DESDE AS ÉPOCAS IMEMORIAIS, pode-se admitir, no homem, um como duplo funcionamento do cérebro, levando-o já a ajustamentos realísticos com o meio, já a transfigurações de certos aspectos do meio para uma adaptação simbólica à existência. Para o ajustamento realístico dispunha do saber prático ou empírico; para o ajustamento simbólico ou espiritual, do saber mítico ou religioso. Pelo conhecimento prático, o seu cérebro modificava o meio em que vivia; e pelo conhecimento mítico, por um lado, o romantizava, para melhor suportá-lo e, por outro, dele, de certo modo, se evadia.
Os dois processos intelectuais operavam, entretanto sem consciência de sua própria elaboração, num automatismo que tornava impossível a mudança ou o progresso, salvo por desvio inesperado. Produto de experiência e erro no campo prático e de algum acidente imemorial no campo mítico ou religioso, o saber dos homens se transmitia passivamente, por tradição sempre zelosamente guardada, e, no caso do saber religioso, agravado o zelo pelo caráter de intangibilidade que lhe conferia a atribuída qualidade de sagrado.
Qualquer possibilidade de mudança em tal estado de cousas só poderia sobrevir se a criatura humana pudesse ser arrancada do estado de reverência com que se prendia às suas artes ou aos seus mitos, como algo que lhe tivesse sido inexplicavelmente legado ou revelado e cujo segredo jamais poderia desvendar. Tal estado de submissão era, aliás, nutrido e alimentado por toda sorte de temores, ante um mundo misterioso, inseguro e hostil.
Como na evolução biológica, o progresso humano, intelectual e social, não é algo de sempre contínuo e fluente, mas um processo também de saltos e mutações. As fases do seu desenvolvimento constituem superações às condições dominantes, que abrem novos horizontes e novas visões. A superação ao prolongado estágio de marcha ao compasso da tradição veio, afinal, a processar-se, quando uma civilização material mais brilhante deu ao homem a parcela de segurança indispensável ao começo de libertação do seu poder mental. Esta nova segurança levou-o a questionar a tradição.
Operou-se então, o que costumamos chamar o "milagre grego"
O milagre resultou da ocorrência de uma classe intelectual liberta de maiores preocupações materiais e, deste modo, dos temores mais aflitivos, além de curiosamente desligada de vínculos sacerdotais. A "democracia" helênica, nessa atmosfera assim tranqüila e segura, produziu um grupo de intelectuais, marcados de singular independência em relação a certos aspectos da tradição, que empreende nada mais nada menos que a análise, a crítica e a classificação do saber humano, existente – não, entretanto, do saber prático, de logo o digamos, que este não merecia sequer, para uma classe que não o praticava, o nome de saber – mas do saber representado pelos mitos, conceitos e interpretações predominantes entre os cidadãos livres das suas cidades.
A contribuição grega consistiu em descobrir um critério para avaliar e sistematizar esse saber conceptual: o critério racional. Tal critério, antes de tudo estético, de proporção, harmonia, medida, constitui, na realidade, o traço que ainda ligaria os gregos a toda a tradição do espírito humano –- antes poético e mítico, que prático ou realístico. Biologicamente, os olhos existem para ver, mas, no homem, os olhos também contemplam e emprestam sigificação e importância simbólicas aos acontecimentos e às coisas. Tal "blasfêmia" biológica – "biologicamente, diz-nos Roger Fry, a arte é uma blasfêmia; temos olhos para ver e não para contemplar as coisas"() – parece-me constituir uma chave para interpretar a evolução do espírito humano.
O homem, com efeito, já imemorialmente se caracteriza antes como animal estético, do que realista e prático. A sua lenta e penosa adaptação à vida não se fez senão parcialmente no nível prático: somente no que fosse absolutamente imprescindível à sobrevivência física imediata... No mais, a adaptação foi poética e mítica, pela interpretação do mundo ao gosto de seu terror ou de sua fantasia, ou ao peso das tradições que lhe vinham das profundidades do tempo.
A faculdade poética do homem levou-o assim a transubstanciar imaginativamente o mundo em que realmente vivia, num mundo de conceitos, sonhos, mitos, costumes milenares, e só parcialmente no dos "fatos teimosos" – os "stubborn facts" de que nos fala William James – da sua existência material e concreta.
Essa característica da evolução humana não se interrompe na Grécia. Mas alcança, ali, inesperado desenvolvimento, com a tomada de consciência da capacidade criadora da mente, a mesma mente humana que, por milênios sem conta, vinha, sem o saber, penosamente elaborando, conceitos e visões grosseiramente inexatos, mas romanticamente idealizados, do próprio, homem e do seu universo.
Se tomarmos Tales, de Mileto, como o precursor da nova atitude do homem em face de sua própria mente, veremos que a especulação intelectual de uma classe de estudiosos, desligada de vínculos sacerdotais, isto é, do propósito de guardar e conservar cegamente a herança social, tanto quanto da necessidade de trabalhar materialmente, em pouco mais de duzentos anos, dá-nos Sócrates e Platão, este a erguer, ante o espírito humano, uma hipótese de interpretação do universo e do homem, cuja independência da tradição só é superada pela própria amplitude e que ofusca as precedentes criações místicas da mente humana, como um jorro de luz apaga as incertezas e sombras da obscuridade. Com ele, a independência do espírito humano se afirma. O processo contínuo de criação da mente, tomando consciência de si mesmo, faz-se intencional, voluntário, especulativamente experimental, e se critica e se revê nas suas hipóteses e tentativas.
O incerto e obscuro pensamento humano faz-se, assim, nesse alvorecer da Academia, algo como um livre jogo feliz, independente e tolerante de plausibilidades e alternativas. Era o pensamento especulativo que tomava posse de si mesmo.
O homem, entretanto, continua dividido entre a necessidade de compreender o universo e a si próprio, para obter a sua integração estética ou religiosa, e a necessidade material, contingente de subsistir. Os problemas mentais para resolver as duas necessidades continuam distintos. As necessidades materiais da vida se valiam da inteligência realística, com a aceitação dos "fatos duros e teimosos" e com o exercício das artes mecânicas e plásticas. As necessidades de integração mais profunda ou mais alta – as necessidades da alma, no sentido em que Platão usa o termo – valiam-se do pensamento mítico; mas, já agora, graças ao mesmo Platão, transformado em especulação metafísica, consciente, deliberada, independente e, por isto mesmo, tolerante e progressiva, embora sem maior exame, baseada na observação do senso comum, cujos métodos – ao contrário dos especulativos – não pretende o novo saber grego desenvolver nem renovar.
O passo dado foi, não obstante, imenso. E seria talvez absurdo desejá-lo então mais completo.
Os gregos formularam, retificaram o processo especulativo da mente humana e o reajustaram à observação do senso comum. Não chegaram à revisão do processo de observação; mas aí não chegaram porque não lhes poderia ocorrer ainda questionar o próprio senso comum.
A sua teoria do conhecimento. foi a teoria que John Dewey chamou do espectador, mais interessado em contemplar o universo, para de algum modo o explicar, do que em dominar-lhe os processos, para de algum modo o controlar. O primeiro passo, entretanto, fora dado, pois tentar deliberadamente esquemas de interpretação de si mesmo e do mundo era o caminho para novos esquemas. A descoberta não estava tanto na compreensão obtida, como na idéia de esquemas, tentativas, ensaios de compreensão e interpretação. A experiência intelectual grega vale, sobretudo, pelo caráter de hipóteses, de plausibilidades, que passou a dar às criações do espírito.
A disciplinação do poder conceptual, assim obtida, mesmo como pura experiência especulativa, era a disciplinação do que havia de mais arbitrário, mais inconseqüente, mais obscuro na história da mente humana. Os gregos, por meio de seus jogos intelectuais com as figuras geométricas e as relações matemáticas, descobriram que certas proporções e certas medidas, achadas em suas manipulações com aquelas figuras e com os números, existiam no que lhes parecia belo e composto, e fundaram na equivalência encontrada as suas generalizações de harmonia, simetria e sistema. Por outro lado, as especulações lógicas desvendaram as relações semânticas e proposicionais e lhes permitiram formular a lógica do discurso, com os seus processos dedutivos e indutivos.
Era especulação, sem dúvida, de escassa base empírica, mas, de qualquer modo, fundada, controlada, sistematizada e já muito afastada dos aspectos capricliosos ou fantasiosos do conceptualismo anterior, totalmente desligado de qualquer coerência com a observação mesmo grosseira dos sentidos.
A observação continuava, em verdade, com as graves deficiências do passado. A ênfase estava na concepção, na descoberta de certas fórmulas matemáticas e lógicas de interpretação da realidade. A observação era utilizada tal qual existia no senso comum da espécie. A mente, pela contemplação dos seres e das coisas, é que concebia, ou revelava o mundo. Não era a observação que estava sob reforma, e sim, insistamos, o processo de elaborar idéias, concepções, teorias plausíveis em face do critério racional, então desvendado, e da observação comum, esta não questionada ainda. Para as falhas possíveis desta observação, produzia a mente as suposições ou idéias, que se tornassem necessárias, naturalmente arbitrárias, por não julgarem possível voltar à observação para lhes rever os dados imediatos. Para ilustrar, basta recordar a teoria grega da gravidade, ou a sua cosmologia, ou as suas teorias de causalidade física.
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Para se verificar quanto é difícil o ir e vir de hoje, entre o pensamento especulativo e a observação, que nos, produz o pensamento científico moderno, ensaiemos aqui, embora rapidamente, descrever o processo mental como presentemente o concebemos.
Todo o comportamento inteligente de ajustamento às condições ambientes, no homem como nos animais, é um comportamento baseado na percepção de sinais, no seu sentido literal. O fundamento deste saber é a aceitação espontânea, no contacto direto com a realidade, do que parece ser fato. Sobre esta base, apreendida imediatamente pelos sentidos, erguem-se tantas outras suposições ou idéias, quantas necessárias para uma adaptação mental do homem à sua situação ambiente.
A imediata e literal apreensão dos fatos ou sinais da existência não tem diferença essencial da percepção animal e produz o comportamento chamado inteligente, comum aos animais e ao homem. A distinção humana consiste não em ser inteligente, mas em pensar. E o pensamento é algo que parte daquele ponto de contacto, imediato com a experiência, em que os fatos são sinais que condicionam o comportamento, para chegar ao símbolo significativo, em que transforma e pelo qual interpreta aqueles sinais (ou seja a realidade imediata), elaborando, então, os conceitos e muitos que passam a determinar o comportamento, não já animal, mas propriamente humano.
Por isso mesmo, o pensamento não é originariamente realístico, direto e prático, mas metafórico, poético, interpretativo e, afinal, mítico e mágico.
Prático e realístico é o comportamento por ajustamento direto às condições da vida, como que anterior ao pensamento e, embora mais rico e flexível no homem, indiferenciado, em essência, do comportamento animal inteligente. Esse ajustamento produz o saber por familiaridade (knowledge by acquaintance) e de que decorrem a maioria dos nossos hábitos e o nosso saber prático, derivado dos dados da experiência, aceitos em sua significação espontânea e direta.
O pensamento propriamente dito, sucedendo à palavra ou nela se fundando, toma esses dados não como sinais, mas como símbolos significativos, isto é, sinais transformados pela faculdade de interpretação simbólica da mente humana, e com eles joga em busca de relações de coerência e lógica, que se afastam da realidade, tanto mais, quanto o espírito humano estiver desligado das origens empíricas dos seus símbolos.
A capacidade humana de transformação simbólica da experiência, entretanto, só amadurece, só se faz adulta e objetivamente eficaz, quando o homem a desenvolve até ao ponto de poder unir a sua percepção dos dados da experiência, como sinais, à percepção deles, como símbolos, retificando nestes toda a parte digamos metafórica e fazendo com que o pensamento simbólico se faça ele próprio realístico, reencontrando-se, assim, no campo do comportamento inteligente primitivo, porém armado já agora de significações muito mais complexas do que as que, originariamente, orientava a imediata conduta, ajustada, porém quase animal do homem.
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A valer tão breve descrição do nosso processo mental, como ora o encaramos, já podemos compreender quanto havia de ser inevitável a demorada evolução da espécie humana até o pensamento realístico em que ela, hoje, começa apenas a ingressar.
Todo o mecanismo simbólico do pensamento tendia a afastá-la da realidade e levá-la a viver entre as construções do seu espírito, erguidas sobre os símbolos de sua linguagem e desenvolvidas em outros símbolos derivados dos primeiros, numa série praticamente indefinida.
Os fatos eram apenas aquelas Gestalten imediatas que lhes apresentavam os sentidos. E daí o espírito humano partia, com as palavras, já elas símbolos, para as interpretações que seu poder de transformação simbólica livremente criava, em face das necessidades lógicas, decorrentes elas próprias do mecanismo verbal e simbólico do pensamento.
A saída desse círculo vicioso, que caracterizava o próprio pensamento humano, só podia começar com uma preliminar mudança de atitude dos homens em relação aos seus próprios símbolos, isto é, às suas palavras, aos seus mitos e aos seus ritos. Foi esta mudança que os gregos, inicialmente e em parte, nos trouxeram. Os homens entraram, então, a questionar os seus símbolos, as suas palavras, a indagar até que ponto podiam ser sistematizados, isto é, podiam ser descobertas as suas implicações e relações.
Tal atitude de parar e indagar representou o primeiro passo de amadurecimento do espírito humano, o primeiro passo no processo de não se deixar levar pela sua própria capacidade de transformação simbólica, mas de vigiar essa força, de controlá-la, de verificar onde o levava.
Com esse esforço, como já dissemos, não pretenderam os gregos rever os dados originais do pensamento humano, ou seja a experiência comum da espécie, mas rever o pensamento mesmo, em essência simbólico, interpretativo e irrealístico, destinado a construir uma interpretação do mundo, e não a conhecê-lo, no sentido moderno do termo e quiçá no sentido prático primitivo, para controlá-lo e transformá-lo.
De qualquer modo, chegamos, com os gregos, ao que já podemos considerar as origens do nosso mundo moderno. Começa, então, o homem a formular intelectualmente a sua experiência em uma filosofia e uma ciência, cujo desenvolvimento, a despeito de paradas, de parênteses e divagações, no fundo não mais se interrompe e vem, de estágio em estágio, que menos se negam do que se superam, reconstruindo a visão do mundo e dirigindo ou redirigindo a civilização humana.
Devido a circunstâncias sociais e também ao caráter dominantemente especulativo da formulação grega da experiência humana, conservam-se, entretanto, distintos os dois campos do saber humano: o prático ou empírico e o racional ou teórico. Somente merecia o título de conhecimento, de saber – o segundo. O conhecimento prático só poderia fornecer opiniões. Em rigor, somente o conhecimento obtido pela mente, por meio de reflexões e concepções, que não envolvessem o corpo embora utilizassem os dados do senso comum, teria aquele grau de certeza que caracterizaria o saber filosófico-científico, teórico, racional.
Para os gregos, note-se, pensamento era atividade; mas, atividade do espírito, não envolvendo o corpo, nem a matéria, e constituindo algo de superior às atividades que importassem em atos materiais de manipular e fazer. Pensar era parcela e atividade divina no homem, sendo Deus o "ato puro", sem mistura com a matéria. Os homens tanto melhor pensariam quanto mais usassem o espírito e mais distanciados ficassem das contingências materiais.
Baseado nesse pressuposto, o senso de harmonia dos gregos, ajudado pelas circunstâncias históricas, levou-os a classificar como atividade perfeita a da mente em busca do conhecimento do imutável e eterno, em oposição à de procurar conhecer o mutável, efêmero e passageiro. A filosofia e a ciência eram o conhecimento e a contemplação do absoluto, que constituía a base perene e eterna do fluxo aparente das coisas. O outro saber, o saber mecânico das artes ou o saber prático dos homens, era saber imperfeito e inferior, contingente à condição humana, mas insuscetível de elevá-los ao quase divino da pura contemplação das idéias e das verdades puras.
Deste modo substituíram os gregos, é certo, a linhagem cabalística, mítica e ritual dos sacerdotes, dos profetas e dos magos, mas para criar, não ainda a dos cientistas, como os entendemos hoje, e sim a dos escolásticos, antecessores dos nossos professores de hoje. A nova classe intelectual, já destacada da sacerdotal, está interessada no conhecimento pelo conhecimento; é uma nova espécie de contemplativos, cheios de curiosidade, no sentido alto da palavra, mas de curiosidade pelo reino do absoluto, do imutável e do eterno, e de desdém pelo mundo contingente, mutável e frustro dos mortais. (Um novo sacerdócio, o cristão, viria apoiar nesse dualismo a sua teologia e, por mais alguns séculos, retardar a marcha da inteligência humana, mumificando a filosofia e ciência dos gregos como algo definitivo e perene, de que o espírito humano não mais pudesse nem devesse libertar-se).
Se havia tal dualismo e as suas conseqüências estão longe ainda de se haverem esgotado, convém, entretanto, assinalar que entre os gregos, não havia, contudo, o dualismo entre filosofia e ciência. Uma e outra eram a mesma coisa ou quando muito aspectos diversos, porém integrados do mesmo empreendimento humano. Fosse Platão, mais dominado pelas preocupações matemáticas, fosse Aristóteles mais envolvido nas considerações lógicas e na classificação e demonstração das coisas, teríamos em ambos o filósofo e o cientista trabalhando de mãos dadas. O conhecimento filosófico fundava o conhecimento científico e ambos se integravam em uma só cosmologia e uma só metafísica.
Afora a alegria de conhecer e certa submissão sábia às contingências da vida, que apesar de intelectualmente insignificantes e mesmo indignas de serem objeto do pensamento, eram entretanto implacáveis, – esse saber humano nada mais produzia, revelando-se, por um lado, impotente e, por outro lado, desinteressado, ante os problemas de transformação das condições do mundo. Este continuava a ser conformado, limitadamente e muito lentamente, pelo saber empírico, tradicional, ou de raro em raro ocorrente; pelo saber de experiência feito, pelos conhecimentos práticos e inexatos – assim julgados e na verdade imperfeitos – de "mestres" e "oficiais", dos artesãos, que já existiam na Grécia e continuaram pelo tempo adiante a progredir nas linhas restritas e apartadas da aprendizagem pela ação e pelo trabalho. Os descobrimentos e invenções não eram feitos pela filosofia ou pela ciência, mas por aqueles práticos. (Salvo o episódio de Arquimedes, ainda no tempo dos gregos, mas que não teve seqüência, nem conseqüência.) A filosofia e a ciência antigas estariam, com efeito, preocupadas talvez com a ordenação social da vida humana, porém nada tinham a ver com o seu progresso material.
A realidade é que a ciência, como a concebemos hoje, somente pôde surgir e em verdade surge, com a vitória dos métodos da observação sobre os métodos da pura especulação, de que se fez símbolo a famosa e legendária experiência de Galileu na torre de Pisa. Nesse dia, encerram-se os "infindos debates" da Idade Média, a que se refere Whitehead, e, assim como os gregos criaram o "critério racional", para a avaliação e a crítica das nossas idéias e intuições, Galileu cria o "critério da experimentação", para guiar a nossa observação e rever as nossas intuições, conceitos, idéias e julgamentos.
Era uma segunda superação, mutação ou salto no desenvolvimento humano, e com ele deveria ter-se operado, afinal, a unificação, sob certo aspecto, dos dois processos imemoriais de saber – o saber prático ou empírico e o saber racional ou especulativo. Porque este, para se confirmar, passou a exigir a observação, antes, e a experimentação depois, e observar ou experimentar não são processos exclusivamente "mentais", mas fundamentalmente operacionais, isto é, materiais, objetivos e concretos. Fazer, então, passou a ser essencial para o próprio ato de pensar. Aprendia-se, fazendo, no mundo do saber prático, empírico ou rotineiro; aprende-se, fazendo, no mundo do saber científico por mais "puro" ou "teórico", descobridor de leis gerais e criador de teorias, que ele seja e continue a ser. Graças à ênfase desse modo dada ao que mesmo Whitehead chama a Ordem da Observação, a Ordem Conceptual iria sofrer nova e verdadeira revolução.
Se os gregos deram ao nosso modo intuitivo de conceber o Universo ou à Ordem Conceptual, as suas leis matemáticas e lógicas, Galileu e seus sucessores deram à Ordem da Observação os seus métodos, os seus instrumentos, a sua gradual a crescente exatidão. Nenhuma das duas Ordens poderia mais existir sozinha frutuosamente. Enquanto estiveram ou estejam isoladas, a observação não passa, entre os antigos, do nível do senso comum, isto é, é grosseira, defeituosa e inexata; e, entre os modernos, de estéril acumulação de fatos; e a especulação conceptual, por seu lado, de racionalizadora e não realística, embora, muitas vezes, bela e harmoniosa.
A aliança entre as duas ordens é que irá tornar ambas fecundas e produzir o progresso acelerado em que começamos a entrar do século dezesseis em diante, até os dias quase sem fôlego de hoje.
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Mas, a despeito da aliança, afinal operada, entre a observação e a especulação, a experimentação e a concepção, por que não se processou até o ponto que já podia e devia ser atingido, a união entre as artes práticas e as artes do chamado saber racional, entre a prática e a teoria? Estabelecido o método experimental, identificado, em sua essência, o processo de obter o conhecimento e o saber com o método empírico, sistematizado, purificado e refinado, que sempre conduziu toda a ação prática humana e a aquisição pelo homem de suas artes e de seus modos de viver, – por que se mantém até hoje a distinção (na realidade, o dualismo), entre a prática e a teoria, o empírico e o racional, o manual e o intelectual, a ação e o pensamento, o útil e o espiritual?
É que os hábitos humanos são difíceis de mudar. Afora a adaptação prática à vida, conseguida pelo saber prático, o homem, com o saber teológico ou filosófico buscou, acima de tudo, a sua integração pessoal em um estado de segurança e de certeza. Ora, entre a perfeita segurança – obtida no estágio chamado primitivo, pela aliança com os supostos ou acreditados poderes supremos do universo, por intermédio dos ritos e cerimoniais da religião e, no início de nossa época, pela participação na vida da razão, do sumo Espírito que tudo movia e envolvia e a segurança relativa, que as artes práticas anteriormente e depois a ciência, como a entendemos hoje, lhes podem oferecer, continuam os homens a flutuar, divididos entre os dois mundos, buscando agora os controles da ciência e logo mais a "salvação", ou seja a certeza absoluta que não encontram na segurança relativa e em constante perigo da vida terrena, governada pelas artes práticas ou pela ciência, mas na evasão das condições práticas da existência e no refúgio da religião, ou da filosofia.
A vida do espírito, em oposição à vida de ação e trabalho, tal como a imaginaram os gregos, nunca mais pôde ser completamente abandonada, mantendo-se, ao contrário, como uma expressão superior da busca da certeza e do absoluto, que os primitivos punham na religião com o seu mundo sobrenatural, e a filosofia grega pôs na Razão como mundo ideal, liberto das contingências e perigos.
Toda a vida humana é, com efeito, uma busca da segurança. Não a conseguindo na vida corrente, a engenhosidade grega procurou-a numa Realidade anterior e superior à realidade do mundo, considerando-a o só e único objeto digno do conhecimento. Em tal realidade, concebida pela mente por um processo de atividade própria, iniciado nos sentidos, por certo, mas somente aí iniciado e resolvendo-se depois em atividade mental pura, encontraria o homem o mundo seguro e absoluto do Ser e não das aparências do Ser. A apreensão intuitiva da essência das coisas, nas suas mais amplas generalizações, constituía o supremo conhecimento, e este conhecimento, a Suprema Realidade. Em rigor, o saber digno de tal nome era assim o saber metafísico, que lidava com o Ser em sua última generalização, e os demais saberes, tanto mais imperfeitos quanto mais mutáveis fossem seus objetos, não passavam de opiniões, sem segurança nem importância, pois se referiam ao contingente, ao variável e diverso, a algo infectado, como observou Dewey, de não-ser, ou seja de não-realidade.
O método da razão, apesar de tão harmonioso e tão original, não se destinava, portanto, a emancipar a humanidade do equívoco fundamental de sua existência, isto é, o equívoco de buscar a certeza e a segurança fora da realidade contingente ou do universo. Pelo contrário, era uma confirmação das velhas crenças da humanidade e a formulação intelectual do seu sonho de segurança e certeza fora do mundo, já não em algum céu, mas numa Realidade superior e absoluta, a ser atingida pela mente e pelo saber.
É de crer que, se houvessem podido os gregos continuar as suas especulações, acabassem por chegar ao conhecimento científico, como o concebemos hoje, para sobre ele basear um novo conceito de certeza e de segurança. Mas, a queda de sua civilização, o período romano conseqüente, mais de dominação do que de liberdade, e toda a insegurança e confusão relativamente prolongadas da Idade Média não permitiram que se renovassem condições propícias à continuação da sua vigorosa aventura de inteligência. Somente com os grandes descobrimentos, reabrem-se os horizontes humanos e retomam os renascentistas o pensamento grego para lhe continuarem a carreira interrompida.
Ainda no transcurso, entretanto, da Idade Média, certos homens estranhos andaram a pensar no verdadeiro saber como algo de semelhante ao saber prático, isto é, algo de poderoso, algo que ensinasse a fazer e refazer as coisas de modo diferente, algo que não fosse puramente estético e, de fato, estático, mas dinâmico, importando no controle das próprias coisas, ao revés da sua contemplação, tão-somente.
Os matemáticos, por um lado, retomando a linha das melhores especulações gregas, e os alquimistas, por outro lado, acabaram por se fazer precursores da nova ciência, de que Bacon se faz o profeta. Eram os "fatos", e não os conceitos, a nova paixão... Mas, nem por isto, chegamos de logo à aplicação deliberada do conhecimento à vida. Toda a ciência dos séculos dezesseis, dezessete e dezoito ainda mantém o seu espírito de interpretação do universo, de busca da sua Realidade Verdadeira e não o da procura deliberada dos meios de o controlar. A vida do espírito, a vida do saber ainda são a contemplação, já agora da "natureza", concebida como algo de seguro, de definitivo, de permanente...
O caráter ainda, de certo modo, religioso de toda a filosofia dessa fase relativamente recente do pensamento humano, lembra as origens desse mesmo pensamento: – mítico e sacerdotal na antigüidade, secularizado na Grécia, mas, em essência teológico, como teológico se conserva em toda a Idade Média e agora, com a ciência dos séculos dezessete e dezoito, ainda religioso, embora busque desprender-se da teologia, com o artifício de considerar a "natureza" – sistema fechado, mecanicista e materialista, de que Deus seria o motor ex-machina – como algo que pudesse ser objeto independente de conhecimento e contemplação... Continuamos, na realidade, em plena fórmula grega: saber é o conhecimento do definitivo, do absoluto, agora transferido à própria natureza – cujos segredos o homem desvenda para melhor compreender a Realidade e aí encontrar a segurança absoluta porque anseia o seu espírito. A outra segurança, a relativa, a obtida pelo domínio das condições do meio, continua entregue às artes – práticas, liberais e sociais – que, ainda como na Grécia, não são plenamente ciência nem saber.
O dualismo, pois perdura e responde a atitudes ancestrais do homem, em face do mundo e de si mesmo...
A teoria da evolução, no século dezenove, e a teoria da relatividade, já no século vinte, pontos altos, talvez os mais altos, no desenvolvimento que estamos encarando, é que vêm, afinal, dar-nos as idéias modernas de hoje, pelas quais passamos a compreender o universo e o homem como processo dinâmico de criação permanente, em que natureza e homem não se distinguem, mas são partes do mesmo processo. Nesse processo, há começos, continuidades, repetições, terminações – constantes e variáveis – que permitem plano e previsão. E isto é tudo que agora resta das idéias gregas de sistema, de harmonia, de acabado e de perfeito. De posse, afinal, do conhecimento científico das relações e inter-relações dos processos do mundo físico e do mundo biológico, entramos a produzir, voluntariamente, as condições necessárias para pô-los mais do que nunca a nosso serviço.
E, então, a ciência deixa de ser apenas a explicação do universo para se fazer o instrumento do seu possível e progressivo controle. A velha profecia de Bacon de que o saber era poder fez-se realidade.
Com a aplicação da ciência aos problemas humanos, por meio dos conhecimentos teóricos e técnicos que entrou ela a desenvolver, as artes empíricas se fizeram ou se fazem, em grande parte, obsoletas e, em seu lugar, surgiram e surgem as tecnologias científicas, operando-se, afinal, a real integração dos dois métodos de saber, o racional ou teórico e o prático ou empírico, em um só método, o científico.
É a nova visão prática do mundo, em face dessa integração relativamente recente – na realidade de menos de cento e cinqüenta anos – dos dois processos intelectuais da mente humana, que está agora lutando por se afirmar. Os dualismos entre saber mítico e saber empírico, depois entre saber racional e saber prático, entre saber teórico e saber usual, encontram-se, por certo, em fase de desaparecimento, mas não sem choque, pois o espírito humano resiste muito à perda de hábitos milenares.
A sobrevivência dos dualismos agora, por exemplo, se insinua, de forma sutil, no dualismo entre o saber científico (o dos fatos) e o saber moral e social, isto é, dos valores, fins e objetivos da vida humana. Costumamos dizer que a ciência nos dá os meios, o poder; mas nada pode dizer em relação aos fins com que aplicamos esses meios. Na realidade, ainda é a concepção do homem como algo de estranho à natureza ou ao universo. Quando muito se aceita que certos fins, como saúde, conforto, segurança física, os fins chamados práticos da vida, podem ser e são resolvidos pela ciência. Mas, os fins tidos como altos, nobres, superiores, sobre estes nada pode dizer a ciência...
Esta é a última forma que assume o velho dualismo, produzindo, como conseqüência, o progresso das técnicas chamadas materiais e a estagnação dos costumes sociais, morais e políticos.
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Por certo que o conhecimento dos fatos e suas leis e o conhecimento dos valores, isto é, dos fins, objetivos e propósitos do homem, constituem campos diversos da investigação humana. Mas, não há razão porque o segundo não possa ser objeto do mesmo processo de descrição, análise e controle por que passaram os fatos do mundo físico. Conhecidos que sejam, cientificamente, aqueles valores, restará sem dúvida o problema de escolha e de preferência, isto é, o problema da aplicação de tal conhecimento, como, aliás, também no mundo físico, conhecidos os seus fatos e leis, resta o problema de sua aplicação aos fins humanos.
A ciência da eletricidade não nos manda fazer uma lâmpada ou um motor elétrico, habilita-nos a fazê-los. E se os fazemos é para atender a uma necessidade humana. Ora, as necessidades humanas são também fatos, que podem ser estudados, como são estudados os do mundo físico. A ciência ou ciências dos fatos sociais, econômicos, políticos e morais irão habilitar-nos, como as ciências do mundo físico, a realizar os fins humanos.
Mas, dizem-nos certos filósofos, esses fins são algo de arbitrário e inanalisável, são todo o mundo do bem e do mal, dos nossos gostos e desgostos, em toda a sua gama de caprichos, desejos e paixões, para sempre insuscetíveis de regularização e controle. Estamos aí na terra de ninguém do mundo moral, onde impera a força irreprimível da "liberdade" humana. A ciência aumenta o poder do homem sobre a natureza, mas não o ensina a governar as suas escolhas, as suas preferências, os seus fins.
A realidade, porém, é que tais fins têm uma origem e uma história, surgem, afirmam-se, mudam e se desenvolvem, do mesmo modo que os processos do mundo físico. O homem tem crenças a respeito do mundo físico e a respeito dos fins por que luta, das diretrizes que deve adotar, dos bens que deseja atingir e dos males que pretende evitar. O estudo destas últimas crenças pode também ser feito cientificamente. A ciência também nos poderá dar a sua gênese e desenvolvimento, e revelar-nos o meio de as controlar.
Do mesmo modo que damos como certos e seguros os fins mais óbvios da vida: saúde, alimentação, casa, vestuário, etc. – os chamados "fins materiais da vida" –, também haveremos de chegar a dar segurança e controle aos chamados fins superiores ou espirituais: o do governo da liberdade humana, o da realização da fraternidade e o da felicidade pessoal e coletiva. E, talvez, conforme lembra J. Dewey, esteja aí uma função específica da filosofia em nossa época.
O homem nutre hoje crenças a respeito do mundo físico, que a ciência lhe confirma e garante, e está a começar a ter conhecimento a respeito dos valores que regulam a sua conduta; a ciência lhe vai mostrar a gênese, desenvolvimento e praticabilidade de tais valores e, deste modo, lhe dar o controle dos mesmos. A função da filosofia seria a de mostrar como "esses dois modos de crer e conhecer – o dos fatos e o dos valores – podem mais eficaz e frutuosamente se relacionar um com outro" (Dewey), de jeito a permitir que o melhor conhecimento científico regule a nossa conduta prática, em todos os seus múltiplos aspectos.
Para a filosofia se transformar nesta disciplina da conduta humana, à luz do melhor conhecimento científico existente e tomando-o como base, será, porém, necessário que se interrompa a milenar tradição que faz da filosofia a busca de uma realidade absoluta, transcendente, superior ou anterior ao mundo, em que a mente humana se refugie.
Muito pelo contrário, a filosofia terá de se fazer a mais terrena das disciplinas, ocupando-se exatamente da aparentemente modesta, mas realmente essencial e imensa tarefa de ordenar e inspirar a "prática" da vida humana. Aliás, este teria sido o objetivo da religião, sempre que crenças religiosas tiveram real vitalidade... A filosofia seria hoje quiçá sua humilde substituta, devotando-se à tarefa de estudar como, em face do espantoso alargamento da praticabilidade dos desejos e aspirações humanas, resultante das conquistas e do progresso da ciência, pode cada um dos homens conduzir a sua vida para a plena realização de si mesmo e contribuir, ao mesmo tempo, para que todos os demais indivíduos da espécie logrem o mesmo desiderato.
Tais considerações não nos afastam do nosso tema, antes sublinham a necessidade de vencer o último dualismo em que se debate o espírito humano. Estamos em pleno progresso de aplicação – diria antes integração – cada vez mais ampla da ciência à vida, e este fato vem transformando a cidade humana, com ímpeto que não seria exagerado chamar de revolucionário.
Primeiro, acreditou-se demasiado candidamente, que a ciência de si e por si mesma traria seus corretivos. Todavia, a ciência, talvez para contornar o inevitável conflito, não com a religião, mas com a teologia e as filosofias dela decorrentes e nela inspiradas, refugiou-se no mundo dos fatos e suas leis, e por muito tempo ignorou e ainda faz por ignorar o mundo propriamente dos valores. E tanto isto fez, que não faltam hoje os que acreditam não haver saída senão na volta atrás aos cânones normativos da tradição clássica grega ou até medieval. A solução, entretanto, está em levar avante a ciência até a nova área, essa hoje terra de ninguém, onde impera a "vontade" humana e em elaborar, com a experiência de hoje e os métodos de hoje, de precisão e segurança, em relação aos valores do mundo moral, social e político, os conhecimentos científicos necessários para a formulação dos novos cânones que agora nos possam dirigir, como os cânones clássicos e medievais dirigiam o homem nessas passadas épocas.
Seja em política e organização social e econômica, seja na vida pessoal e coletiva, o certo é que há necessidade de retomar os objetivos da vida e, em face das novas condições, mostrar como os valores – materiais e espirituais – podem ser mantidos e ampliados, para o maior enriquecimento possível da existência de cada um e de todos, no conjunto da espécie humana. Nenhum outro problema é maior, nem mais urgente e mais prático, do que este, e nenhum outro constitui desafio, e o mais poderoso à inteligência humana, no que tenha ela de melhor, mais fino e mais alto. Identificado o processo do saber prático e do saber científico, temos de elaborar uma filosofia que realmente os integre em um só corpo de crenças, relativas ao mundo físico e ao mundo moral, capaz de nos conduzir e guiar nesta etapa convulsa a que chegamos de nosso desenvolvimento.
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Sempre que a inteligência humana passa por um período de liberdade – e por liberdade se entenda a ausência de controle imposto e externo ao seu desenvolvimento – há como que uma safra miraculosa, e a mente humana explode em riquezas de imaginação e observação, que abrem novos horizontes à sua suprema aventura. Foi assim entre os gregos, no seu período áureo, e assim com Epicuro e os estóicos; e assim no Renascimento, com o Humanismo e a Reforma; e foi assim, no século dezessete, em movimento que se estendeu até o século dezenove. Agora, neste século vinte, de novo se reacende, e como nunca, a necessidade dessa liberdade para uma tomada de consciência e uma nova superação.
A etapa de hoje será a definitiva consagração da visão prática da vida, em que o homem, integrado em seu mundo, busque a sua segurança e a sua certeza, não já em um outro mundo, seja o da razão absoluta dos gregos, seja o do sobrenatural da teologia, mas nos controles científicos que lhe permitam dirigir o mundo material e lhe comecem a dar efetivamente o controle do mundo social e moral. E nunca precisamos tanto de liberdade para o pensamento como nesta fase de crise e transição em que teremos de abrir ou dilatar o horizonte humano, na sua nova, mas ainda perturbada visão científica, isto é, prática do mundo.
O próprio vigor da transformação em curso, entretanto, leva não poucos a voltar as costas até a franquias ou conquistas já admitidas e pressentir perigos na marcha livre do pensamento. São velhos terrenos que renascem e que, sob certos pontos de vista, não nos devem surpreender...
Com efeito, a nossa espécie existe, digamos, há um milhão de anos, mas somente há pouco mais de seis mil anos descobriu a agricultura. Há apenas uns dois mil e quinhentos anos, descobriu a sua própria inteligência e criou a filosofia, Apenas há uns trezentos anos atrás, descobriu propriamente a ciência, como a concebemos hoje. E somente há uns cento e cinqüenta anos, aproximadamente, entrou a aplicá-la à vida, sob a forma de tecnologia e em substituição às práticas e artes empíricas das lentas civilizações anteriores.
Será assim acaso estranhável que o homem ainda não tenha perdido seus velhos terrores e vacile antes os resultados de sua própria infância científica? Nesta infância, com efeito, estamos, com os nossos modestíssimos progressos, em ainda modestíssimas parcelas da humanidade...
Onde estão a pequenina ciência de três séculos de idade e as ainda menores tecnologias de pouco mais de um século? – Circunscritas a parte da península européia, às ilhas Britânicas, à América do Norte, à União Soviética e, saltando aqui e ali, a pequeninas manchas, em todo o resto da terra. Dos dois bilhões e meio, se tanto, de seres humanos, talvez nem sequer meio bilhão já se possa plenamente considerar beneficiário das transformações que se vão operando no sentido de ampliar a liberdade humana, isto é, a praticabilidade dos propósitos, desejos e aspirações do homem.
Apesar de ser assim evidente o nosso estado de infância em relação à ciência, não faltam os que começam a assustar-se com o seu desenvolvimento e a necessidade de uma tomada de posição em face da revolução que vem provocando. Os novos processos de pensamento, que o método experimental introduziu, dando nova força e eficácia às nossas especulações conceptuais, suprimiram, de fato, muito dos pretendidos encantos pitorescos e poéticos do passado, e, do mesmo passo, deram ao homem poderes que ele ainda não sabe manipular devidamente. E isto o tem levado a descrer até de muitos dos valores que se já habituara a admirar e a amar. Tudo isto, porém, – salvo desarvorado pessimismo – nada mais é do que o resultado daquela mesma infância da ciência e de nossa remediável e conseqüente imaturidade intelectual.
Estamos, com efeito, em uma fase de "exploração" dos resultados da ciência, que se poderia equiparar à dos "conquistadores" e piratas da era que se seguiu aos grandes descobrimentos, e que não data de um passado remoto. Deslumbrados com as possibilidades da produção, estamos a "explorá-la" anárquica e extravagantemente; deslumbrados com a possibilidade da distribuição, estamos a tentar "monopolizá-la" para proveito da alguns; deslumbrados com as possibilidades da comunicação, estamos a utilizá-la para fraudar a verdade, vender tolices, editar comercialmente o espírito humano, levando-a à busca ininteligente de falsos confortos e de formas elementares e gregárias de inépcia coletiva.
Mas, nada disto é produto da ciência, e sim o resultado dos que a exploram, nesta fase inicial do enriquecimento humano, tomados do susto ainda primordial de que tal enriquecimento, como os anteriores, não passe de simples privilégio de alguns, que importa em conquistar, assim, de assalto, sob pena de desaparecer ou não chegar para eles...
Confesso que contemplo toda essa impaciência não sem alguma apreensão, – seja a dos capitalistas que julgam que a riqueza lhes vai escapar das mãos, seja a dos comunistas, que julgam necessário impor à força o progresso material, – mas, não consigo que minha apreensão obscureça a crença em que estou de que o homem superará mais esta crise e se habituará à posse da ciência, saindo da fase de alquimia econômica e social, não para nenhum milênio, mas para enfrentar adequadamente os problemas bem mais interessantes que o esperam, quando o problema material básico (este terrível problema em que se vem esvaindo) ficar, afinal, resolvido, e, na progressiva e nova estabilidade em que ingressar, volte o homem a cuidar dos problemas da distinção humana, não já de uma classe nem de alguns indivíduos, mas de todos e cada um dos indivíduos componentes da sociedade.
Não se creia que esteja aqui a manifestar a ingenuidade de um entusiasmo, de muito já superado nos tempos áridos e ácidos deste nosso século. Duas guerras mundiais, nazismo, fascismo, socialismo revolucionário ou comunismo, capitalismo re-exaltado, guerra fria, corrida armamentista sem igual, bombas atômicas e de hidrogênio, ameaças de retaliações maciças, nada disto seria, talvez, de ordem a permitir as considerações quiçá otimistas, que acabo de fazer.
Desejo correr o risco de assim parecer ingênuo, mas, repito que, a despeito de tudo isso, continuo a julgar razoável o otimismo do nosso tempo.
Examinemos, embora ligeiramente, os motivos que julgo haver para alimentar esse otimismo.
Que os novos poderes de que o homem moderno se vê possuidor, e que a sua, sob certos aspectos, prodigiosa economia e a tremenda praticabilidade de todo e qualquer projeto de ordem material, entre as nações desenvolvidas, sejam resultado de maior conhecimento científico não há, creio, dúvida possível. Os Estados Unidos ou a União Soviética somente são o que são, em virtude de avanço tecnológico a que ambos chegaram. Tanto é isto verdade que os sistemas sociais e políticos são diversos ou até opostos, mas os resultados são semelhantes, – o que faz pensar, se não prova, que, para o progresso material, não importam tanto aqueles sistemas, quanto a aplicação maior ou menor da ciência...
Ora, como conseqüência de uma tal verificação, lançou-se a humanidade no que podemos chamar um estado revolucionário. Toda humanidade passou a ver que este progresso, o progresso material, também lhe pode suceder. E a ebulição em que entraram os povos diante de tal fato – nesta nossa América, na África, Ásia e na Europa – é de tal ordem que, a despeito da imensa força dos países já desenvolvidos, a atitude geral destes países já não é de truculência, mas de certo respeito ante a espantosa inquietação. Numa época em que os fortes nunca foram tão fortes, os fracos estão revelando um poder que nunca tiveram...
Assim, de modo geral, a despeito de todos os temores de catástrofe, o clima bem considerado da humanidade já não é o mesmo da antiga truculência colonialista, de que foi ainda incrível ilustração a trágica aventura de riqueza do rei Leopoldo da Bélgica, no Congo, já em fins do século passado e princípios deste século, para dar um exemplo somente.
De modo geral, pois, a despeito das ameaças, que ninguém pode negar que existam, dos dias que correm, temos motivo de esperar que as coisas não sucedam pelo pior, mas que se conjure o imenso poder dos fortes com a imensa aspiração dos fracos, levando-nos a uma cooperação nova ou de nova espécie, para uma ordem mundial mais justa e mais eqüitativa.
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Mas, se este é, propriamente, o clima mundial, já o clima dentro de cada nação poderá ser encarado com igual otimismo? E o clima pessoal de cada indivíduo, o estado de espírito de cada um de nós é igualmente, se não bom, promissor?
Reconheço que a resposta, longe também de ser óbvia, já não é tão fácil. As forças liberadas pela ciência são demasiado amplas para o controle individual e não há negar que estamos vivendo um período em que o indivíduo se sente meio perdido, podendo desenvolver estados de espírito, ou de raiva impotente ou de indiferença passiva, ambos perigosos e talvez fatais para a civilização.
Esse, parece-me, o ponto crucial e realmente perigoso do nosso momento histórico. Vejamos como podemos focalizar tal perigo e se há sinais de saída para ele.
O progresso científico criou técnicas de trabalho de caráter mais coletivo do que individual; tornou possíveis imensas concentrações humanas; propiciou, pelo transporte fácil, organizações de imensa amplitude e, de modo geral, está unificando as nações e, sob certo aspecto, o mundo inteiro, em uma gigantesca organização, manipulada por governos e forças econômicas, constituídos de pequenos grupos de pessoas, transformadas, assim, em seres extremamente poderosos...
A nova ordem gigantesca e mecânica e a extrema interdependência humana colheram o homem moderno numa fase de educação individual extremamente limitada, mesmo nos países mais avançados, e de quase nula educação coletiva e política. Daí, dois efeitos e dois perigos. O cidadão passou a se sentir emaranhado em uma ordem tão complexa e de dinâmica tão remota para ele, que não consegue perceber o valor de sua atuação, individual ou de sua participação, quando participe se considere, assumindo então uma atitude de indiferença e irresponsabilidade, cujas conseqüências não podem deixar de ser maléficas para sua conduta individual e coletiva. Por outro lado, os governos e as forças econômicas, ou sejam os funcionários e os homens de empresa, transformados em forças poderosíssimas, também entraram a agir com certa irresponsabilidade, conseqüência, inclusive, de um real e fundamental estado de ignorância, em relação aos problemas que a nova ordem suscitou e suscita.
Vejam bem que não estou a analisar o poder absoluto do funcionário público, por exemplo, num estado "totalitário", mas o seu poder inclusive no estado democrático. Mesmo no estado democrático, as condições de vida do homem são as de submissão a uma ordem que ele já não controla, dada a amplitude de seu alcance e aos detalhes de sua ingerência. Se essa ordem se fizer injusta e inumana, haverá meio de poder o homem dela se libertar ou de modificá-la pela sua atuação voluntária? Ou, não lhe restará outro meio senão submeter-se, como se vem submetendo?
Duas grandes experiências sociais, uma recente e outra de cerca de dois séculos, vêm produzindo métodos capazes de dar eficácia à ação individual, sem a qual o homem deixará de ser homem para se fazer uma simples engrenagem da ordem coletiva. A mais recente foi a de Gandhi, na luta pela independência indiana: a resistência individual pela não-violência. A outra é a do governo democrático, como o conceberam os anglo-saxônicos, pelo autogoverno local, pela cooperação voluntária e pelo regime da maioria.
A resistência não-violenta, a desobediência civil de Thoreau ou a satyagraha de Gandhi, representa o método de ação para situações de opressão e de força aparentemente invencíveis. Experimentado como já foi, tudo leva a admitir que pode vir a ser usado pelo homem, em casos novos, não havendo, assim, motivo para crer que seja impossível lutar contra a opressão e a força, mesmo quando tomam os tremendos aspectos da opressão e da força, nos dias de hoje.
O governo democrático é o segundo método para corrigir os perigos da concentração de poder material e de poder econômico da vida moderna. Mas, o governo democrático para se conservar democrático e se aperfeiçoar como tal, exige cuidados especiais dos governantes e dos governados. Exige, primeiro, a mais extrema divisão do poder político, por meio de um regime da maior descentralização possível. Tudo que puder ser confiado à responsabilidade local e à cooperação voluntária dos indivíduos, lhes deve ser confiado. E o regime eleitoral, por outro lado, deve ser de ordem a dar ao indivíduo o sentimento de que seu voto conta. De sorte que todo sistema em que isto não fique muito claro, como sucede com certas modalidades, por exemplo, do sistema proporcional, concorre para que a democracia, como regime de responsabilidade, perca a confiança que deve inspirar.
No fundo do regime democrático de governo descansa o velho conselho kantiano: o homem é o fim de si mesmo. É necessário que não se sinta ele utilizado nem pelo Estado, nem por oligarquias, nem por outrem – mas, livre em sua devoção, em seu trabalho, em sua vida. Nesta medida, se sentirá responsável e, como tal um ser social e moral. Porque a moralidade não é uma questão destes ou daqueles costumes: são mesmo historicamente diversíssimos os costumes e instituições humanas. Mas é, sim, questão de como nos comportamos em face aos costumes, existentes ou em formação, da atitude leal e inteligente, à luz das conseqüências dos nossos atos, com que os defrontamos, buscando torná-los tão benéficos a nós e aos outros, quanto possível.
Ora, para tal, – e o dizemos voltando ao fulcro de nossas considerações principais e ao segundo grande fundamento da democracia – nenhuma atitude será mais fecunda do que a atitude científica. Tal atitude significa, em essência, a negação de qualquer dogmatismo e a permanente confiança nos métodos organizados de usar a inteligência, tais como se apresentam no mundo da ciência; capazes de progresso e de perene autocorreção. A idéia de causalidade e o método de tudo julgar à luz das conseqüências constituem, na realidade, uma regra de confiante vigilância, que nos pode levar, na vida política, na vida social e na vida moral, aos mesmos progressos a que já nos levaram, na vida material.
O aparente (só aparente) efeito desagregrador da ciência, em sua aplicação à vida, decorre de que adotamos (quando o adotamos) o método científico em nosso problema de ordem material, e métodos pré-científicos ou anticientíficos em nossos problemas sociais, políticos e morais. Se usássemos, quanto às nossas instituições de natureza social, o critério científico, poderíamos até tê-las mudado, em alguns casos, para pior; mas, o método depressa nos revelaria os erros e estaríamos em condições de progredir, quanto a elas, do mesmo modo que progredimos ou mudamos nas artes chamadas materiais da vida. O que não podemos é mudar as condições materiais da existência e fechar os olhos às mudanças inevitáveis, por conseqüentes, dos outros aspectos da vida. O que importa é analisar e estudar, para proceder, segundo o método aprovado da ciência, de acordo com o que melhor e mais perfeitamente tivermos apurado.
Calcula-se hoje que estamos a progredir de uma década para outra na proporção de um para dois, no desenvolvimento de novas tecnologias. O quê significa isto? Que, se considerarmos igual a 1 o índice do progresso na década de 890 a 900, isto é, na última década do século XIX, o índice da nossa década de 50 a 60, será 64. Entre 1890 e 1960, teremos multiplicado o nosso progresso 64 vezes. E assim está acontecendo, na verdade, embora não em todo mundo e para toda a humanidade. Qual não seria o nosso progresso político e moral, no dia em que adotássemos o mesmo caminho, nestes setores bem mais importantes para a vida humana?
A ciência nos está dando o progresso material e também nos dá – o que é mais importante – um método de permanente revisão deste mesmo progresso. O impacto das mudanças ocorridas só não é integralmente benéfico, porque muitas das suas conseqüências não são analisadas e julgadas pelo mesmo método que as produziu.
O problema não é, não deverá ser nunca, porém, o de voltar atrás, nem o de deblaterar contra a natureza humana, mas, o de buscar criar para o homem condições de conhecimento e responsabilidade suficientes para ele se comportar, hoje, reajustadamente, como se julga que se comportava antigamente, de acordo com os padrões e normas das respectivas épocas.
A extensão da ciência ao mundo dos valores virá completar a obra da ciência, iluminando a visão prática e terrena da vida, que ela já produziu, ou está inspirando, com o sentimento das riquezas morais e espirituais da nova existência do homem num mundo por ele conquistado e domesticado.
De todas as falácias de nosso tempo, nenhuma conheço mais grave do que a de dizer que a falta de verdades dogmáticas nos levaria ao ceticismo total e ao niilismo.
A ciência não é cética, embora falível. A falibilidade é uma forma negativa de indicar a sua capacidade de acertar. A ciência, quando erra, tem, insisto, nos seus próprios métodos a sua própria correção. Logo, nenhuma outra direção pode ser menos cética e, ao mesmo tempo, mais humilde e mais vigilante. A generalização do espírito científico a todos os aspectos da vida é, nos dias de hoje, o mais seguro penhor do progresso político, social e moral do homem, e, em verdade, seu melhor guia, seu melhor conselheiro e seu melhor viático.
2006-12-16 06:26:06
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