Texto Luis Roberto Toledo
Fotos Ernesto de Souza
A espécie nilótica, com gaiolas de criação ao fundo e ovos na incubadora (acima): produção incorpora técnicas mais avançadas
Há quem sustente que a tilápia é o peixe citado na passagem bíblica da multiplicação dos alimentos, quando Jesus conseguiu saciar a fome de uma multidão apenas a partir de dois peixinhos e de um punhado de pães. A teoria tem fundamento, pois algumas espécies de tilápia são originárias da região entre o Oriente Médio e o Norte da África. Mas, seja ou não o peixe de que fala o Evangelho, multiplicação é com a tilápia mesmo. Ela apresenta notável capacidade de reprodução, o que torna muito mais trabalhoso conter sua proliferação do que promover seu acasalamento.
Suas qualidades, entretanto, não se resumem à prolificidade. Possui carne de sabor suave e pouca gordura, diferentemente da maioria dos peixes de água doce. Também oferece boa conversão alimentar e crescimento veloz, suporta níveis baixos de oxigênio na água e pode até mesmo ser submetida à criação em água salgada. Tantos pontos favoráveis têm levado a tilápia a ser protagonista de um “milagre” moderno, o da multiplicação em criatórios do mundo todo. Principalmente com relação à espécie Oreochromis nilotica, ou tilápia-do-nilo, que tem bom rendimento de filé e é a predileta dos piscicultores.
Calcula-se que a produção global do peixe, entre captura e cultivo, esteja próxima de 1 milhão de toneladas anuais. O Brasil colabora com estimadas 40 mil toneladas ao ano. A tilápia já domina a piscicultura no país, mas, por enquanto, a maioria dos exemplares nacionais é destinada ao povoamento dos chamados pesque-pagues. O cenário começa a ser alterado com a crescente utilização do peixe no aproveitamento industrial, para a obtenção de filés e outros cortes.
Despesca na Fazenda Belmonte, PR: engorda do peixe levou também à obtenção de alevinos
O processamento é quase sempre realizado em escala reduzida, em frigoríficos de pequeno porte. A boa resposta do mercado, entretanto, tem ampliado o número de estabelecimentos envolvidos na atividade e despertado o interesse de grandes empresas. A Sadia, por exemplo, já incluiu dois pratos à base de tilápia em sua linha light de produtos elaborados e congelados. Essa nova realidade é complementada por mudanças no manejo para a obtenção de alevinos (os “filhotes” de peixe) e na engorda de exemplares nos tanques, processos que passaram a incorporar técnicas mais modernas e eficientes.
INVERSÃO “Ainda não existem grandes frigoríficos voltados ao abate de tilápias no Brasil porque a produção é pequena e os pesqueiros absorvem quase tudo”, acredita Ricardo Neukirchner, da piscicultura Aquabel, de Rolândia, PR. “Isso deve se inverter em poucos anos, pois há redes de supermercado ‘implorando’ pelo peixe e alta demanda para exportação.” Neukirchner é sócio da empresa que produz mensalmente 2 milhões de alevinos de tilápia, despachados para todas as partes do país. E ainda gerencia sozinho a engorda em 6,5 hectares de tanques. Foi com esse último negócio que ele entrou para a piscicultura, há seis anos, como forma de viabilizar a fazenda da família, a Belmonte. A propriedade era voltada, até então, principalmente à produção de arroz irrigado, que não vinha dando bons resultados econômicos. Parte das terras foi arrendada e tanques para criação de peixes foram escavados, aproveitando-se os patamares da cultura de arroz e a boa oferta de água.
A tilápia, escolhida para o povoamento, deu bons resultados comerciais, e logo Neukirchner resolveu aventurar-se também na alevinagem, criando a Aquabel. Para tanto, associou-se ao pai Bernd e ao técnico em piscicultura Cláudio Batirola, que trouxe a experiência com o mercado de tilápia acumulada em sua terra natal Toledo, no oeste paranaense, região pioneira na criação do peixe.
Para formar seu plantel de matrizes, a empresa teve acesso a material genético trazido da Tailândia em 1996 pelo governo brasileiro, para reduzir problemas de consangüinidade nas criações nacionais. As tilápias tailandesas apresentam crescimento acelerado e maior rendimento de carcaça. Outro reforço para a empresa de Rolândia foi a consultoria técnica de Sérgio Zimmermann, da Ulbra — Universidade Luterana Brasileira, de Porto Alegre, RS. Autoridade na criação de tilápias, o professor e pesquisador trouxe, também da Tailândia, uma tecnologia ainda pouco difundida no Brasil, para a obtenção de lotes de alevinos compostos exclusivamente por machos (leia “Um ‘clube’ onde fêmea não entra”).
FILIAL As lâminas d’água da Aquabel ocupam 5,5 hectares, um dos quais sob estufas. “Essas estruturas têm custo muito alto, mas preciso delas para conseguir reprodução e fazer estoque de alevinos nos meses de inverno, quando as temperaturas são muito baixas na região”, explica Neukirchner. Ele pretende aumentar em breve o número de matrizes e a área de estufas, para chegar à produção mensal de 3 milhões de alevinos. Também estão em seus planos abrir uma filial, ainda sem local definido, mas certamente numa região de clima mais quente durante o ano todo, dispensando as estufas. A expectativa de crescimento da atividade justificaria a expansão dos negócios. “Quem se tornar fornecedor para os frigoríficos irá trabalhar com margens mais apertadas de lucro do que quem vende para o mercado de pesqueiros, que paga melhor, mas já dá mostras de saturação”, analisa o gerente da Aquabel. “Cada vez mais, os criadores terão que se profissionalizar para segurar custos, através, por exemplo, da engorda de alevinos produzidos com a tecnologia que utilizamos aqui.”
Cairo Bierhals, da Supertilapia, na estufa com água aquecida: profissionalismo
A Supertilapia, de Viamão, RS, na Grande Porto Alegre, também aposta na ampliação e na profissionalização do setor. Administrada pelos irmãos Cairo e Cícero Bierhals, essa empresa dedicada à produção de alevinos de tilápia tailandesa usa estufas e sistema de aquecimento da água dos tanques, em caldeira a diesel, para obter a reprodução mesmo sob as baixas temperaturas do inverno gaúcho. O maior diferencial da Supertilapia é que ela oferece ao mercado não apenas o alevino “comum”, que tem cerca de 1 grama de peso, mas também a chamada forma juvenil, um alevino maior, de 10 centímetros e cerca de 20 gramas.
“Com essas características, ele é mais resistente e tem taxa de sobrevivência muito maior nos açudes, de cerca de 98%”, garante Cairo Bierhals. Outra vantagem é que o piscicultor “ganha” 60 dias de engorda, tempo que levaria para fazer o alevino alcançar esse peso, e pode conseguir nova safra na propriedade. O juvenil é também a forma mais apropriada para o sistema de criação em gaiolas (leia “Tilápias engaioladas em área de pecuária”). A produção mensal da empresa é de 800 mil alevinos; 300 mil deles são juvenis, mas o objetivo é que estes representem 80% do total.
MONITORAMENTO Além de vender alevinos, a Supertilapia fornece serviço de assistência técnica aos criadores. O processo de engorda pode ser monitorado pela empresa, que ainda oferece a possibilidade de fazer a despesca e procurar compradores para o peixe gordo. A piscicultura gaúcha realizou a exportação para os Estados Unidos de 11 toneladas de tilápia, produzidas por um de seus clientes e processadas por um frigorífico de Rio Grande. Neste ano, os irmãos Bierhals esperam enviar nova remessa, com peixes de engorda própria.
A venda aos pesque-pagues ainda deverá se manter firme por muito tempo, apesar das expectativas de aumento do uso industrial do peixe e do acirramento da disputa para o fornecimento do produto aos pesqueiros. No entanto, muitos dos envolvidos nesse segmento já começam a repensar suas atividades. Como João Carlos Rogério, proprietário do pesque-pague Bandeirantes, em Rolândia, vizinho à Aquabel. Seus dez tanques recebem cerca de 1.000 visitantes por mês, dos quais 70% preferem ficar nas margens dos tanques povoados com tilápias. “Isso por ser o peixe mais barato, mas também por ter carne branca e com muito menos gordura que os demais”, afirma Rogério.
Com base nas preferências de seu público, João Carlos Rogério projetou a construção de um frigorífico que estará pronto no primeiro semestre deste ano. A planta deverá processar 300 quilos de tilápia por dia, em artigos como filés, hambúrgueres e “nuggets”. A intenção é abastecer os mercados de Londrina e Maringá, competindo assim com as pequenas indústrias já instaladas em Toledo, pólo paranaense mais tradicional na produção do peixe.
Maringá também está prestes a ganhar seu frigorífico. A iniciativa é de Antônio Leal da Cunha, que engorda o peixe em 3 hectares na Fazenda Santa Juliana. O sistema de cultivo intensivo ali adotado — com viveiros sob estufa, tanques com fundo de lona e aeradores para promover maior oxigenação da água, por exemplo — permite a obtenção de até 80 toneladas anuais de pescado. A idéia de montar um frigorífico veio com o surgimento de excedente da produção destinada a pesqueiros. “Essa é uma oportunidade para atuar num segmento que tem muito potencial de crescimento”, afirma Celso Seratto, agrônomo da Emater-PR que presta serviço à Fazenda Santa Juliana. A capacidade instalada do frigorífico será de 50 toneladas de filé ao ano. E há mercado para tudo isso? “Mercado existe, certamente, mas será preciso investir também no incentivo ao consumo”, responde o agrônomo.
Piscicultura
Tilápias engaioladas em área de pecuária
Criador engorda peixes em tanque-rede e processa o pescado no frigorífico instalado em sua propriedade
Balsa para auxiliar o manejo
A primeira reação de Paulo Martins, ao ouvir as idéias do filho Rodrigo sobre instalar um projeto de piscicultura na propriedade da família, voltada para a pecuária de corte, foi torcer o nariz. Mas, nestes cinco anos desde o primeiro “namoro” com a atividade, o estudante de zootecnia não só conseguiu “dobrar” o pai, implantando o projeto na fazenda de gado, como provou que o negócio era viável. E ainda contou com a ajuda de Paulo para sanar algumas dificuldades no manejo da criação. “Ainda acho mais fácil produzir novilhos precoces, pois o peixe é mais melindroso. Um erro qualquer no manejo nem sempre dá para ser consertado e pode pôr tudo a perder”, afirma o pecuarista.
Na Piscicultura Santa Cecília, em Euclides da Cunha Paulista, SP, administrada por Rodrigo Martins, as tilápias são criadas em tanques-redes, espécies de gaiolas, e alimentadas com ração. Os equipamentos ficam mergulhados numa lagoa às margens da represa da Usina Hidrelétrica de Rosana, no Rio Paranapanema, na fronteira entre os estados de São Paulo e Paraná. A lagoa é, na verdade, um córrego que cortava a propriedade dos Martins, que se encheu com o fechamento da barragem. No total, são 106 gaiolas, enfileiradas em longos cordões, e que abrigam, cada uma, de 50 a 200 quilos de peixe por metro cúbico. O sucesso do sistema, bastante intensivo, é em boa parte assegurado pelo alto índice de renovação da água, que garante sua qualidade.
Desde o início do empreendimento, Rodrigo percebeu que haveria dificuldades para a venda de peixes aos pesqueiros, devido à grande concorrência. Assim, decidiu que seria preciso montar um frigorífico para abater e processar as tilápias. A pequena indústria tem capacidade para trabalhar com 800 quilos de pescado por dia, onde são preparados os cortes de filé, filé empanado, filé nobre (área lombar do peixe), espetinho, petisco e sashimi. O frigorífico também vende a tilápia apenas eviscerada e em filé com pele, para restaurantes de cozinha francesa. A Santa Cecília, credenciada para a comercialização nos limites do estado de São Paulo, também faz entregas a bares, choperias, hotéis, bufês e a quatro pontos de venda no interior paulista. Um de seus principais clientes é a cadeia de restaurantes de estrada Frango Assado, à qual entrega 400 quilos semanalmente. A piscicultura também comercializa a pele da tilápia, que é congelada e segue para um curtume no Paraná.
Rodrigo Martins: preparo de filés empanados, sashimis e espetinhos de tilápia
Para aumentar a capacidade de alojamento da piscicultura e diminuir os riscos da utilização de alevinos em tanque-rede (que são mais frágeis e ainda podem escapar pelas malhas das gaiolas), Rodrigo Martins terceirizou a fase inicial da criação. Ele fez uma parceria com um engordador de um município vizinho, ao qual entrega os alevinos comprados da Aquabel, de Rolândia, PR, e a ração, pagando 2,20 reais pelo quilo de tilápias juvenis, que chegam a Euclides da Cunha pesando 100 gramas cada uma. Elas são então colocadas nos tanques-redes, onde permanecem entre três e quatro meses, quando então estarão pesando cerca de 700 gramas. No dia anterior ao abate, é feita a depuração das tilápias, que permanecem em jejum nas gaiolas. Inicialmente, a coleta dos peixes era realizada trazendo-se os tanques-redes para a margem. Isso, entretanto, provocava grande estresse nos exemplares, além de necessitar de muita mão-de-obra. Para facilitar o trabalho, o pecuarista Paulo Martins projetou uma balsa que é levada até as gaiolas. Ela possui armações de metal onde o tanque-rede é suspenso e aberto, retirando-se então as tilápias, que são colocadas em caixas contendo gelo e água clorada. O custo de produção do quilo de peixe na Santa Cecília está entre 1,40 e 1,50 real, segundo Rodrigo. Já o preço do quilo dos cortes varia de 7,50 a 10 reais.
2007-02-20 11:26:20
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answer #1
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answered by Anonymous
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