103. Introdução. Destacou-se Descartes pela ênfase dada aos temas gnosiológicos, ou seja à teoria do conhecimento.
Tais problemas e respectivas novas soluções marcam a modernidade em filosofia. Desde agora não há mais autor sério de filosofia, que não principie por este questionamento.
Não chegou Descartes a uma formulação completa do sistema disciplinar da gnosiologia. Este setor, por ele impulsionado, foi assumir feições sobretudo com John Locke (1637-1704), este, por isso, considerado seu fundador.
Ao tempo de Descartes não se haviam ainda vulgarizado alguns tecnicismos da gnosiologia e epistemologia posterior. Mas precisamos usá-los para melhor tratar do seu pensamento.
104. Ao examinar a gnosiologia de Descartes, importa vê-la dentro de certa sistemática, mesmo quando ele mesmo não atendeu sempre a isto, porque queria destacar certas questões, que mais o preocupavam.
Primeiramente há a examinar o que disse sobre a natureza mesma do conhecimento e depois sobre a extensão alcançada por ele.
Muito preocupa ao filósofo determinar até onde podem chegar os resultados do conhecimento. Mas enquanto cuida disto, ele tem uma certa noção sobre a natureza do conhecimento. É por ali que importa começar, com vistas a bem determinar que é pensar. Erros e acertos sobre a natureza do conhecimento podem influenciar a questão seguinte, que é a da extensão alcançada.
Atentos, pois, aos dois momentos da sistemática gnosiológica, apresentam-se, pois, didaticamente os dois títulos seguintes:
Descartes e a natureza do conhecimento (vd 3686y106);
Descartes e a extensão do conhecimento (vd 3686y ).
Em resumo, Descartes parece ter estado muito atento à natureza do conhecimento, naquilo que se refere às propriedades, a saber à evidência clara e distinta. Mas não parece que tenha estado suficientemente atento ao caráter operacional que distingue entre conceito, juízo, raciocínio. Pode-se ter dúvida, se cuidou sempre do aspecto intencionalístico do pensar da mente, e que não tenha incorrido em psicologismos.
Quanto à extensão do conhecimento, Descartes acreditou no racionalismo radical, - como os platônicos e agostinianos, - operando com idéias desvinculadas da experiência sensível. Não obstante, defendeu o realismo mediato do mundo exterior, ainda que abandonando o anterior realismo imediato.
Além disto, Descartes considerou inatas as idéias gerais, a partir das quais, desenvolveu o processo filosófico; este racionalismo de idéias autônomas foi praticado depois também por Espinosa e Leibniz, os quais neste particular são cartesianos.
§1. Natureza e propriedades do conhecimento. 3686y106.
107. Introdução. Não se trata aqui da natureza psíquica do conhecimento, mas do conhecimento como conteúdo, como informação, como operação em busca de um objeto, buscado gnosiológicamente.
Ao se tratar o conhecimento, sob o ponto de vista gnosiológico, há aquilo que lhe é mais essencial, como por exemple, ser intuição, ser cursividade, ser dedução, ser intencionalidade. E há aquilo que fica mais na superfície, como sendo propriedade, por exemplo, ser evidência, ser clareza, ser distinção, finalmente, ser certeza.
Neste campo, com referência à Descartes, se apresentam vários itens, didaticamente separáveis, ainda que se interpenetrem:
- A intuição cartesiana, na qual tudo começa (vd 3686y109);
- A dedução cartesiana (vd 3686y116);
- A certeza cartesiana a partir do cogito intuitivo (vd 3686y125);
- Critério da verdade, - clareza e distinção(vd 3686y129 );.
- A certeza, como estado do conceito (vd 3686y135).
I - A intuição cartesiana, na qual tudo começa. 3686y109.
110. Do ponto de vista metodológico e gnosiológico tudo começa no dado intuitivo, do primeiro impacto, em cuja descrição fenomenológica se demorou Descartes. O primeiro cuidado é pois, o de esclarecer a intuição, a qual recebeu uma definição de Descartes, em que a admite também para a mente sem os sentidos.
"Por intuição entendo não o testemunho dos sentidos ou o juízo falaz de sua imaginação que compõe mal o seu objeto; mas a concepção de um espírito puro e atento, tão fácil e distinta, que nenhuma dúvida resta sobre o que compreendemos.
Ou, o que vem a dar no mesmo, a concepção isenta de toda dúvida de um espírito puro e atento, que nasce da só luz da razão".
As idéias simples são intuições. Tais, no citar de Descartes, são, por exemplo, percepção da existência do Eu, do triângulo, da esfera.
Pretendeu ainda Descartes que tais idéias são inatas (vd). Mas esta é uma questão distinta, cuja aceitação ou não, nada afeta o fato da intuição inicial.
111. Admitiu Descartes, ao seu modo, duas espécies de evidência, a intuitiva e a dedutiva.
Pode-se examinar em separado cada intuição, o que se pode deixar para depois, quando importa destacar sobretudo o da percepção da existência real do Eu.
O que inicialmente nos deve preocupar é perguntar pela distinção entre as duas espécies de evidências, a intuitiva e a dedutiva. Um texto de Descartes admite esta distinção e aponta para diversas verdades fundamentais, percebidas intuitivamente e que surgem como dados puros.
"Primeiramente, considero haver em nós noções primitivas, as quais são como originais, sob cujo padrão formamos todos os nossos outros conhecimentos.
E não há senão muito poucas dessas noções; pois, - após as mais gerais, do ser, do número, da duração, etc..., que convém a tudo quanto possamos conhecer, -
possuímos, em relação ao corpo em particular, apenas a noção da extensão, da qual decorrem as da figura e do movimento;
e, quanto à alma somente, temos apenas a do pensamento, em que se acham compreendidas as percepções do entendimento e as inclinações da vontade;
enfim, quanto à alma e ao corpo em conjunto, temos apenas a de sua união, da qual depende a noção da força de que dispõe a alma para mover o corpo, e o corpo para atuar sobre a alma, causando seus sentimentos e suas paixões" (Cartas. A Elisabeth, 21 de maio de 1643).
112. Tais noções, sendo simples, somente podem ser entendidas diretamente. Não se explicam por outras. Se isto se tentasse, seria errar.
"Considero também que toda a ciência dos homens consiste tão somente em bem distinguir essas noções, e não atribuir cada qual senão às coisas a que pertencem.
Pois, ao querer explicar alguma dificuldade, por uma noção que não lhe pertence, não podemos deixar de nos equivocar; assim como ao querer explicar uma dessas noções por outra; pois, sendo primitivas, cada uma delas só pode ser entendida por si mesma.
E já que a prática dos sentidos nos tornou as noções da extensão, das figuras e dos movimentos muito mais familiares, do que as outras, a principal causa de nossos erros está em que pretendemos comumente nos servir dessas noções, para explicar as coisas a que não pertencem, como quando se quer utilizar a imaginação para conceber a natureza da alma, ou então quando se quer conceber a maneira pela qual a alma move o corpo, mediante aquela pela qual um corpo é movido por outro corpo" (Cartas. A Elisabeth , 21 de maio de 1643).
113. Mesmo o explicitamente evidente à visão fenomenológica, se sujeita a uma legítima indagação. É o que se denomina dúvida fictícia, ou dúvida indagatória, ou simplesmente pergunta.
Observa-se prontamente, que não é possível duvidar do que é simplesmente dado nestas condições. Ora, foi o que fez Descartes, quando perguntava, se podia duvidar que pensava. Porque mesmo que duvidasse, não podia duvidar que duvidava, porque duvidar já era pensar.
Escreveu Descartes no começo de seus Princípios de Filosofia:
"Quem inquire a verdade deve duvidar uma vez em sua vida, acerca de todas as coisas, quanto seja possível" (nr. 1).
Ora, há algo a que não foi possível estender a dúvida, embora fosse tentada pela pergunta, ou problematização indagatória.
Às vezes Descartes parece fazer discursividade, como se operasse por análise ao modo da inferência e da indução ou como se operasse por síntese do silogismo. Mas é apenas uma formulação aparente.
Parece caminhar, por análise, do explícito para o implícito. Não o faz efetivamente. Se diz "penso", "logo existo", poderia parecer estar dizendo que o "penso" implicitamente contém o "existo".
Efetivamente, porém, pretende dizer que pensamos e existimos, como se ambas as verdades se apresentassem explicitamente. Se Descartes caminhasse pelas implicâncias do explícito para o implícito estaria a fazer uma discursividade e seria um defeito; já não haveria fenomenologia, mas um andar teórico da essência para a existência.
114. Nem utiliza Descartes o silogismo demonstrativo. Ainda quando usa o "ergo" (= portanto) em Meditationes, importa entendê-lo adequadamente.
Também Descartes diz expressamente que não faz silogismo. Mas não basta, porque poderia estar fazendo uma análise de inferência mediata, como quando se estabelece um princípio, ou axioma.
Por isso não basta que Descartes se defenda, esclarecendo que o ergo sum (= logo existo) não é um silogismo. Supor que algo tenha causa, em si ou em outro (princípio de causalidade) é operar analiticamente, em busca de algo implícito, e que não é simplesmente um dado explícito.
Leia-se o texto defensivo de Descartes:
"O conhecimento dos primeiros princípios ou axiomas não costuma ser chamado ciência pelos dialéticos.
Mas, quando percebemos que somos coisas pensantes, trata-se de uma primeira noção que não é extraída de nenhum silogismo; e quando alguém diz, penso, logo sou, ou existo, ele não conclui sua existência de seu pensamento como pela força de algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si; ele a vê por simples inspeção do espírito.
Como se evidencia do fato de que, se a deduzisse por meio do silogismo, deveria antes conhecer esta premissa maior: tudo o que pensa é ou existe. Mas, ao contrário, esta lhe é ensinada por ele sentir em si próprio do nosso espírito formar as proposições gerais pelo conhecimento das particulares" (Resposta do Autor as segundas objeções, Ed. port., Dif. Européia do Livro, S. Paulo, 1962, p. 219).
II - A dedução cartesiana. 3686y116.
117. Os textos de Descartes distinguem entre dedução e indução. O que estas duas palavras clássicas indicam, é reunido sob a mesma palavra dedução. É que em Descartes não se exerce, ou ao menos nem sempre, a dedução ao modo de comparação de premissas (dedução) e apelo ao trâmite do todo para as partes e das partes para o todo (indução). A dedução inclui mesmo a explicitação do implícito, ou seja, a simples inferência.
Em Descartes, dedução indica simplesmente a caminhada do intuitivo para novas noções mediante simples ligação de elo (cf. Hamelin - O sistema de Descartes). A cada elo se observará de novo diretamente. Por isso, em última instância, só há conhecimento intuitivos nesta modalidade de dedução.
Não pretende Descartes uma dedução à maneira da que procede por meio de termo médio (silogismo aristotélico). Acredita que podemos reduzir os pensamentos a noções que se concatenam em simples sucessão, a maneira de enumeração dos elementos que se prendem por relações sucessivas.
As conexões entre uma noção e outra se dão por relações diretamente apreendidas. Em última instância, pois, os elementos dedutivos se reduzem também à intuições.
A memória permite atender a todos os elementos simultaneamente. Desta sorte, o exercício constante da memória permite expor cada vez mais claramente a totalidade dos elementos numerados, até que o todo se torne inteiramente intuitivo, desde o último até ao primeiro elo. E assim o deduzir é também um ver intuitivo.
"... todas as proposições que tenhamos deduzido imediatamente umas de outras, serão equivalentes a uma verdadeira intuição, se a dedução houver sido evidente" (Regras III, §14).
"Se, tal como se fez na regra 3, examinamos a formação da dedução veremos que ela não parece operar-se instantaneamente, senão de nosso espírito; por isso, nessa regra a temos distinguido legitimamente da intuição. Se, porém, a considerarmos uma vez feita, segundo dizemos na regra 7, então já não designa um movimento, senão um termo de um movimento; por isso supomos que se a vê por intuição quando é simples e clara" (Regras, 11, §67).
Reduz-se, pois, o sistema cartesiano do conhecimento a duas coisas: intuição das noções simples (intuição propriamente dita) e intuição das relações que em si mesmas são igualmente noções simples. Tal maneira de se conceber o processo cognoscitivo difere da dedução silogística de Aristóteles.
118. Investe Descartes contra a lógica dos conceitos e silogismos como se encontram na Arte de Lúlio, nos escolásticos, na árvore porfiriana, em Aristóteles, enfim negando-lhes valor gnosiológico.
Alega a inutilidade do silogismo, por achar que nada traz de novo na conclusão, porquanto esta já tem de estar suposta nas premissas. Não passaria de um processo de aclaramento.
Na regra X foi contundente contra o silogismo:
"Para convencer-se absolutamente de que a arte silogística não é de nenhuma utilidade no conhecimento da verdade, há que observar que os dialéticos não podem formar nenhum silogismo concludente sem ter antes a matéria, isto é, sem conhecer por antecipação a verdade que este silogismo expõe.
Daqui se deduz que esta forma não oferece nada novo, que, por conseguinte, a dialética vulgar é completamente inútil ao que quer a verdade e que somente pode servir para expor aos demais com maior facilidade as verdades já conhecidas e que, portanto, há que transferi-la da filosofia para retórica".
A suposta síntese criada pelo silogismo é secretamente prevista pela estrutura deste modo de raciocinar, - diz mais uma vez Descartes na exposição da regra XIII:
"Só nisto imitamos aos dialéticos: assim como para ensinar as formas dos silogismos, eles supõem conhecidos seus termos ou matéria, da mesma maneira nós exigimos previamente que o problema seja perfeitamente compreendido. Porém não distinguimos, como eles, dois extremos e um médio, senão que consideramos o problema inteiro assim:
1-o, em todo o problema deve haver algo desconhecido, pois do contrário não haveria problema;
2-o, este algo deve ser designado de alguma maneira, pois de outro modo não haveria razão para investigar esse algo e não outra coisa;
3-o, esse algo não pode estar designado senão por algo conhecido".
119. Cabe inquirir até onde Descartes argumenta bem e até onde talvez incorra em equívoco.
É claro que no silogismo, o consequente deve estar contido de algum modo no antecedente. Seu modo é o virtual e não o formal (este, o formal, é o modo como o implícito está contido no explícito). As premissas, não contendo embora formalmente a conclusão, têm a força (a virtualidade) de encaminhar o pensamento a ela. Este trabalho é um efeito e não é um simples desdobrar retórico.
120. Mais uma vez o matematicismo (vd 89) parece estar presente nos radicalismos de Descartes.
Na suposição da índole matemática da natureza, ou dos corpos, Descartes aplicou o método dedutivo à física. Mais facilmente se mostra o equívoco, na física, do que na metafísica.
"Em física não admito nem desejo princípios diversos que os da geometria ou da matemática abstrata, porque deste modo se explicam todos os fenômenos da natureza e podem dar-se dos mesmos demonstrações certas" (Princípios da Filosofia, II, n. 64).
Aqui Descartes se encontra em oposição clara a Francisco Bacon. O empirista inglês insiste que não podemos conseguir o particular, a partir do geral; a forma, ou essência, do ser particular, exatamente porque não se encontra contida no geral, deve ser buscada pela experiência, portanto por via indutiva e não dedutiva.
A física, como hoje se a entende, não parece progredir senão por método indutivo, arrolando dados sobre o comportamento dos corpos.
Quanto à pergunta filosófica sobre os corpos, também estas indagações enquanto filosóficas, permanecerão dentro da índole dos objetos (pontos de vista formais investigados), sem portanto se subordinarem diretamente ao ponto de vista matemático.
121. Uma importante pergunta a erguer consiste em inquirir de Descartes, - se aplicou à filosofia um método analítico peculiar a mesma filosofia? ou se a sujeitou a um método próprio da matemática?
Com frequência se diz que Descartes aplicou o método matemático às filosofias. Até aonde isto é verdade? Afirma-o J. Hirschberger.
A pergunta poderá ser dividida:
- com que método tratou Descartes a lógica (ou seja o raciocínio)?
- Com que método tratou as evidências, ao proceder a dúvida sucessiva dos elementos mais complexos, divididos sucessivamente nos menos complexos até alcançar a noção mais simples?
122. O ideal cartesiano é, pelo menos, de alcançar uma filosofia tão clara e perfeita quanto ocorre com as verdades matemáticas e geométricas.
Tal objetivo se encontra manifesto no título primeiramente adotado por Descartes para o Discurso do Método: o projeto de uma ciência universal que possa elevar nossa natureza a seu mais alto grau de perfeição (Carta de Mersenne, março 1636).
Todavia, - ao contrário do que pensasse Descartes, - este ideal não implica na adoção do método matemático na mesma filosofia.
O mos geometricus de Spinoza seguramente que é uma aplicação do método matemático à filosofia.
Com referência à geometria, Descartes aplicou eficazmente a análise e a síntese. Criou a geometria analítica, ao reduzir as figuras geométricas as grandezas simples fundamentais e ao estudar matematicamente as relações mútuas.
Algo semelhante exerceu ao examinar as noções intuitivas simples e suas relações com as idéias compostas, ou delas dependentes. O cogito (o pensamento) é uma destas noções simples fundamentais, que se prestam como início de uma cadeia de considerações. E assim haverá outras, por exemplo, a de extensão.
"Devemos notar que há poucas naturezas puras e simples... São elas as que chamamos as mais simples em cada série. Todas as outras, ao contrário, não podem ser percebidas, senão deduzidas destas" (Regra VI, 6).
Este método, ainda que seja assim o matemático, é, para Descartes, o mesmo da filosofia. Mas, - pode-se opinar contra, - deve-se ainda proceder ao mutatis mutandis, entendendo a análise e a síntese, de acordo com a diversidade matemática e filosófica dos objetos.
123. Na explicação do silogismo, as proporções com que o termo médio contém os extremos, se hão de entender adequadamente na filosofia e na matemática. Na filosofia as proporções se dão em todo o gênero, inclusive qualitativo, ao passo que na matemática tão só quantitativamente.
É o que em Aristóteles parece claro e nem sempre em Descartes, bem como no cartesianismo em geral.
"Poder-se-ia argumentar que Descartes pudesse haver extraído diretamente das matemáticas as regras (quatro) ou a regra da dedução e além disto o seu ideal de ciência sintética. Pode ser.
Este trabalho, porém já o havia feito Aristóteles. Efetivamente, quando Aristóteles escreve seus Analíticos, a geometria grega está constituída e Euclides compunha seus Elementos. Os exemplos de demonstrações os toma Aristóteles da geometria. Quando quer mostrar que os silogismos da primeira figura são os mais científicos, diz que estes silogismos afetam a mesma forma das demonstrações matemáticas (Anal. Post.,I, 14 com.).
A linguagem da silogística, está calcada, como o assinala Trendelenburg (El. Log. Aristotel. 8-o ed. §22 e 24), sobre a teoria das proporções", (O. Hamelin, O sistema de Descartes, item IV, final, p. 69 da ed. esp.).
III - A certeza cartesiana a partir do cogito intuitivo. 3686y125.
126. Para Descartes a certeza é um problema a ser examinado. Pondo o problema, adverte que não se trata apenas de inquirir a certeza sucessiva dos conhecimentos todos, mas a certeza simplesmente, de tal sorte a apurar se existe um critério intrínseco que possa decidir sempre quando ela existe.
O método em que se situa é fenomenológico, pois vai examinar se possui alguma certeza, para nesta inquirir em que se apóia, para assim se estabelecer com certeza.
Para achar uma certeza, como dado definitivo, tenta a dúvida, com o fim de descobrir onde uma verdade se mantém como inarredavelmente certa.
Mas, não precisa, nesta destruição das suas antigas opiniões, tentar a eliminação indiscriminada de todas, "pois nunca acabaria". Todavia, se a "ruína dos fundamentos traz consigo a de todo o edifício, - diz Descartes, - me basta atacar os princípios em que apoiavam minhas antigas opiniões" (Med. metafísica, 1).
127. Quais seriam as certezas iniciais? Sem ainda pedir a Descartes como as prova depois, as lembramos aqui, com o objetivo de mostrar de que maneira nelas via a certeza. Esta a vê como propriedade de conhecimento, enquanto este se dá. E assim, ao mesmo tempo que atingia os primeiros conhecimentos, se advertia da certeza pelas quais se davam como certas, isto é, como sempre certas.
O que ficava desde logo como inarredavelmente certo, e sem possibilidade de ser posto em definitiva dúvida, era as convicções
de que eu penso,
de que eu sou uma coisa que pensa,
de que eu existo como ser pensante,
de que penso, logo existo (Discurso do método, 2: Meditações metafísicas, II, 2: Princípios de Filosofia, 1).
Adverte, pois, Descartes, que o eu penso é uma verdade primitiva. "... quando disse, que a proposição penso logo existo é a primeira e a mais certa que se apresenta a quem quer que filosofe com método, não neguei com isso que antes da mesma é preciso conhecer que é o pensamento, que é a existência, que é a certeza, e também que não pode ocorrer que aquele que pensa não exista e outras tais. Mas como estas são noções simplicíssimas e as únicas que não dão notícia de uma coisa existente, por isso mesmo não tenho crido que devam ser consideradas" (Descartes, Princípios da Filosofia, I, 10).
No penso logo existo não só vê Descartes a possibilidade de caminhar para uma prova da existência real, como ainda admite observar-se neste dado algo mais sobre o pensamento que se mostre desde o início. Nesta relação coloca-se especialmente a investigação sobre a certeza.
IV - Critério da verdade, - clareza e distinção. 3686y129.
130. Compreendeu Descartes que a certeza se mostra no dado conhecido ao mesmo tempo que este se faz conhecer. Enquanto o dado se oferece, traz consigo os elementos que o tornam certeza auto-suficiente.
O critério da certeza assume assim o caráter de critério intrínseco. Desta sorte os primeiros conhecimentos, dotados deste critério intrínseco, se auto-justificam pela sua própria cristalinidade.
Nem seria possível de outro modo; se houvéssemos de tomar um critério extrínseco, por sua vez o critério extrínseco adotado reclamaria outro, fazendo-se uma série infinita.
A questão devia, portanto, ser tratada desde logo nos mesmos fundamentos da teoria fundamental do conhecimento.
Aprofunda, então, Descartes os motivos que levam à aceitação do dado sempre explícito à evidência. Procurando descobrir que é que há no conhecimento que o torna auto-suficiente no plano da certeza, achou que deveria aceitar, como elementos responsáveis por esta convicção, a clareza e a distinção com que os mesmos dados se oferecem.
131. Primeiramente, o que é que Descartes entendia por clareza e o que por distinção?
A clareza se diz da manifestação em absoluto, enquanto a forma brilha diretamente.
A distinção é o efeito formal em virtude do qual a forma que brilha se distingue das outras formas, tornando-a inconfundível.
"Chamo idéia clara aquela que se apresenta e se manifesta a um espírito atento como dizemos que vemos claramente as coisas que, presente ao olho, que as olha, o impressionam com bastante força e claridade.
Por sua vez chamo idéia distinta a que sendo clara está tão precisamente separada de todas as outras, que não contém em si absolutamente nada mais que o que é claro" (Princípios de Filosofia, 45).
"Depois disso, considerei em geral o que é que uma proposição requer para ser verdadeira e certa, pois que tendo acabado de achar uma, que eu sabia ser tal, julguei que eu também devia saber, em que consiste essa certeza.
E tendo notado que nada absolutamente se contém neste enunciado (eu penso, logo existo) que me garanta estar eu dizendo a verdade, senão que eu vejo mui claramente que, para pensar, é necessário existir, acreditei:
que podia assentar, como regra geral, que as coisas que nós concebemos claríssima e distintíssimamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em bem distinguir, quais são aquelas que nós concebemos distintamente" (Disc. do Método, 4-a. med.).
Repete, em Meditações Metafísicas, as razões pelas quais ainda é a percepção clara e distinta o critério que evidencia a verdade:
"Estou certo de que sou uma coisa que pensa, mas por acaso não sei também, quais são os requisitos indispensáveis para estar certo de alguma coisa?
Desde logo, neste meu primeiro conhecimento, nada existe que me assegure da sua verdade, a não ser a percepção clara e distinta do que digo, a qual não seria certamente suficiente para assegurar, que o que digo é verdade, se pudesse acontecer alguma vez que fosse falsa uma coisa concebida por mim por esse modo claro e distinto.
Pelo suposto já me parece que posso estabelecer esta regra geral: que todas as coisas que concebemos muito clara e distintamente são verdadeiras".
132. Descartes passou a ser exaustivo sobre o critério da verdade, ao responder objeções a propósito de sua alegação de que Deus não pode mentir nem ser enganador:
"Explicarei aqui de novo o fundamento em que me parece possível apoiar toda a certeza humana.
Primeiramente, tão logo pensamos conceber claramente qualquer verdade, somos naturalmente levados a crer nela
E, se tal crença for tão forte, que jamais possamos alimentar qualquer razão de duvidar daquilo que acreditamos desta forma, nada mais há que procurar: temos, no tocante a isso, toda a certeza que se possa razoavelmente desejar.
Pois, o que nos importa, se talvez alguém fingir que mesmo aquilo, de cuja verdade nos sentimos tão fortemente persuadidos, parece falso aos olhos de Deus ou dos anjos, e que, portanto, em termos absolutos, é falso?
Porque devemos ficar inquietos com essa falsidade absoluta, se não cremos nela de modo algum e se dela não temos a menor suspeita? Pois pressupomos uma crença ou uma persuasão tão firme, que não possa ser suprimida; a qual, por conseguinte, é em tudo o mesmo que uma perfeitíssima certeza. Mas é realmente dubitável que tenhamos qualquer certeza dessa natureza, ou qualquer persuasão firme e imutável.
E, por certo, é patente que não se possa tê-la das coisas obscuras e confusas, por pouca obscuridade ou confusão que nelas observemos; pois tal obscuridade, qualquer que seja, é causa assaz suficiente para nos fazer duvidar dessas coisas.
Tão pouco podemos tê-la das coisas percebidas apenas pelos sentidos, não importa a clareza que ocorra em sua percepção, porque muitas vezes já notamos que no sentido pode haver erro, como quando um hidrópico sente sede ou a neve parece amarela a quem sofre de icterícia; pois este último não a vê menos clara e distintamente desta forma, do que nós a quem ela parece branca. Resta, portanto, que, se podemos tê-la, é somente das coisas que o espírito concebe clara e distintamente.
Ora, entre tais coisas, algumas há tão claras e ao mesmo tempo tão simples, que nos é impossível pensar nelas sem que as julguemos verdadeiras; por exemplo, que existo quando penso, que as coisas que foram alguma vez feitas não podem não ter sido feitas, e outras semelhantes, das quais é manifesto que possuímos perfeita certeza.
Pois não podemos duvidar dessas coisas sem pensar nelas; mas não podemos jamais pensá-las, sem acreditar que sejam verdadeiras, com acabo de dizer; logo, não podemos duvidar delas sem as crermos verdadeiras, isto é, nunca podemos duvidar delas" (Descartes, Respostas às segundas objeções, anexas a Meditações Metafísicas, ed. port. Difusão Européia do Livro, 1962, p. 222-223).
133. Havendo encontrado um fundamento para discernir o erro da verdade, conseguiu Descartes evadir-se do ceticismo. A certeza encontra seus fundamentos já nos primeiros instantes dos dados que se revelam.
Há, por conseguinte, em Descartes, uma fenomenologia, a qual encontra dados intuitivos e os descreve, sem fazer demonstrações cursivas.
Talvez não seja tão amplo o círculo das evidências imediatas de Descartes quanto o dos clássicos. Todavia, as primeiras certezas admitidas por Descartes admite são tão radicais quanto as dos clássicos, porque em todos elas se fundamentam no dado mesmo, como de primeiro intuito se apresenta, não se necessitando qualquer discursividade.
Mas Descartes se limitou à certeza de evidência imediata dos dados mais internos à consciência. Ficou no mundo do sujeito, sem incluir o objeto do mundo sensível. Continuou sendo um platônico, um agostiniano., um racionalista radical.
Não se sabe, por evidência explícita, se a realidade ali efetivamente ocorre. Portanto, para Descartes, a realidade do mundo exterior somente poderá ser provada, se ocorrer uma via indireta, como verdade alcançada demonstrativamente. É apenas ali que o nível das certezas cartesianas é diferente da dos clássicos realistas imediatos. Deste problema, que é o do realismo, há que cuidar em separado (vd).
V - A certeza, como estado do conceito. 3383y135.
136. Para Descartes o pensamento pode reduzir-se a idéias ou conceitos, sem que estejam formando juízos. Para outros só há conceitos em juízos.
Pergunta subtil é a de saber, se a certeza é percebida expressamente no instante da idéia (1-a operação mental), ou se no instante do juízo (2-a operação mental).
Descartes sugere algo neste sentido. Para ele, como para gregos antigos e escolásticos medievais, a verdade é a adequação entre a coisa e a imagem cognoscitiva (ou idéia). A idéia é uma essência objetiva, ou figura, do objeto que se fez conhecer.
Mas, o instante totalmente consciente em que a inteligência reconhece a adequação entre a imagem e o objeto, constitui uma percepção à maneira de juízo, o qual afirma ou nega. Entretanto não esteve, ao que parece, atento a este aspecto da percepção da evidência. Nem considerou, que todo o dado é enunciado em forma de juízo, e não de conceito isolado.
137. Descartes tende a reduzir todo o pensamento a idéias (ou intuições). O sistema cartesiano é associacionista, porque as idéias podem existir sem estarem desde logo integradas em juízos e se podem unir sem que formulem juízos.
Também as relações podem ser objeto das idéias, que as podem intuir diretamente. A proporção entre a idéia e o objeto pode ser percebida intuitivamente.
Quer seja por intuição, quer por um juízo específico, tal adequação é uma percepção que não se confunde com a percepção do objeto simplesmente.
Há, portanto, dois tempos: um primeiro é o conhecer o objeto, um segundo é o perceber a adequação entre o conhecimento e o objeto conhecido. Neste segundo, a mente vê - diz Descartes, - clara e distintamente a proporção entre a idéia e seu objeto.
2006-11-24 20:39:30
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