O revelador dos vínculos político-econômicos entre público e privado, dados pelo modo de produção capitalista, é Karl Marx (1996), que os ampliou e foi além dos limites que Adam Smith e David Ricardo haviam alcançado. O vínculo político, segundo ele, é representado pela solução corporativo-institucional chamada "Estado" e sua dimensão pública, que adiante exploraremos. O vínculo econômico, surgido em função do modo de produção capitalista, integrará dois mecanismos para sua realização: um público - o tempo de trabalho socialmente necessário, disponível na mão de todos, e um privado - a acumulação do capital, que o novo modo de produção exigirá que seja restrito a poucos.
Segundo a visão marxista, o mercado é o elemento constituinte das relações sociais do novo modo de produção, como lugar de circulação e troca do capital: nele se colocam, de um lado, os compradores da força de trabalho, isto é, os proprietários do capital e, do outro lado, os vendedores, que só dispunham de sua força de trabalho, que se constitui em típica mercadoria, o principal produto a ser obtido no mercado.
É por intermédio da sua força de trabalho que os indivíduos, organizados socialmente de modos historicamente determinados, produzem objetos, produzem a si mesmos e produzem a sobrevivência da espécie. A equação entre consumo de força de trabalho num determinado período de tempo é que realiza o valor dos produtos do trabalho humano. Este tempo, que a força de trabalho utiliza na produção, é definido pela organização da sociedade construída historicamente segundo seus interesses e necessidades: por conta disso, pode-se falar em tempo de trabalho socialmente necessário como definidor de valor dos produtos. O valor sugere a generalização do trabalho humano como mercadoria, no que tem sido o motor do desenvolvimento da sociedade moderna e do capitalismo.
Marx (1996) acrescenta que o fator 'equivalente' se constitui no mecanismo que possibilita a apropriação privada do processo de trabalho coletivo realizado por sujeitos individuais. Ao dissecar este mecanismo, acaba por construir uma conceituação revolucionária, e moderna, para o conceito de propriedade, que não constitui mais parte fixa e firmemente localizada no mundo, adquirida por seu detentor de uma maneira ou de outra; ao contrário, passa a ter no próprio homem a sua origem, mais precisamente no corpo e na propriedade de força deste corpo, a que ele denominou de 'força de trabalho'.
Da capacidade da força de trabalho em produzir um excedente além do necessário para a obtenção das condições de sobrevivência, e da capacidade do capital em remunerar a compra desta força sempre mais próxima do limite de atendimento das necessidades materiais de sobrevivência do trabalhador, resulta a expropriação deste excedente, que constitui a mais-valia: unidade essencial que era capturada pelo capital em sua forma de conversão do trabalho! Trabalho convertido em capital constituía capacidade de adquirir trabalho que era capturado pelo capital. Gênese de relação contraditória sobre a qual, contudo, se assenta a possibilidade de apropriação privada do produto coletivo.
Em sua crítica a Marx, Arendt (1999) aponta o viés evolucionista que o fez tomar a sociedade moderna como superior em relação às que lhe antecederam, no nível elementar da questão da propriedade, que estabelece a separação entre público e privado. De fato, talvez mais preocupada com as fronteiras entre o público e o privado do que aquele autor, contrapõe que o pensador e militante alemão tomara uma dimensão do trabalho - o labor, envolvido na sobrevivência e na relação de transformação da natureza hostil - como sinônima integral daquele. Ao questionar este aspecto, a filósofa alemã vai buscar nos gregos o vínculo existente entre posse privada e vida pública, ressaltando que a dimensão envolvida com a sobrevivência estava restrita à esfera privada, e era inteiramente ausente de dimensão pública. Esta, no entanto, se mantém presa por uma relação de interdependência, pois, para gozar da vida em público, o indivíduo não podia estar expropriado da posse de bens privados, entre estes, o lar privado e a liberdade. A diferença entre privado e público repousa, portanto, na distinção entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado, e esta distinção, por sua vez, reside na supremacia do que era considerado público - a polis, sobre o que é privado - a oikos; embora fosse a propriedade desta última, com suas terras e escravos, que assegurasse a possibilidade de presença na primeira.
A vida pública era uma prática coletiva exercida pelos homens livres e, portanto, proprietários, num imediatismo sem mediações, num exercício de individualidades sem representações, com duas atividades: a ação (práxis) e o discurso (lexis), e representava a própria realização do humano. No mundo moderno, estas esferas diferem muito menos entre si: a política se tornou uma função da sociedade, e a ação, o discurso e o pensamento são superestruturas assentadas no interesse social, perante o qual a sociedade moderna impõe regras aos seus membros, tomados em igualdade, e espera, de cada um, certo tipo de comportamento geral.
Embora, como Marx, aponte o fato de que a sociedade moderna esteja voltada para as necessidades do homem, a pensadora alemã também discorda de que, no caso moderno, estas necessidades estejam orientadas pelo fato de que o trabalho passou a ocupar lugar central na nova sociedade, assumindo a esfera de preocupação pública, haja vista que é de sua exploração que se constrói e reproduz o capital. Neste particular, adverte-nos, pouco importa se uma nação se compõe de homens iguais ou desiguais, pois a sociedade contemporânea exige que os seus membros ajam como se fossem membros de uma enorme família dotada apenas de uma opinião e de um único interesse. E mais, a sociedade equaliza sempre e em quaisquer circunstâncias, exibindo como signo moderno a igualdade, elemento intrínseco que amalgama o social. A vitória da igualdade no mundo moderno é, para ela, fruto do reconhecimento jurídico e político de que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença reduziram-se a questões privadas do indivíduo.
Considerando que as divergências entre Arendt e Marx possam decorrer do fato de que observaram a realidade por meio de perspectivas diferentes, Wagner (2002) salienta que nenhum dos dois jamais acreditou nas leis do mercado como solução absoluta para os problemas do homem moderno, pois, segundo ela, não se pode confiar que o mercado se move sempre para o equilíbrio e seja capaz, por si próprio, de solucionar os problemas atuais da sociedade. Na medida em que se aprofundam os mecanismos de acumulação do capital via transformação produtiva, que enaltece o advento de tempo livre como conquista do homem do próximo século - só que um tempo livre desacompanhado dos meios de subsistência - e produz uma sensação de perda da durabilidade do mundo comum, tal afirmativa se insere na convicção de que o problema do mundo do trabalho é um problema político, tanto quanto econômico.
Além disso, há que se considerar a transição do conceito de 'econômico', que até o século XVII estava ligado ao círculo das tarefas do domicílio, do pater familiae, e que passa a se orientar pelo mercado. Segundo Habermas (1984), isso vai se dar porque as atividades e relações de dependência, até então confinadas ao âmbito da economia doméstica, ultrapassam o limiar do orçamento doméstico. Ao fazê-lo, surgem à luz da esfera pública, ou seja, são publicizadas. O desenvolvimento da esfera pública vai ocorrer intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo e da modernidade, e acompanhará as transformações advindas da organização do Estado moderno e das mudanças trazidas à vida política e à organização da sociedade, onde é uma esfera quase exclusivamente burguesa.
Para Habermas (1984), a evolução do modelo liberal de trocas da etapa mercantil do capitalismo, pela conjugação da concentração do capital e da organização de grandes empresas, produzirá relações verticais de concorrência imperfeita, preços independentes, e poder social em mãos privadas, gerando crises reveladoras da estrutura antagônica de sociedade e tornará urgente a necessidade de um elemento coercitivo forte, o Estado, dotado de representatividade e poder de eleger os interesses coletivos como seu alvo e sua função, que se transformam em polícia e burocracia no Estado moderno. Com tal representatividade, o Estado é visto como um espaço interno que estabelece critérios e valores norteadores das práticas de livre comércio; os destinatários de seu poder, as pessoas privadas submetidas a ela, constituem um público.
Assim investido, o Estado intervém profundamente no intercâmbio de mercadorias e no trabalho social, por meio de leis e de medidas administrativas, vinculadas aos interesses dominantes que buscam perturbações mínimas nas condições ideais de funcionamento da produção econômica, o que imprime uma ambigüidade peculiar às relações de regulação e organização do espaço: admitem ser regulamentados tanto quanto querem ser deixados livres em suas iniciativas. Além disso, a ambigüidade do intervencionismo estatal no mercado tende a estar ligada aos interesses da sociedade burguesa, e ao mesmo tempo, deverá se constituir de forma separada daquela. Esta ambivalência peculiar acaba por se alocar em sítios específicos: a regulamentação pública ao Estado e a iniciativa privada ao mercado. Estado e Sociedade civil constituirão, enfim, duas esferas distintas: pública e privada. Resistindo ao intervencionismo, a sociedade civil e burguesa se constitui em contrapeso à autoridade do Estado; este, por seu turno, vai se ancorar num interesse privado, próprio daqueles que controlam o exercício do poder estatal, que se consolida como algo tangenciável apenas pelos que lhe são subordinados, isto é, as pessoas privadas excluídas da participação no poder público.
A regulamentação, por sua vez, vai ser exercida como uma função atribuída a um grupo específico: os legisladores. A solução dada para a vida em comum nas sociedades capitalistas ocidentais passa pela separação entre a sociedade - a polis - e os espaços institucionais que vão se corporificando em grandes estruturas. Assim, os parlamentos modernos, embora adquiram ares de representação para a polis, na verdade, sequer parecem reais para a maioria dos cidadãos comuns (Bobbio, 1997). Sob esta dupla via, desenrola-se a elaboração de mecanismos muito sutis de dominação e controle na produção e reprodução das condições materiais de reprodutibilidade, mais tarde denominados por Gramsci (2000) de hegemonia.
Modernamente, segundo Arendt (1999), o que chamamos de sociedade pode ser considerado um conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem uma única família sobre-humana, cuja forma política de organização é denominada nação, e cujos negócios diários devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e gigantesca; condição que talvez dificulte nossa compreensão da divisão entre as esferas pública e privada, ou seja, entre a esfera da polis e a esfera da família. Entretanto, embora tenha avançado a diluição entre uma e outra, a sociedade atual não conseguiu fazer desaparecer a intrínseca relação entre pertencer a um lar privado, exercer a liberdade política e possuir condições de acesso e consumo dos serviços e bens da sociedade capitalista, como razões de modernidade.
Não obstante, a modernidade vai desmaterializar a questão da propriedade como condição imanente para a vida pública, sob a ótica do estabelecimento da cidadania realizada pela outorga do reconhecimento de uma pletora de direitos. Tipificados como direitos civis, direitos políticos e direitos sociais, e relacionados a períodos históricos do desenvolvimento da sociedade capitalista e da complexidade das relações sociais no seu bojo, caracterizam respostas específicas do Estado às demandas políticas e coletivas em períodos históricos definidos (Marshall, 1967 apud Donnangelo, 1976). Sob esta dupla transformação, a emersão do social aprofunda a diluição entre as classes sociais (segundo a ótica marxista, marcadas pela posição ocupada no modo de produção capitalista), pelo afrouxamento das fronteiras demarcatórias entre elas. Isto é, o 'social' se constitui como um espaço de interpenetração do público e do privado, justaposto ao desenvolvimento da sociedade capitalista e do aprofundamento da divisão social em classes.
A formação do 'social' produz uma decomposição da esfera pública, na alteração de suas funções políticas, pela mudança estrutural das relações entre esfera pública e setor privado. Esta mudança vai caracterizar a atual relação moderna entre esfera pública e privada, na qual ocorre uma interpenetração, isto é, uma parte da esfera privada vai se tornando pública, ao passo que o público, no fundo, se coloca a serviço dos interesses privados que o dominam. Esta separação é colocada em questão quando as forças sociais conquistam competências de autoridade pública, o que é resultado da constitucionalização de uma esfera pública politicamente ativa, isto é, pela transferência de competências públicas para entidades privadas, com base na emergência da questão social mediada pela afirmação de direitos (Habermas, 1984).
A modernidade, inaugurada no XIX, vai ser marcada pela emergência de uma cultura de classe média, na qual imperam necessidades hedonistas e sensualistas, socialmente produzidas no cuidado com o corpo e a entrega aos prazeres culturais, a que se associa uma preocupação hipocondríaca com a saúde, e para a qual a resposta da prática médica vai ser sobejamente adequada (Gay, 2002; Rosen, 1994). Contudo, tanto quanto a consolidação e o predomínio do modo burguês de produção, o desenvolvimento do capitalismo, em suas diversas etapas, constitui também uma história marcada pelo desenrolar de sucessivas crises, que fizeram aflorar a luta organizada dos principais afetados pela recessão e escassez econômica: os trabalhadores (Hobsbawm, 2002a; 2002b).
Os direitos sociais, especialmente dirigidos às classes e aos segmentos sociais desfavorecidos no contexto de crise, eram uma resposta do novo Estado, que incorporou novas funções a fim de manter o modo de produção equilibrado. Esta intenção preservadora pressupunha a extensão de sua base de legitimação, que seria obtida pela participação de outros contingentes populacionais no processo de usufruto do produto comum. Tal participação implicava uma socialização do produto comum, ou de parcelas, por meio da ação do Estado no controle e regulação da atividade de mercado, no sentido de orientar a produção e disciplinar o esforço coletivo de consumir como política pública, ou seja, parece apontar a necessidade de 'domesticação' do ímpeto capitalista (Boron, 1994).
O aparecimento do 'social' permite, portanto, reconhecer a tradução que as grandes massas conseguem fazer aos antagonismos econômicos tornados conflitos políticos. À medida que o conjunto de não-proprietários assume dimensão e tamanho, emerge a questão da pobreza como uma questão social, e como problema para a ação estatal, isto é, parte da esfera privada da sociedade é tornada publicamente relevante. O processo de substituição de poder público pelo poder social revela o fracasso da desvinculação da esfera pública frente aos interesses privados, pois as próprias condições em que deveria ocorrer a privatização dos interesses foram trazidas para a disputa dos interesses organizados. Este fato dissolve o setor como aquele no qual as pessoas privadas reunidas num público (coletivo) regulam entre si as questões gerais de seu intercâmbio, ou seja, a visão liberal da esfera pública.
A estes efeitos, certamente, correspondeu o desenvolvimento de mecanismos de assistência, tanto pública quanto privada, mais aquela do que esta. Tal intervenção se configurou em praticamente todas as sociedades capitalistas européias em formação. Particularmente na Inglaterra, nas várias etapas do desenvolvimento capitalista, a assistência à pobreza implicou, inclusive, a assistência médica, e revela o caráter de tutela da sociedade sobre tais massas (Rosen, 1994; Donnangelo, 1976). Tutela que é, também, uma reação ao temor latente gerado pela presença de grupos altamente móveis, e vistos como perigosos à sociedade, ou mesmo reação aos períodos cíclicos de crises e rupturas, que põem em risco a estabilidade institucional, e que podem ser apontadas em períodos bem datados.
Tais intervenções cumprem um duplo papel - de um lado, vão ao encontro dos interesses dos economicamente mais fracos, de outro, também servem para repeli-los, mas, acima de tudo, demonstram o interesse na manutenção do equilíbrio do sistema, que não pode ser assegurado unicamente por intermédio do mercado livre. Como exemplo, as formulações de Keynes (1996) no pós-guerra apontavam como principais defeitos da sociedade econômica a incapacidade de proporcionar o pleno emprego, e a arbitrária e desigual distribuição de riqueza e das rendas. E propunham a intervenção estatal sobre a atividade econômica, pela adoção de um sistema de tributação e pela fixação de uma taxa de juros; também não excluíam a adoção de outras medidas para que os investimentos assegurassem o pleno emprego. No entanto, reconheciam que isso não implicava a exclusão de ajustes e fórmulas de toda espécie, que permitissem ao Estado cooperar com a iniciativa privada: pressuposto que tem sido recuperado em certas formulações de governos atuais, o que não revela o caráter burguês de suas origens.
As formulações keynesianas, cujo conjunto de políticas sociais resultou no chamado Estado de Bem-Estar, colocaram, segundo Heilbroner (1996), a ampliação das funções do Estado - em que este assume um caráter de organismo planejador, regulador da liberdade de mercado - na seqüência do esgotamento da visão liberal mais ortodoxa. Analisando esta etapa do desenvolvimento capitalista, Boron (2002; 1994) considera que essa experiência social e econômica levou a um efeito contraditório: tanto a classe burguesa não pode sobreviver sem o auxílio da hipertrofia do Estado - aliás, como o demonstra o funcionamento real do capitalismo maduro e a despeito das negativas que fazem seus profetas ultraliberais - quanto a classe operária tampouco está disposta a reverter os avanços sociais conquistados, em sua secular luta contra a burguesia, e que se cristalizam no chamado Estado benfeitor. Já Oliveira (2000), por exemplo, considera que a esfera pública burguesa, tanto na perspectiva 'habermasiana', de espaço de sujeitos privados em relação ao Estado, quanto 'marxista', de lugar de concorrência dos capitais, foi processada pelo Estado de Bem-Estar para uma forma não-burguesa. Neste caso, o Estado de Bem-Estar configura uma regulação de fora, tanto sobre os sujeitos privados, quanto sobre o mercado da força de trabalho, provocando profundas modificações (quer internas, quer externas) na classe operária.
Em suma, ser permanente foco de tensões é um elemento característico da natureza da relação entre as duas esferas, a pública e a privada; relação que foi se tornando cada vez mais problemática à medida que avança a massa de não-proprietários, de excluídos, que vão perseguir, por meio de intervenções públicas no setor privado, o êxito contra a tendência à concentração de capital, e fazer com que a sua participação se revele. Aumentando e diminuindo ciclicamente ao longo da história, irá produzindo focos de reivindicações a que o Estado procurará dar resposta, embora preso aos interesses de equilíbrio do sistema e da manutenção de sua própria legitimação. O tamanho da porosidade com que se deixa penetrar pela massa de proprietários e não-proprietários é que vai dar a condição de legitimidade e de publicidade com que este 'interesse público' vai ser identificado, e que tipo de constituição vai lograr obter, assim como a própria avaliação que vai receber na forma de opinião pública (Habermas, 1984).
2006-12-19 07:51:32
·
answer #6
·
answered by Anonymous
·
0⤊
1⤋