"Sócrates: - Não tem cada coisa o seu mal e seu bem? A oftalmia é o mal dos olhos; a doença o mal de todo o corpo; a manga, o mal do trigo; a podridão, o da madeira; a ferrugem, o do ferro e cobre. Em uma palavra, quase nada há na natureza que não tenha seu mal e sua doença particular.
Glauco: - É verdade.
Sócrates: - Quando o mal ataca uma coisa, a deteriora, acabando por dissolve-la e aniquilá-la?
Glauco: - Sem dúvida.
Sócrates: - assim, pois, cada coisa é destruída pelo mal e pelo princípio de corrupção que traz em si, de sorte que, se o mal não força para destruí-la, nada mais há que o possa fazer, porque o bem não pode produzir este efeito, nem tão pouco o que não é nem bem nem mal.
Glauco: - como poderia ser?
Sócrates: - Se pois, encontramos na natureza alguma coisa cujo mal inerente a torna verdadeiramente má, que não pode porém dissolvê-la e destruí-la , não podemos afirmar desta coisa que naturalmente não pode perecer?
Glauco: - Parece muito lógico, que sim.
Sócrates: - pois não há nada que torne má a alma?
Glauco: - Sim, certamente; todos os vícios que mencionamos atrás: a injustiça, a intemperança, a covardia e a ignorância.
Sócrates: - Haverá um só destes vícios capaz de alterá-la e destruí-la? Cuidado que não caiamos em erro, supondo que, quando o injusto e insensato é surpreendido em delito, seja a injustiça, que é o mal de sua alma, a causa de sua morte. Eis, ao contrário, como se deve encarar a realidade. Adverte que a enfermidade, que é o mal do corpo, o aniquila pouco a pouco, o destrói e reduz ao ponto de não ter sequer a forma do corpo. E todas as outras coisas de que temos falado tem seu mal próprio, que se lhes adere e as corrompe e leve ao extremo de deixarem de ser que antes eram. Não é verdade?
Glauco: - Sim.
Sócrates: - Fazendo agora aplicação disto à alma, é verdade que a injustiça e o outros vícios, em que se alojando e fixando na alma, a corrompem e emurchecem, até que, conduzindo-a à morte, a separam do corpo?
Glauco: - De modo algum: isto não se dá a respeito da alma.
Sócrates: - Por outro lado, seria absurdo dizer que um mal estranho destruiria uma substância que seu próprio mal não é capaz de destruir... Abstenhamo-nos de dizer que nem a febre, nem nenhuma outra enfermidade, nem a degola, nem a retalhação do corpo em mil pedaços, nem o que quer que seja, pode dar a morte à alma, a menos que se faça ver que, pelos males que o corpo padece nestas circunstâncias, a alma torna-se mais injusta e ímpia.
E não toleremos que se diga que a alma ou outra substância perece pelo mal que sobrevêm a uma substância de natureza diferente da sua, se não concorre ali o mal que lhe é próprio...
Logo, é evidente que o que não pode perecer, nem por seu próprio mal, nem pelo mal alheio, deve necessariamente existir sempre; e que, se existe sempre, é imortal" (República, 608 e ss.).
2007-03-26 04:05:39
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answer #1
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answered by Apolo 6
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