Agindo como um pontífice medieval emquestões morais, Karol Wojtyla mostra uma face progressista quando fala de problemas sociais e ataca a política belicosa da Casa Branca
Até o mais singelo querubim da Capela Sistina, na Basílica de São Pedro, está cansado de saber que o polonês Karol Jósef Wojtyla, o papa João Paulo II, é um pontífice profundamente conservador em questões morais, como divórcio, controle da natalidade, homossexualismo, celibato do clero, papel das mulheres na Igreja e aborto, sem falar de sua ferrenha oposição a determinadas modalidades de pesquisas científicas, como a clonagem para fins terapêuticos e o uso de embriões para o desenvolvimento das células-tronco. Também no plano político, o papa, que deu uma contribuição fundamental para a queda do comunismo, jamais aceitou a Teologia da Libertação, a teoria de caráter ideológico e pastoral que dá prioridade aos problemas sociais na evangelização. Mas o mesmo papa que parece um monge medieval perante os costumes da sociedade moderna tem se revelado um profundo crítico das mazelas das virtudes neoliberais que derrotaram o comunismo e um ferrenho defensor da justiça social e dos direitos humanos. “A globalização é dirigida pelas puras leis do mercado, conforme a conveniência dos mais poderosos”, diz o papa em um documento. “À luz da doutrina social da Igreja, compreende-se melhor a gravidade dos pecados sociais que clamam ao céu, porque geram violência, rompem a paz e a harmonia entre as comunidades de uma mesma nação, entre nações e entre as distintas zonas do continente.”
Nos últimos anos, por exemplo, mesmo alquebrado pela saúde precária, o papa voltou-se contra a política guerreira do presidente George W. Bush e seus aliados. De seu respeitável púlpito, entoou uma série de apelos pela paz. “Uma guerra representaria uma derrota para a humanidade e não seria moral nem legalmente justificada”, alertou o prelado a Bush antes da invasão do Iraque, em 2003. Encerrado oficialmente o ataque, o sumo pontífice ainda defendeu que o povo iraquiano “se torne o protagonista da reconstrução de seu país, com a ajuda da comunidade internacional”. Embora sua mensagem não tenha conseguido deter as forças agressoras nem a violência da resistência iraquiana, a atitude de João Paulo II sensibilizou pessoas de diferentes religiões, em muitos cantos do mundo.
Para pregar seus ideais, ele não mede esforços. Nem o atentado a tiros que sofreu, em maio de 1981, diminuiu a disposição de entrar em contato com seus semelhantes. De outubro de 1978 para cá, já contabilizou 100 viagens internacionais, duas delas ao Brasil, e outras 142 pela Itália. A capacidade de surpreender de João Paulo II sempre foi tremenda. Logo após ocupar o Palácio Apostólico, a residência do sumo pontífice, ele causou espécie ao interceder pela reconciliação entre Chile e Argentina, que brigavam pelo canal de Beagle, no extremo sul da América Latina. “Como poderia ficar observando quando dois países católicos se dirigem para a guerra?”, argumentou à época. No ano seguinte, 1979, fez a primeira de uma série histórica de viagens à Polônia, que integrava o antigo bloco socialista, liderado pela União Soviética. Foram nove dias de intensa comoção. Dos 35 milhões de habitantes do país, pelo menos dez milhões viram o papa ao vivo. Monitorado de perto por Moscou, capital soviética, o governo polonês não teve como controlar o impacto de sua presença no país, cujo regime estava em franco desmoronamento. O próprio pontífice substituiu em algumas ocasiões o tom pastoral da peregrinação, como em seu discurso de despedida, em Cracóvia, no sul da Polônia:
– Não é preciso ter medo. As fronteiras têm de ser abertas.
Primeiro papa não italiano eleito em 456 anos, Karol Wojtyla nasceu na pequena cidade de Wadowice, aos pés dos montes Cárpatos, a 50 quilômetros de Cracóvia, em 18 de maio de 1920. Ainda garoto, perdeu a mãe, Emilia. O irmão, Edmund, que era médico, morreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando a família já havia se mudado para Cracóvia. Pouco depois, Karol Wojtyla ficou órfão do pai, de quem herdara o nome. Completamente só antes de completar 21 anos, ele encarou o trabalho braçal para sobreviver à guerra e evitar uma deportação para a Alemanha. Primeiro, trabalhou em uma pedreira. Depois, em uma indústria química. Ao mesmo tempo, freqüentava um seminário clandestino, dirigido pelo arcebispo de Cracóvia, cardeal Adam Stefan Sapieha. Durante os anos da ocupação nazista na Polônia, a partir de 1939, várias instituições, inclusive universidades, funcionaram ilegalmente, com estudantes e professores arriscando a vida em troca de algumas horas de estudo em salas de aula improvisadas.
Princesa cristã – Como nove em cada dez poloneses de sua geração, Karol Wojtyla teve uma formação marcada pelo patriotismo e pela fé religiosa. Autor de uma biografia sobre o papa, o premiado jornalista Tad Szulc, morto em 2001, ressaltou a influência dessas raízes. “Ele é o pontífice da Igreja de quase um bilhão de católicos e desempenha um papel-chave na diplomacia mundial, mas continua sendo um patriota polonês, um filósofo polonês, um poeta polonês, um político polonês”, enfatizou Szulc. Para entender o significado da afirmação, basta lembrar que a Polônia surgiu como Estado ao mesmo tempo que aderiu ao catolicismo, em 966. Na ocasião, pensando em garantir seus domínios com uma aliança forte, o duque Mieszko I, de uma tribo pagã polonesa, casou-se com uma princesa cristã, Dobrova, da Boêmia. Como se não bastasse o antecedente, o papa nasceu no mesmo ano que a Polônia ressurgia no mapa, depois de passar 123 anos dividida entre a Rússia, a Prússia e a Áustria.
O vínculo com a pátria se estreitou ainda mais na juventude, durante a ocupação nazista, quando ele integrou a organização clandestina Unia, que lutava contra o III Reich. Wojtyla ainda fazia parte de um grupo conhecido como Teatro Rapsódico, que se apresentava secretamente para pequenas platéias, em residências particulares. “Os poloneses aprenderam, ao longo de diversas divisões do país no século XIX, que tanto os alemães como os russos lutaram para destruir a cultura nacional e a língua, e deveriam portanto usar os mesmos métodos de resistência sob o regime comunista que se seguiu à Segunda Guerra – com a adesão militante de Karol Wojtyla”, comparou Szulc.
Modernidade – Inspirador da criação do Sindicato Solidariedade e do movimento que culminou na queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, o papa ajudou a redefinir o mapa do mundo. “João Paulo II teve um papel fundamental na liquidação da Ordem de Yalta”, analisa o historiador Timothy Garton Ash, referindo-se à divisão de esferas de influência estabelecida entre os Estados Unidos e a União Soviética no pós-guerra. Mas, insatisfeito com a nova ordem mundial, João Paulo II hoje admite que o comunismo era um mal necessário. “Aquele mal (o comunismo) fora de certa maneira necessário ao mundo e ao homem. De fato, em certas situações concretas da existência humana, o mal se revela em alguma medida útil – porque cria ocasiões para o bem”, disse ele no livro Levantai-vos! Vamos!, lançado este ano.
No que diz respeito à preservação do tradicional modelo católico polonês, Karol Wojtyla não tem muito o que comemorar. “A modernidade se apoderou da Polônia do mesmo modo como se apoderou da Espanha e da Irlanda católicas”, diz o teólogo suíço Hans Küng. A análise do teólogo comprova que a impressionante trajetória de João Paulo II foi mesmo forjada na contradição que tem em uma de suas pontas o conservadorismo de uma aldeia. Na outra, uma intensa capacidade de definir estratégias globais, de falar muitas línguas e de se aproximar de quase todos os povos. Agora, somente a história dirá se João Paulo II será lembrado como o conservador autoritário que silenciou críticos, opôs-se às células-tronco e ao uso da camisinha ou como o pontífice que condenou a guerra, defendeu a justiça social, reconheceu que Galileu estava certo e, finalmente, pediu perdão pelos crimes cometidos pela Igreja Católica durante as Cruzadas, a Inquisição e a colonização
2007-01-29 03:08:02
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