cristalina para as classes mais abastadas, já é conhecida há muito tempo pelos moradores das favelas brasileiras. "Tenho 38 anos e desde os dez vejo os policiais baterem e matarem vizinhos e amigos meus aqui da Cidade de Deus", acusa G., uma das 11 vítimas que aparecem no vídeo mostrado pela Rede Globo. "Eu mesmo já fui espancado outras vezes." Na noite de 23 de março, ele saiu para comprar cigarros por volta de meia-noite, quando foi abordado pelos PMs. Recebeu ordem para ficar junto ao paredão e obedeceu, sem resistir. Apesar disso, foi espancado. No grupo, havia três mulheres que também foram agredidas e xingadas. Um dos homens apanhou até desmaiar. Foi reanimado e obrigado a manter-se de pé para sofrer nova sessão de espancamento.
"Logo no primeiro golpe, meu ouvido começou a sangrar e não ouvi mais nada"
L., de 19 anos
L., 19 anos, passou pelo pior. Ao voltar de uma festa com o amigo M., 18 anos, parou no bar para tomar cerveja. Foi o bastante para que os dois se tornassem suspeitos aos olhos dos policiais. Antes de serem obrigados a encostar no paredão, os dois foram roubados pelos PMs - de L. tomaram R$ 20 e do amigo R$ 10. "Apanhei e agora não me sinto seguro sequer para dizer quem me bateu", diz M. A seguir, ele foi liberado enquanto L. era levado para perto de uma árvore. A partir de então, foi espancado por três policiais ao mesmo tempo, à base de chicotadas, palmatória e golpes de telefones (tapas com as mãos em concha aplicados nos ouvidos). Por causa disso, sofreu perfuração no tímpano do ouvido esquerdo. "Logo no primeiro golpe meu ouvido começou a sangrar e não consegui ouvir mais nada", conta ele.
Logo após a exibição da violência dos policiais cariocas na tevê, o governador Marcello Alencar apressou-se em dar uma resposta à opinião pública. Sua preocupação principal era não passar a mesma imagem de condescendência de seu colega tucano Mário Covas no caso de Diadema. À frente dos holofotes, mandou prender os seis policiais - entre os quais está um oficial, o major Álvaro Garcia - e esbravejou: "Eles serão expulsos sumariamente." Contestado publicamente pelo comandante da Polícia Militar, tenente-coronel Dorasil Corval, Alencar acatou as ponderações do subordinado e deu meia-volta, passando a criticar os moradores da favela. "Que valor têm essas pessoas que só falam mediante a ocultação de seus nomes?", questionou. "Para expulsar os policiais, é preciso seguir os trâmites previstos em lei."
Foto: PEDRO AGILSON
G., vítima da PM no Rio de Janeiro: "Já fui espancado outras vezes"
Seguir os trâmites, muitas vezes implica impunidade. Em São Paulo, o coronel Ubiratan Guimarães comandou, em 1992, a invasão da PM à Casa de Detenção, onde havia uma rebelião de presos. O resultado da ação foi a morte de 111 detentos. Dois anos depois, ele disputou uma cadeira de deputado estadual sob o número 41.111. No início deste ano, assumiu o mandato como suplente e hoje faz parte da CPI que investiga os abusos policiais em Diadema.
As últimas declarações de Alencar são mais coerentes com a prática de seu governo. Continuam na corporação vários policiais envolvidos em crimes que, como os da Cidade de Deus, foram documentados pelas câmeras de tevê. Um desses criminosos, o cabo Flávio Carneiro, foi condenado a dez anos de prisão depois de assassinar o assaltante Cristiano Mesquita, em março de 1995, na portaria do shopping center Rio-Sul. O assassinato foi exibido em rede nacional. Mesmo depois da condenação, o comando da PM ainda não expulsou o policial, que poderá voltar a envergar uma farda assim que sair da prisão. Apesar de também terem sido condenados pela Justiça, os cinco policiais mostrados pela Rede Manchete em outubro do ano passado exatamente no momento em que espancavam moradores da favela Parada de Lucas não foram expulsos da corporação.
A inexistência de critérios rígidos de punição e a falta de controle sobre a tropa dão margem aos atos de corrupção e violência que colocam em xeque o atual modelo de polícia militar. Uma crítica extensa a essa instituição foi divulgada na quarta-feira 8 pela Humans Rights Watch /Americas, organização não-governamental dedicada à defesa dos direitos humanos. No relatório intitulado "Brutalidade policial urbana no Brasil", a entidade lista casos de mortes provocadas por policiais do Rio, São Paulo, Natal, Recife, Salvador e Belo Horizonte no período de dois anos. "Há fortes indícios de que se tratam de execuções sumárias", afirma James Cavallaro, coordenador da ONG no Brasil. Com a autoridade de quem já comandou os policiais, o ex-secretário de Segurança de São Paulo Antônio Cláudio Mariz de Oliveira afirma que o problema reside no fato de a PM ser uma força incontrolável. "A Polícia Militar é um Estado dentro do Estado", define. No caso de São Paulo, até a folha de pagamento dos policiais militares é processada pela própria PM e não pela empresa de processamento de dados do Estado. "A PM se informatizou antes", diz Silvano Tarantelli, assessor de imprensa da Secretaria de Administração.
O poder da PM é incontestável. Sabe-se que a corporação mantém um serviço secreto, a chamada P-2, que funciona como uma espécie de SNI. "A P-2 conhece os segredos de qualquer governador", disse a ISTOÉ um ex-governador de São Paulo. "O problema é que a P-2 nunca divulga o que descobre a respeito da própria PM." As informações acumuladas pelo serviço secreto da Polícia Militar acabam se traduzindo em poder político. Boa parte do Senado é formada por ex-governadores.
2007-03-26 07:45:59
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answer #1
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answered by izinha 4
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