Considerar a oposição entre tradição e modernidade é já uma herança moderna, uma vez que é em relação ao processo de ruptura inaugurado pela modernidade que os ideais em relação aos quais ela se demarca são definidos como tradicionais, tal como é em relação aos ideais da tradição que os projectos de ruptura em relação a esses ideais são definidos como modernos.
Por outro lado, falar de herança moderna equivale, ao mesmo tempo, a reconhecer o destino tradicional da modernidade, a reconhecer, por conseguinte, a impossibilidade da sua consumação. É por isso que a modernidade tem como destino a sua própria neutralização, ao cabo de um processo em que os modelos modernos da experiência não podem deixar de se tornar, por sua vez, também tradicionais. É este destino tradicional da modernidade que se consumou historicamente com a falência das sucessivas vanguardas. À medida que os modelos vanguardistas se iam impondo, iam também sendo aceites como normas do gosto, em relação às quais se impunha, por sua vez, um novo movimento de ruptura. É em função deste processo que as obras modernas adquirem uma natureza efémera, tendem a definir-se como modas, sendo a realização dos projectos modernos atravessado por uma lógica dissuasora: uma vez realizados, todos os projectos modernos sofrem inevitavelmente os efeitos do desencantamento e da consumação do gesto que os gerou. As sociedades arcaicas pressentiam e contornavam muitas vezes esta lógica paradoxal da realização dos seus projectos, ao evitarem a serialização dos objectos artesanais. Nalgumas sociedades, o hábito de desenhar na areia era uma maneira de evitar que perdurasse a obra desenhada, para além do instante da sua criação.
refúgio nas tradições tem as suas vantagens. Em primeiro lugar, é o tipo de atitude social e individual que foge ao controle da Razão instrumental e do Estado. Depois, malgrado todos os elementos hipócritas, não há como não se emocionar com a pureza dos sentimentos resguardados nos melhores corações, em especial dentre as crianças. É lícito reconhecer que em meio à ideologia do mercado que transforma momentos de confraternização em mera troca de mercadorias, mercantilizando os próprios sentimentos e as relações afetivas, sobrevivem verdadeiras manifestações de solidariedade que fogem à lógica mercantil.
Por fim, também devemos reconhecer que a Razão triunfante da modernidade não conseguiu – felizmente! – por termo a todas as tradições, o que significa a possibilidade de mantermos um elo com o passado, aprender com este e resguardar aquilo que ainda nos dá o status de humanos e não de autômatos obedientes aos ditames da lógica do mercado. A sobrevivência da tradição nos ajuda a contrapor nossa subjetividade à racionalidade cega e objetiva, contribuindo para a crítica racional a um mundo desencantado com sua própria realidade.
2007-03-20 07:54:31
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answer #1
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answered by Vanyle 6
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