Ora, sabemos pela Escritura que há somente duas religiões na história: a religião verdadeira, composta por aqueles que são da raça da mulher, e a anti-religião, que é constituída pela raça da serpente. (Gn, 3,15)
Também Santo Agostinho nos fala em duas religiões, quando define as suas famosas duas cidades:
"Dois amores deram origem a duas cidades: o amor de Deus levado ao desprezo de si mesmo deu origem à cidade de Deus; e o amor de si mesmo levado ao desprezo de Deus, deu origem à cidade do homem."
E Santo Inácio usa as duas bandeiras como metáfora da luta contínua entre essas duas religiões na história.
Assim, vemos que apesar da enormidade de seitas conhecidas hoje, só há duas religiões no mundo, a primeira delas a religião verdadeira, a religião Católica, divinamente revelada e única guardiã da verdade divina revelada. E a outra, composta por essa infinidade de seitas, que é a anti-religião, a religião do demônio, a sinagoga de satanás.
Essa anti-religião é a gnose, que através de suas seitas, velada ou abertamente, tenta em vão destruir e substituir a verdadeira Igreja de Cristo.
Para a gnose, em termos bem simples, o mundo é mau pois foi criado pelo deus do mal, o demiurgo. O demiurgo criou o mundo como prisão para o verdadeiro deus, que seria formado por inúmeras partículas divinas, as quais estariam presas na matéria, e que passariam pela evolução, do mineral ao vegetal, depois ao animal e então ao homem, onde então adquiririam consciência de seu estado.
A finalidade da gnose (=conhecimento) seria, pois, libertar as partículas divinas aprisionadas no mundo, formando novamente A Divindade, com a união das partículas libertas de todas as criaturas.
E como libertar as partículas? Combatendo as prisões que o demiurgo criou, quais sejam a matéria, a inteligência e a moral.
A gnose pretende dar ao homem o conhecimento salvífico, que é a compreensão de que o homem é deus, e de que deve libertar-se dessas três prisões que impedem sua parcela de divindade de retornar ao todo divino.
Quando o homem se liberta dessas prisões, ele se redime.
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O protestantismo é uma das seitas - que se multiplicou em milhares de outras seitas - da falsa religião, da raça da serpente.
Por que dizemos isso?
Primeiro, porque o protestantismo é contra a Igreja Católica, e não estando com Cristo, está necessariamente contra Cristo.
Mas, também porque sua doutrina segue exatamente o esquema da gnose.
Note que o sola scriptura é contra a Escritura, pois impinge ao livro sagrado um poder mágico de auto-interpretação que ele não possui. Quando os protestantes pretendem exaltar a Bíblia, na verdade a destroem. Lutero mesmo, na gênese desse movimento sectário, retirou vários livros da Bíblia (não materialmente, mas os desqualificando - Tiago como sendo uma epístola de palha, Apocalipse como sendo nem evangélico nem profético), mostrando que a Bíblia era escrava da vontade dos reformadores.
Ao desprezar tudo o que Lutero considerava humano em relação à revelação, como os livros deuterocanônicos e a tradição, bem como os concílios e a hierarquia, de fato Lutero se opunha a tudo o que era material, à criação. Para Lutero, esses livros retirados da Bíblia não produziam a experiência que despertaria no fiel a noção de salvação, e por isso não poderiam ser inspirados. Tais livros não traduziam de fato o kerigma, que é - mais importante que as verdades reveladas - o anúncio salvífico.
Ao propor o sola scriptura, Lutero queria a libertação da matéria, para ouvir somente a voz (divina) que falaria ao interior do homem.
É a libertação da primeira prisão da partícula divina, como na gnose.
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O sola fidei é qualquer coisa, menos fé verdadeira. Pois para o protestante o que vale é a experiência com Cristo, e não a aceitação das verdades reveladas por Deus.
Geralmente se considera que o sola fidei se opõe apenas às boas obras. Porém, se nos detivermos um pouco mais nesse princípio, veremos que ele se opõe à participação da inteligência na obra da regeneração, pois a fé protestante não pode passar pela razão, mas provém unicamente da emoção e da experiência vivencial.
A inteligência - desprezada e odiada por Lutero - impede que o homem chegue ao verdadeiro conhecimento de Deus, que segundo Lutero se dá através da experiência catalisada pela leitura da Bíblia.
A fé protestante é confiança: confiança de que está salvo, confiança de que realmente Cristo revelou o Deus inerente ao homem.
Ao desprezar a inteligência e confiar (= fé) somente na experiência religiosa, o fiel protestante estaria eliminando a segunda prisão do demiurgo.
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O sola gratia vai contra a verdadeira graça santificante.
Esse princípio atesta que o fiel justificado está livre de pecado, não porque não os possua mais ou não possa cometê-los, mas porque os têm encobertos pela graça de Cristo. Assim, o justificado tem graça e pecado ao mesmo tempo - simul iustus et peccator. Com isso, dá-se ao fiel a ilusão de impecabilidade, e mesmo a permissão de pecar com a garantia do perdão antecipado - é o pecca fortiter.
Com isso, Lutero habilmente conseguiu impugnar os dez mandamentos, ao dizer que o homem é incapaz de praticá-los e, portanto, não pode ser culpado por cometê-los.
Ora, a graça é propriamente a participação na vida divina, pois a Santíssima Trindade de fato habita na alma justificada pelos méritos de Cristo. Como poderia habitar Deus e pecado na mesma alma? É impossível, e uma ofensa à graça divina. Por isso o pecado mortal é a expulsão de Deus da alma, cuja presença se adquire com o batismo e se recupera com a confissão.
Note, portanto, que o sola gratia é a libertação da terceira prisão do demiurgo - a moral.
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E o fiel liberto das três prisões, através dos três solæ - sola gratia, sola fidei, sola scriptura - o que é se torna?
Torna-se um cristão - no conceito de Lutero - livre para fazer o que bem entender, incluindo o livre-exame da Bíblia; não constrangido por nenhum mandamento, pois estaria salvo, certo de sua salvação pela confiança (fé) na remissão de Cristo. Daí Lutero expor essa visão no famoso: "A liberdade do cristão" de 1520.
E o cristão luterano passa a fazer parte do número dos eleitos, não por que tivesse mudado de vida, passado de pecador a justo, pois para Lutero o homem é predestinado para o céu ou para o inferno e nada pode fazer para mudar a sua condição. Na verdade, o cristão é justificado porque Deus já o predestinara à salvação. E como o cristão sabe que está salvo? Através da riqueza material e do sucesso, que são os sinais de sua amizade com Deus.
A busca da glória e da riqueza terrenas passa a ser a vocação - beruf, como explica Max Weber - o objetivo do protestante justificado, do cristão luterano. Começando pelos príncipes alemães que roubaram as terras da Igreja, tornando-se tiranos civis e religiosos.
O cristão luterano é de fato uma caricatura do santo, que adquire sua liberdade não pela imitação de Cristo e desprezo do mundo, mas pela libertação das prisões do demiurgo, como num rito iniciático. É uma espécie de consolamentum auto-impingido, mas sem a ascese dos cátaros, que é substituída pela fé-confiança que liberta sem esforço (essa é a novidade de Lutero em relação às outras seitas gnósticas que tentaram se passar por cristianismo: a substituição das obras pela fé como elemento de salvação antecipada).
Portanto, os três princípios luteranos que norteiam os protestantismos são a versão cristianizada da libertação das três prisões da gnose, que ensinam como o homem deve libertar a divindade cativa dentro dele.
Lutero cristianizou a gnose.
Daí seu sucesso, daí seu apoio esmagador.
Pois os inimigos de Deus são muitos...
É claro também que os três "solæ" - quando praticados conscientemente - levam a um pecado contra o Espírito Santo, que se chama presunção de salvação.
E só por isso já seriam censuráveis, pois ofendem a Deus de um modo irreversível.
Por isso, "Deus não está na sua Igreja", dizia são Francisco de Sales aos hereges suíços...
2007-02-15
12:02:03
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perguntado por
Maria Wangler
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Artes e Humanidades
➔ História