“O Código da Vinci” tenta repetir no cinema não só o sucesso do livro homônimo, mas, também, as polêmicas “revelações” suscitadas pelo mesmo. Confesso que evitei ao máximo a leitura deste livro. Não por questões morais ou religiosas, mas apenas por que, até certo ponto, concordo com a máxima do dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”. Ou seja, nem sempre um “campeão de vendas e público” merece, de fato, tal mérito. Este mérito fica mesmo é com a mídia. Mas dois comentários distintos entre si, me fizeram mudar de idéia. Duas amigas, ambas católicas, manifestaram seus pontos de vista sobre o livro do americano Dan Brown. A primeira dizia ser “o pior livro que já li na vida”. Já a segunda afirmava que o “Código” havia jogado por terra suas crenças e estava com a fé abalada. Como pesquisador das Religiões e do comportamento religioso humano, me senti no dever de compreender tão diferentes pontos de vista e encarei as mais de 400 páginas do livro de Brown.
Não ouso me arvorar como crítico literário, nem esta é a função primeira do “Correio Fraterno”, mas posso afirmar que minha primeira amiga exagerou: não é, de certo, o pior livro que alguém possa ler na vida. Ficou-me claro que ela abalou-se intimamente com as tais “revelações” do livro e, ao contrário da segunda amiga, preferiu se rebelar contra o “Código” do que admitir sua fraqueza diante de tais informações. Então isto quer dizer que a segunda amiga está certa? O livro pode abalar a fé de alguém?
Depende do “alguém”. Ou, ainda, da fé que este “alguém” professa. Um Espírita certamente não se abalará com as “revelações” do “Código”. Não há nada ali que um bom estudo das obras de Kardec ou dos livros de Léon Denis não já nos tenha dito. Principalmente deste segundo autor. Em uma de suas obras, o excelente “Cristianismo e Espiritismo”, Denis procura “destacar da sombra das idades, da confusão dos textos e dos fatos, o pensamento básico (...) o foco intenso e radioso do Cristianismo” obscurecido pelos dogmas confusos, de interesseiras teorias. Na obra em tela, Leon Denis faz verdadeira análise das entranhas das doutrinas cristãs tradicionais (o Catolicismo e o Protestantismo, mais notadamente a primeira por questões óbvias), mostrando, através de farta documentação, as improbidades cometidas em nome de Jesus, de forma a substituir seus ensinamentos por encíclicas e cânones, tendo por guia um catecismo recheado de noções incompreensíveis, além do incomparável instrumento de domínio pelo medo calcado no tripé formado pelos dogmas das penas eternas, do inferno e do demônio. É este livro de Denis que irá servir de base para o presente artigo.
“O Código Da Vinci” fala sobre os Evangelhos rejeitados pela Igreja e considerados apócrifos. Léon Denis, em “Cristianismo e Espiritismo”, explica que Orígenes, no século III citava mais de vinte evangelhos, aos quais Lucas faz menção no primeiro versículo de sua obra. É claro que os textos foram recusados por constituírem embaraços aos que, nos séculos II e III, imprimiram uma direção ao Cristianismo que o deveria afastar de suas fontes primitivas. A princípio os primeiros apóstolos limitavam-se a ensinar a paternidade de Deus e a fraternidade humana. Com Paulo, e depois dele, novas correntes se formam e surgem doutrinas confusas, alterando a pureza e a simplicidade dos ensinamentos de Jesus. Este estado de coisas vai se agravando e os primeiros Evangelhos datam de uma época perturbada, em que a Judéia assiste a derrocada de Jerusalém e à dispersão do povo Judeu. Nessa época, todos os apóstolos já haviam morrido, com exceção de João e Filipe (esta, inclusive, é uma informação a ser guardada para uso mais adiante). Cada igreja, assim, estava entregue às próprias inspirações. Os três Evangelhos Sinóticos (Marcos, Lucas e Mateus) estão impregnados com o pensamento judeu-cristão. Já o Evangelho de João é reflexo da filosofia grega, da escola de Alexandria, pois discípulos dos grandes filósofos haviam se aproximado do Cristianismo. Marcos e Lucas se limitaram a escrever o que lhes contavam os discípulos. Mateus e João conviveram com Jesus. Mesmo assim, os Evangelhos não estão concordes com os fatos mais notáveis atribuídos a Jesus. Desde suas últimas palavras até a sua primeira aparição. Também divergem sobre a ascensão do Mestre. A ressurreição de Lázaro é unicamente mencionada no quarto Evangelho, enquanto suas menores curas são citadas com ênfase nos três primeiros. É evidente, por exemplo, que o último capítulo do Evangelho de João não é do mesmo autor do restante da obra supracitada. Um é obra de um cristão-judeu; o outro é escrito por um cristão da escola filosófica de Alexandria, que havia rompido com a dogmática judaica. E estamos falando de quatro Evangelhos. Segundo A. Sabatier, em “Enciclopédia das Ciências Religiosas”, os Evangelhos Apócrifos contavam em trinta e cinco. E vejam que desde o século II, no Discurso Verdadeiro, Celso já acusava os cristãos de retocarem os Evangelhos, eliminando num dia o que haviam inserido no anterior. Para pôr fim a tantas opiniões divergentes, o Papa Damaso, em 384, confia a São Jerônimo a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Surgia a “Vulgata”, tradução corrigida, aumentada, modificada como confessa o autor em antigos manuscritos (Obras de São Jerônimo, edição dos Beneditinos, 1693). Esses “retoques” asseguravam, fortaleciam e tornavam inabalável a autoridade da Igreja.
A certa altura de o “Código” um dos personagens diz que tudo o que “nos ensinaram sobre Jesus Cristo é mentira”. Expressão forte, de fato. O abade de Loisy em sua obra intitulada “Em torno de um livrinho” (1919) afirma que, em seu conjunto, o Antigo Testamento têm o objetivo de instruir religiosa e moralmente o povo judeu, sem exatidão bibliográfica e a ausência de fato material. Leon Denis acrescenta que a Bíblia é uma “compilação de narrativas históricas ou legendárias, de ensinamentos sublimes, de par com pormenores às vezes triviais”. E cita, como exemplo, discrepâncias na narrativa do Gênesis e uma fraude notória no Deuteronômio: diz o cap. I, V. 1, que ele é obra de Moisés mas em Reis, II, XXII, vv. 8 e 10, somos informados que o livro foi achado no templo sob o reinado de Josias, cinco séculos depois de Moisés. Por fim, conclui Denis que a Bíblia não remonta a tão antiga data como se costuma crer pois há indícios de retoques feitos depois da volta da Babilônia, porque nela se encontram alusões ao cativeiro dos judeus nesse país, fato ocorrido cerca do ano 700 d.C. Talvez por isso não exista registro arqueológico ou histórico da existência de Moisés. Muitos reinos e locais citados na jornada dele pelo deserto não existiam no século XIII a.C., quando teria ocorrido o Êxodo. Tais locais só passaram a existir 500 anos depois, justamente no período dos escribas deuteronômicos. Sequer havia um Monte Sinai! Sua localização atual, no Egito, foi escolhida entre os séculos IV e VI d.C., por monges cristãos bizantinos. Hebron e Bersheba, citados na viagem de Abraão, não existiam então. Do império Salomônico nunca se encontrou ruínas de arquitetura monumental em Jerusalém. David e Salomão teriam sido apenas pequenos líderes tribais de Judá. O Sinédrio não se reunia durante a Páscoa, então é bem provável que o julgamento de Jesus perante o mesmo nunca ocorreu. Tal versão teria sido inserida na Bíblia após a ruptura definitiva entre cristãos e judeus. Não há certeza sequer sobre o número de discípulos que viviam próximos a Jesus. Nos Evangelhos, apenas os nomes dos oito primeiros apóstolos conferem, mas o quatro último tem muitas variações. É bem provável que o “redondo” número de 12 apóstolos foi inventado para refletir, no Novo Testamento, as 12 tribos dos hebreus descritas no Velho Testamento. A Via Crúcis foi criada no século XVI, quando Jerusalém esteve nas mãos dos Cavaleiros Cruzados. Que Jesus não nasceu em 25 de Dezembro todos já sabem. A data foi inserida no século VI, quando o calendário foi alterado. Mas, por quê exatamente esta data?
Neste ponto tanto “O Código Da Vinci” quanto “Cristianismo e Espiritismo” se utilizam tão somente da história oficial: a unificação de Roma sob uma única religião, o Cristianismo, por iniciativa do Imperador Constantino. Segundo pesquisas de Leon Denis, Constantino era dotado de faculdades mediúnicas e sujeito à influência dos Espíritos. Foi através de visões que o Imperador resolveu conclamar o Cristianismo como religião oficial do Império. Mas seu caráter não se modificou. Cruel e astucioso, ele sabia que Roma passava por uma revolução religiosa. Cristãos e pagãos lutavam entre si. Constantino apostou no sincretismo. Fundiu símbolos, datas, rituais pagãos com tradições cristãs. As cerimônias, os vasos, os cânticos, a água benta, são legados do paganismo. O altar, o fogo sagrado, o pão e o vinho consagrados à divindade vieram do Bramanismo. Os deuses pagãos tornaram-se demônios. Dos heróis, fizeram santos. As festas religiosas dos antigos povos ganharam formas diferentes, como a dos mortos. No dia 25 de Dezembro, nasceu Mitra, deus pré-cristão. Ele morreu, foi enterrado em sepulcro de pedra e retornou após três dias. Krishna, ao nascer, recebeu ouro, incenso e mirra. “Nada é original no cristianismo”, desabafa um personagem de “O Código”. “Todas as formas do culto romano são uma herança do passado”, afirma Leon Denis. A lenta construção dos Dogmas começou em 325, com o Concílio de Nicéia e foi concluída em 1870, com o último concílio de Roma. Têm por alicerces o pecado original, a concepção imaculada de Maria e a infalibilidade papal. Foi neste Concílio que se proclamou a divindade de Jesus. Até então Jesus era, para Mateus, um novo Moisés. Para Marcos, Jesus era uma persona muito ativa, fazendo milagres e confrontando o Império Romano. Para Lucas, Jesus é um homem misericordioso e sensível aos dramas do povo. João aprofunda seus elementos espirituais. Entre os Evangelhos apócrifos, o de Maria Madalena fala de um Jesus revelador de ensinamentos divinos. O de Tomé preservou a versão mística e anti-romana. Tiago, irmão de Jesus, também apresenta um Jesus revolucionário. Para os gnósticos, conjunto de seitas que existiu no início da Era Cristã, Jesus era imaterial. Os gnósticos foram considerados hereges e o argumento de “contaminação gnóstica” foi utilizado pelos bispos católicos para impedir a entrada dos Evangelhos Apócrifos no Cânone. Ficaram fora da Bíblia, mas foram aceitos pelos fiéis mesmo que inconscientemente. É neles, e não nos canônicos, que estão relatados a infância de Maria, o casamento com José, a presença de um boi e de um asno no nascimento de Jesus, a virgindade antes e depois do parto, o número e o nome dos Reis magos e os nomes dos ladrões crucificados ao lado do Mestre. O uso de Palmas para cultuar Maria e o Lírio como símbolo de São José, também estão explicados nos apócrifos. A assunção de Maria, dogma católico desde 1950, mas que não consta dos Evangelhos Canônicos, prova que os apócrifos driblaram as proibições.
Mas voltemos à proclamação da divindade de Jesus. Esta já havia sido rejeitada por três concílios, inclusive o de Antioquia. Em 312, Ário, popular padre de Alexandria, começou a pregar que Jesus não era Deus. Alexandre, Bispo local, considerou esta posição herética e em 318 puniu Ário com o exílio. Tinha início a Controvérsia Ariana. Em 367, num esforço para combater o arianismo, o bispo Atanásio faz a primeira lista dos textos que compõem o Novo Testamento. Em 363, o Novo Testamento é reconhecido como canônico, mas sem o Apocalipse, que será reintegrado em 397, no Concílio de Cartago. Além da promoção de Jesus à categoria de Divindade, surge a Santíssima Trindade, cuja noção foi colhida numa lenda Hindu, no século VII. Jesus se tornava poderoso demais. Era necessário sumir com os textos que o tratavam como um homem normal. Muitas passagens do Novo testamento foram alteradas, para exprimirem a nova doutrina. Leblois, pastor de Strasburgo, em “As Bíblias e os iniciadores Religiosos da Humanidade”, afirma ter visto manuscritos em que o dogma da Trindade está “apenas acrescentado à margem. Mais tarde foi intercalado no texto”. Os Evangelhos que não entraram no Cânone foram considerados heréticos (do latim hereticus, que significa escolha), reunidos e destruídos. Ou quase, para sorte dos historiadores. Em 1945, na cidade de Nag Hammadi, Egito, camponeses encontraram os restos de textos apócrifos, num total de 52. A tradução dos papiros foi concluída nos anos 70, causando grande impacto nas pesquisas sobre a vida de Jesus. De forma geral, os apócrifos apontavam para um cristianismo sem pecado moral, igrejas sem hierarquias, um Deus feminino e um Jesus que beijava Maria Madalena. Chegamos, enfim, no ponto crucial de “O Código Da Vinci”: uma união matrimonial entre Jesus e Madalena.
Lembram de Filipe, mencionado no quarto parágrafo? Pois em seu Evangelho, ele afirma que “a companheira do Salvador é Maria Madalena”. Segundo uma seita secreta chamada de Priorado de Sião, não foi para Pedro que Jesus deu instruções para fundar sua igreja, e, sim, para Maria Madalena. Ambos tinham sangue real (Jesus, da Casa de David; Madalena da Casa de Benjamin) e, unindo-se, criaram uma união política poderosa. Esta linhagem real de Jesus é a fonte da lenda do Santo Graal, que origina de Sangreal (Sang Real). O que isso afetaria à cristandade? Reporto-me ao comentário que fiz no terceiro parágrafo: Depende do “alguém”. Ou, ainda, da fé que este “alguém” professa. Ou seja, para um Espírita, que não têm uma fé baseada em dogmas, tal revelação nada afetaria. Para os Espíritas, Jesus não é Deus. E Madalena? Em Caminho, Verdade e Vida, Cap. 92, Emmanuel parece querer levantar mais ainda o tom de mistério em torno do assunto ao questionar que “dos fatos mais significativos do Evangelho, a primeira visita de Jesus, na ressurreição, é daquelas que convidam à meditação... por que razões profundas deixaria o Divino Mestre tantas figuras mais próximas de sua vida para surgir aos olhos de Madalena, em primeiro lugar?”
É preciso ter em mente que Maria Madalena não era uma prostituta. Fazer dela uma prostituta minimizou seu papel de liderança. Se nos Evangelhos canônicos é Pedro o líder máximo, nos apócrifos ele é descrito como ciumento, que pede a Jesus que expulse Madalena do grupo. Em tom de brincadeira, segundo o Evangelho de Tomé, Jesus responde a Pedro que transformaria Madalena em homem. Mas este ciúme de Pedro está baseado no fato de que Madalena era a favorita de Jesus, conforme os apócrifos. Foi para ela, enfim, que Jesus entregou, de fato, as chaves do reino. Se isso é verdade, também não modifica em nada a fé espírita. Jesus continua sendo o “guia e modelo” para a humanidade (Livro dos espíritos, q. 625). As “revelações” do “Código” são, portanto, pertinentes à fé católica. Daí as reações das amigas citadas no início deste texto. Foi a Igreja de Roma que optou pela corrente da apostolicidade, na figura maior de Paulo, cidadão romano, que termina sua pregação quando o Evangelho chega a Roma. Paulo foi intimado a participar do Concílio Apostólico de Jerusalém, em 49. Um encontro tenso, aonde, pela primeira vez, veio à tona as divergências entre Paulo e os judeus-cristãos. Na Epístola aos Gálatas, Paulo deixa clara a tensão entre ele e os demais apóstolos. Até o século 4 o cristianismo tinha duas correntes distintas: uma liderada por Paulo e outra por Tiago, irmão de Jesus. Quando o Império Romano oficializou o cristianismo, a corrente paulina foi a escolhida. Caso a corrente escolhida fosse a de Tiago e os Evangelhos apócrifos e gnósticos fossem os “oficiais”, certamente o cristianismo seria diferente. Mas o Espiritismo seria o mesmo, pois não se trata de uma fé “decorrente de um sistema ou de uma religião particular, inspirada em textos respeitáveis, mas de autenticidade duvidosa, em que a verdade e o erro se mesclam e se confundem. O que se impõe é uma crença baseada em provas e em fatos; uma certeza fundada no estudo e na experiência (...) habilitam a distinguir o que há de vivo ou morto no cristianismo”, afirma Leon Denis, em “Cristianismo e Espiritismo”, confirmando que “o Cristianismo, para renascer e resplandecer deverá vivificar-se nessa fonte (o Espiritismo)... e voltar a ser simples, claro, racional, sem deixar de ser um laço, uma relação entre o homem e Deus”. Ou seja, precisa se desmistificar de tal forma que “O Código Da Vinci” não assuste seus seguidores e nem lhes abale a fé. Segue Denis lembrando que sem essa relação (homem e Deus), “não há crença forte, nem filosofia elevada, nem religião viva”.
Quem gosta de "revelações" deveria ler Obras Espíritas. Aliás, Dan Brown também deveria.
2006-11-28 01:21:31
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answer #4
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answered by Anonymous
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