Cultura: privilégio dos homens?
Por Susana Dias
Em vários animais já foram descritos casos de comportamentos inventados por um indivíduo e aprendidos por outros do grupo. Há casos clássicos entre os primatas. Em chimpanzés têm sido observadas as possibilidades destes se reconhecerem e atribuírem individualidades a outros de sua espécie, de classificarem plantas e selecioná-las para sua alimentação, de usarem ferramentas para obter alimento, de ensinarem a seus filhotes, de cooperarem para solucionar problemas e de criarem estratégias sociais de comunicação, inclusive aprendendo linguagens de sinais dos humanos. Esses comportamentos descritos por pesquisadores das ciências naturais escapam às explicações genéticas e têm sido associados à noção de cultura em animais. Mas seriam esses resultados suficientes para dizer que os animais são seres culturais? A resposta à questão não parece ser simples mesmo para os pesquisadores. Para alguns, afirmar categoricamente que animais não têm cultura é esquivar-se de um interessante debate que os resultados dos estudos em comportamento animal podem promover.
O uso da noção de cultura pelas biociências recoloca a discussão entre ciências naturais e humanas, em especial entre a biologia e a antropologia. “Não há mais consenso acerca de que os seres humanos sejam os únicos a desenvolver vida coletiva complexa, produzir cultura, lutar por status e poder, reconhecer seus semelhantes e repassar conhecimentos para as gerações futuras”, comenta a cientista social Eliane Sebeika Rapchan, da Universidade Estadual de Maringá. Para ela, esses resultados colocam a necessidade de uma aproximação entre as áreas do conhecimento. Uma aproximação, entretanto, “difícil e delicada” porque “tais resultados têm o potencial de impactar as representações da natureza e, ao mesmo tempo, promover alterações nas relações entre as disciplinas envolvidas no problema, trazendo contribuições para o debate sobre as relações natureza/cultura ou ainda, para a redefinição das fronteiras do que se entende por humano e não-humano”, argumenta.
Animais têm cultura?
O ecólogo Paulo Sérgio Moreira Carvalho de Oliveira, do Departamento de Zoologia, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que as pesquisas em comportamento animal têm levado a uma resposta afirmativa para a questão, ou seja, animais têm cultura. Oliveira define cultura como “um traço comportamental que passa para a geração seguinte por aprendizado ou por imitação” e a transmissão cultural como “a transferência de informação através do ensino ou do aprendizado social”. Apresenta vários exemplos observados em animais: mães guepardo que machucam presas para ensinar os filhotes a caçar; chimpanzés que usam folhas como verdadeiras esponjas para recolher água de locais de difícil acesso, como troncos ocos de árvore; a criação de estratégias, por macacos, para quebrar frutos, batendo-os contra pedras ou árvores; chimpanzés que usam gravetos para comer cupins, como se fossem “palitinhos de restaurante chinês”. Estes comportamentos são transmitidos entre os indivíduos dos grupos por imitação. “Qual a diferença entre o que faz o chimpanzé e uma mãe que ensina uma criança a comer? Quando ensinamos um filho a comer com um garfo, ou ensinamos um filho a caçar, a buscar alimento, podemos considerar que esses ensinamentos são traços culturais que estamos transmitindo?”, pergunta-se o ecólogo. “Bichos fazem isso. Eles fabricam coisas, os filhos aprendem com os pais e o uso dos instrumentos é perpetuado por gerações, por aprendizagem”, argumenta. (conheça mais do pesquisador em sua página pessoal).
Catação, aprendizagem social, conflitos, cuidado parental, desenvolvimento de técnicas de forrageamento, práticas sexuais, posturas corporais, criação e uso de ferramentas, relações entre mães e filhotes, hierarquia, são alguns dos aspectos dos comportamentos animais que têm sido observados por estudiosos das ciências naturais e que são relacionados à noção de cultura.
Porém, um dos problemas de se afirmar a existência de cultura em animais, para o antropólogo Guilherme José da Silva e Sá, está na noção “restrita” de cultura que tem sido utilizada. Perguntado se os animais produzem e transmitem cultura, respondeu: “Se cultura significa somente produzir e transmitir práticas, com as quais nós seres humanos nos identificamos, eu diria que sim, mas tenho certeza de que qualquer não-humano ficaria insatisfeito com as limitações implicadas nessa definição”. Afirmar simplesmente que os animais não têm cultura ou que cultura é exclusividade dos seres humanos é, para o antropólogo, esquivar-se de um debate importante para a biologia e antropologia. O debate, que no Brasil atualmente não acontece, ou está restrito a pequenos fóruns, permitiria trazer discussões que estão na relação entre essas duas áreas do conhecimento, bem como repensar suas formas de olhar e produzir conhecimentos sobre humanos, não-humanos e suas relações.
Guilherme Sá, que faz doutorado em antropologia no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e atua como professor na Universidade Federal de Santa Maria, propõe que toda e qualquer discussão envolvendo a questão da cultura em não-humanos surja a partir de categorias próprias aos animais. “Nada muito diferente daquilo que conhecemos em antropologia ao falar que uma determinada cultura tem seu significado e lógica própria. É claro que isso se torna ainda mais árduo em função de nossa inadequação para operar do ponto de vista de um não-humano na sociedade ocidental”, diz. Para o antropólogo, os animais (não-humanos) sempre foram seres culturais, não porque apresentam este ou aquele traço específico, ou porque realizam determinada prática ou função, mas simplesmente porque há muito estão inseridos em relações culturais. Ele sugere um deslocamento da atenção dos termos humano e não-humano para as relações que os mediam, como possibilidade de se encontrar cultura. “Uma idéia de cultura em transformação e que relaciona esses coletivos de humanos e não-humanos”, diz.
A cientista social Eliane Rapchan também sugere que as ciências naturais ampliem a noção de cultura que vêm utilizando. No caso das “culturas de chimpanzés”, objeto de seu estudo de doutorado, ela identifica um isolamento na forma como cada aspecto do comportamento é tratado pelos pesquisadores. A ausência de estudos que focalizem as interações de um comportamento sobre outro, no interior do mesmo grupo dificulta, na opinião de Rapchan, “o acesso à existência de algum tipo de sentido nesses comportamentos, caso exista. Esse é o outro aspecto importante pois o significado é algo central para a noção antropológica de cultura”. A pesquisadora ressalta que, para a etnografia, o registro do comportamento é incompleto se não estiver de algum modo associado aos seus próprios sentidos. Por isso a dimensão simbólica torna-se central para a antropologia. Ela destaca os estudos que focalizam a capacidade de simbolizar entre os não-humanos, como os propostos por Steven Mithen, como uma “abordagem que melhor atende ao debate sobre a existência ou não de cultura entre os chimpanzés”. (leia mais no artigo da pesquisadora: “Chimpanzés possuem cultura? Questões para a antropologia sobre um tema 'bom para pensar'”
Bicho também é gente
A expressão acima leva ao extremo a idéia de humanização dos animais. Embora não seja nesse extremo que se situam os estudos em comportamento animal, a biologia aposta na humanização dos animais como forma de compreender seus comportamentos. Os animais usam ferramentas, tais como os humanos, ensinam os filhos, tais como os humanos, fazem guerra e política, tais como os humanos. Nesse caminho, também estão alguns movimentos em defesa dos animais, dos direitos dos animais, que apostam na aproximação entre humanos e animais para criar uma nova sensibilidade em relação aos não-humanos. O inverso também tem sido uma aposta das ciências biológicas: somos animais também! Entretanto, a antropologia aponta problemas nessa forma de aproximação tanto para se pensar as singularidades dos humanos, quanto dos não-humanos.
Para Guilherme Sá o problema reside em caracterizar cultura como um conjunto de práticas humanas e, mesmo sem perceber, projetá-las sobre os não-humanos. O olhar antropomorfizado (ver os animais como homens) limitaria a compreensão da cultura dos animais. “Certamente haverá muito mais cultura em um animal do que aquela a qual somos limitados a entender enquanto humanos”, diz. O desafio seria pensar que, se os animais possuem cultura, muitas coisas que eles fazem não são denominadas de “culturais” porque não se assemelham com a cultura em humanos. “Para falar em ‘culturas animais’ seria preciso pensá-la ontologicamente, da mesma forma que abordamos as culturas humanas. É preciso que nos aprofundemos nas relações intrínsecas não-humanas, e para isso teremos que diminuir a distância que nos separa deles. Se o antropomorfismo é incontornável, que pelo menos este se dê na relação que nos aproxima enquanto condição, e não naquilo que nos distingue enquanto espécie”, sugere.
Já Elenise Cristina Pires de Andrade, bióloga, professora do ensino médio e doutoranda da Faculdade de Educação da Unicamp, acredita que o uso da noção de cultura pelos estudos em comportamento animal irá circunscrever o entendimento desses seres. “A noção de cultura limita o entendimento de humanos e não-humanos, desenha uma estrutura de memória, visibilidade, conhecimento, sensibilidade. Cria uma bolha cultural identitária, demarcatória dos indivíduos, sejam eles humanos ou não”, diz. Na opinião da pesquisadora, que no mestrado buscou pensar “o ser ou o tornar-se humano” nos currículos de ciências, uma ontologia dos não-humanos continuaria em busca da essência desses seres, assim como acontece com a noção de cultura em humanos. “Como fazer um deslocamento que não procure as diferenças a partir de uma essência de humanos e não-humanos?”, pergunta-se. E sugere que talvez seja necessário pensar “que o humano passa por outros lugares, nas relações com todos os seres-objetos, habitantes do mundo. A saída talvez seja não humanizar os animais, mas desumanizar o humano, não buscar mais sua essência, suas características intrínsecas, mas tomá-lo em constante transformação, devir-qualquer-coisa”. (Conheça mais sobre as idéias da pesquisadora lendo o artigo “Vejo o que desejo, desejo o que vejo: perturbações curriculares com/nas/nos alunas, alunos e professora de pedagogia das faculdades Network-SP”
2007-03-07 01:21:25
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