Em palestra recente para divulgar seu livro Harmonia do Mundo (Cia. das Letras, 327p.), Marcelo Gleiser esclareceu porque escolheu Kepler como personagem central de seu romance biográfico. Segundo ele, outros gênios da história da ciência não foram tão psicologicamente complexos quando Kepler. Copérnico, por exemplo, que tirou a Terra do centro do universo, não era exatamente um revolucionário, era bastante acanhado e passou anos trabalhando em segredo, temendo as represálias da igreja católica. Seu livro Sobre as revoluções das esferas celestes (De Revolutionibus Orbium Coelestium) foi publicado em 1543, quase postumamente, pois Copérnico só recebeu a cópia impressa em seu leito de morte, possivelmente não tendo forças para examiná-la. É verdade que Copérnico tinha certa razão, pois seu livro foi atacado por teólogos protestantes, até mesmo por Lutero, e foi incluído pela igreja católica no índice dos livros proibidos em 1613, onde permaneceu até 1835.
Já Galileu envolveu-se em problemas com a igreja católica, por certo, mas era muito arrogante e gostava de afrontar a autoridade papal. Imagino que, talvez, Giordano Bruno, filósofo e astrônomo queimado na fogueira em 1600, rendesse um bom romance. Ocorre que a principal acusação contra Bruno dizia respeito a uma heresia conhecida como "docetismo", condenada pelo Conselho de Calcedônia, segundo a qual Jesus Cristo não tinha um corpo físico e a crucificação teria sido apenas aparente. Além disso, o trabalho teórico de Bruno não pode ser considerado propriamente científico e, embora ele fosse um copernicano, a igreja católica que o condenou não tinha posição oficial contra Copérnico por volta de 1600. Bruno, portanto, é muito mais um mártir religioso do que um herói científico.
Kepler, por outro lado, representa o verdadeiro gênio científico angustiado. Ao mesmo tempo em que se recusava a abandonar o luteranismo no qual havia sido criado, Kepler não conseguia aceitar o modelo geocêntrico de Ptolomeu, recomendado pelo pastores luteranos, e o fazia em bases simultaneamente filosóficas e científicas: por um lado, ele acreditava que, colocando o Sol no centro do Universo, poderia revelar a harmonia oculta usada por Deus na criação; por outro, Kepler descobriu que as medições astronômicas de Tycho Brahe eram incompatíveis com o modelo geocêntrico e epiciclos de Ptolomeu.
Mas Harmonia do Mundo não é só sobre Kepler. Gleiser constrói uma espécie de diptico, onde quase toda a vida de Kepler é contada em paralelo com parte da vida de seu mestre Michael Maestlin. Em 1630, Maestlin recebe o diário de Kepler em sua casa, em Tübingen, Alemanha, juntamente com uma carta que só deveria ser lida após a leitura do diário. Maestlin também fica sabendo que Kepler havia morrido há pouco. Maestlin, que não conseguira dar a Kepler todo o apoio necessário e que está com 80 anos, vê desaparecer toda chance de redenção. Nunca poderá se desculpar com Kepler, o gênio criador. Nunca poderá dizer que estava errado ao condenar as idéias revolucionárias de seu pupilo. Poderá, entretanto, obter algum conforto lendo o diário, que Gleiser usa como costura entre as vidas dele e de Kepler.
Não sabemos exatamente como era Kepler fisicamente. Não sabemos como eram seus gestos e entonação de voz. Sabemos apenas que ele era dado a frases complicadas e vivia em uma época marcada pela reverência e afetação no tratamento pessoal, fato do qual Gleiser não se esquece. Os retratos mais conhecidos de Kepler mostram uma figura um pouco sizuda, com feições variando de acordo com o talento orçamento de cada pintor. Sobre Maestlin, sabemos muito menos, mas, em ambos os casos, Gleiser constrói personagens vivos, tridimensionais, repletos de emoções e conflitos. É como se o Kepler sizudo dos retratos pulasse em frente a nós e dissesse: "esse fui eu, minha vida foi desse jeito e minha visão do mundo era assim e assim". Em resumo, personagens apaixonantes e assustadores.
Gleiser também se esforça para mostrar o dia-a-dia de um cientista, a busca por patrocínio, a dificuldade em divulgar novas idéias, o inferno dos cálculos intermináveis. Tendo vivido em uma época na qual não existiam calculadoras e nem mesmo réguas de cálculo - esta última tendo sido inventada na última década de vida de Kepler - só lhe restavam os cálculos manuais. O máximo que ele pode fazer, e é basicamente isso que uma régua de cálculo faz, foi usar logaritmos para transformar as difíceis operações de multiplicação e divisão nas relativamente fáceis operações de adição e subtração, respectivamente. A importância dos logaritmos como ferramenta computacional foi tanta que Kepler dedicou suas Efemérides de 1620 a John Napier, o matemático escocês que inventou esse conceito matemático. Imagino o que faria Kepler se tivesse em mãos um microcomputador moderno, mesmo que não muito potente, com apenas uma planilha eletrônica e um editor de textos instalados. Não precisaria ser um supercomputador com capacidade de processamente paralelo e software astronômico altamente preciso. Uma mera planilha eletrônica teria economizado anos de cálculo e, quem sabe, permitido que Kepler descobrisse suas quarta, quinta e sexta leis, modernamente conhecidas como "as três leis de Newton".
Essa última afirmação pode parecer exagerada, mas nunca o saberemos. O que sabemos é que Kepler havia intuido corretamente o conceito de "lei física". Ele não conhecia a gravitação, mas acreditava que uma força emanava do Sol, regendo o movimento dos planetas. Ainda, ele acreditava que essa leis eram quantitativas e universais, e que poderiam ser validadas experimentalmente. Essa, na verdade, foi uma das razões de Maestlin ter relutado em dar apoio a Kepler. Maestlin, aferrando-se à tradição aristotélica de disciplinas desenvolvidas à exaustão, mas isoladas entre si, não gostava de ver a astronomia (que media os céus) misturada à física (ou "filosofia natural", a qual procurava explicações para os fenômenos). Kepler não via problema algum em misturar as disciplinas, pois acreditava que tudo era parte de um mesmo plano divino, parte da harmonia do mundo.
Em Harmonia do Mundo, de Gleiser, a última entrada do diário fictício de Kepler data de maio de 1618, quando o astrônomo descreve as descobertas que culminariam na publicação do seu Harmonia do Mundo, em 1619, que apresenta a terceira lei de Kepler ("o quadrado do período orbital de um planeta é diretamente proporcional ao cubo do semi-eixo maior da elipse orbital"). Assim, ficamos sem conhecer as impressões de Gleiser sobre uma das últimas obras de Kepler: o conto Somnium, escrito entre 1620 e 1630 e publicado postumamente, geralmente considerado o primeiro conto de ficção científica da história.
Gleiser comenta que decidiu escrever um romance, e não um livro de divulgação nos moldes dos anteriores (O fim da Terra e do céu, A dança do universo e Micro-macro), por querer atingir um público diferente, interessado em ciência, mas que costuma ler e comprar romances. Talvez esses leitores, acostumados às reviravoltas nas tramas, possam perdoá-lo pelo final-surpresa, que não revelarei aqui. Usando as vantagens da ficção, bem como aproveitando-se de lacunas históricas, Gleiser revela-se bastante ousado ao estender ao máximo a angústia existencial de Maestlin. E deixa seus leitores querendo mais.
2006-12-09 03:15:44
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answer #1
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answered by Anonymous
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