Vamos ver:
Será o criminoso responsável pelos seus atos ou vítima de um estado doentio?
A sociedade em geral e, em particular, a justiça penal, carecem de noções mais precisas corroborando ou contestando da forma mais clara possível, a idéia de Traços de Personalidade ou de uma Personalidade Criminosa determinante de comportamentos delinqüentes. Essa também é a grande dúvida da psiquiatria.
Especular sobre o grau de noção ou de juízo crítico que o criminoso tem de seu ato, e até que ponto ele seria senhor absoluto de suas ações ou servo submisso de sua natureza biológica, social ou vivencial, sempre foi preocupação da sociologia, antropologia e psiquiatria. Isso se aplica aos inúmeros casos de assassinos seriais, estupradores contumazes, gangues de delinqüentes, traficantes, estelionatários, etc, etc.
Como veremos nessa revisão, dois pontos se destacam na literatura mundial; primeiro, é que parece aceitar-se, unanimemente, a existência uma determinada personalidade marcantemente criminosa ou, ao menos, inclinada significativamente para o crime. Em segundo, que a diferença principal entre as várias tendências doutrinárias diz respeito à flexibilidade ou inflexibilidade dessa personalidade criminosa, atribuindo ora uma predominância de fatores genéticos, ora de fatores emocionais e afetivos e, ora ainda, fatores sociais e vivenciais. E essa última questão estará diretamente relacionada ao arbítrio, juízo e punibilidade do infrator.
A ocasião faz o ladrão ou existe o Livre Arbítrio?
Monomania Homicida, um termo curioso, foi proposto por Esquirol em 1838 para designar certas formas de loucura, cujo único sintoma evidente seria uma desordem ética e moral, propensa à prática de crimes. Talvez se tratasse de uma exigência mais social que médica, numa tentativa da sociedade segregar as duas figuras mais temidas do desvio da conduta humana; o louco alienado e o criminoso cruel. Esta posição nosográfica foi reforçada por Prichard, alguns anos depois de Esquirol, com seus trabalhos sobre uma tal Loucura Moral.
Hoje, séculos e nomenclaturas depois, existem na CID.10 critérios de diagnóstico para a Personalidade Dissocial, caracterizada por um desprezo das obrigações sociais, falta de empatia para com os outros e por um desvio considerável entre o comportamento e as normas sociais. Neste tipo de personalidade há uma baixa tolerância à frustração e baixo limiar de descarga da agressividade, inclusive da violência, existe também uma tendência a culpar os outros ou a fornecer racionalizações duvidosas para explicar um comportamento de conflito com a sociedade. Seriam sinônimos dessa Personalidade Dissocial, a Personalidade Amoral, Personalidade Anti-social, Personalidade Associal, Personalidade Psicopática e a Personalidade Sociopática.
No DSM.IV, por sua vez, a característica essencial do transtorno da Personalidade Anti-Social seria um padrão de desrespeito e violação dos direitos dos outros, padrão este também conhecido como psicopatia, sociopatia ou transtorno da personalidade dissocial. O engodo e a manipulação maquiavélica das outras pessoas são aspectos centrais neste transtorno da Personalidade, no qual ocorre também violação de normas ou regras sociais importantes. Os comportamentos criminosos ou delinqüenciais característicos desse transtorno de personalidade englobam a agressão a pessoas e animais, destruição de propriedade, defraudação ou furto e séria violação de regras.
As pessoas com transtorno da Personalidade Anti-Social não se conformam às normas legais, desrespeitam os direitos ou sentimentos alheios, enganam ou manipulam os outros a fim de obter vantagens pessoais, mentem repetidamente, ludibriam e fingem. Esses indivíduos costumam ainda ser irritáveis ou agressivos.
A dúvida que costuma acometer a maioria dos psiquiatras diz respeito à existência ou não de um real componente psicopatológico atrelado a Sociopatia. Michel Foucault, por exemplo, contestava essa entidade estranha e paradoxal inventada pela psiquiatria do Século XIX, que era a Monomania Homicida ou a Loucura Moral, e que caracterizava crimes que não eram senão uma forma de loucura ou, mais grave ainda, uma loucura que não se revela senão através do crime.
A discussão que sempre existiu sobre a conduta humana se dá entre dois argumentos causais: o Livre Arbítrio da pessoa, o qual implica na conseqüência e eventual punibilidade dos atos de todas as pessoas e, por outro lado, na Constituição Biológica, como uma fatalidade orgânica que empurra a pessoa a agir dessa ou daquela forma (maniqueistamente).
O reconhecimento da existência de uma personalidade em estado perigoso (periculosidade), fez com que a sociedade não se preocupasse mais, e exclusivamente, com a gravidade do ato criminoso mas, sobretudo, com a incômoda e problemática natureza do criminoso. A noção de Periculosidade, então, nasceu da conceituação de alguma patologia incrustada na personalidade do criminoso, tal como a antiga Monomania Homicida, atenuando assim a responsabilidade plena dos atos cometidos e, ao mesmo tempo, prevenindo a sociedade da presença incômoda desses mutilados éticos através da segregação manicomial.
Apesar de hoje em dia não ser mais aceita a noção simplória da Monomania Homicida, antes de ser abandonada essa idéia estimulou a esdrúxula Teoria da Degenerescência, desenvolvida por Morel em 1857 e embasada por outros autores de grande expressão. Na realidade, foi a partir da Degenerescência da espécie humana, de Morel, através de seus simpatizantes ou contestadores, que se desenvolveram as mais variadas teorias biológicas, psicológicas, sociológicas e antropológicas sobre o crime, criminalidade e criminoso que hoje conhecemos.
Inicialmente tivemos as conhecidas idéias de Lombroso, através de seus estudos morfológicos e anatômicos, na tentativa de conhecer mais profundamente a natureza do ser humano criminoso. Ele pressupunha um conjunto de estigmas biológicos e anatômicos que caracterizariam o criminoso e revelariam nele a reminiscência de um nível inferior da escala do desenvolvimento humano. Era uma espécie de determinismo biológico que marcava profundamente essas pessoas tidas como sub-humanas.
Nessa época distinguia-se apenas dois tipos de criminosos; o criminoso ocasional, representado por uma pessoa normal e fortuitamente criminosa sob influência de diversas circunstâncias e o criminoso nato, de natureza diferente da do homem normal, instintivo e cuja inclinação para o crime resultava de uma organização própria de sua biologia. Esse conceito em nada difere o Louco Moral do atual Sociopata.
Em seguida, Lombroso passou a classificar os criminosos em 5 tipos:
1. O Criminoso Nato, segundo ele representado pela maioria dos casos era, como o próprio nome indica, portador de um patrimônio genético causador de sua criminalidade. Ele é seria o resquício do Homem Selvagem, uma espécie de subtipo humano, enfim, um ser degenerado.
2. O Criminoso Louco ou Alienado, no qual existia uma perturbação mental associada ao comportamento delinqüente, considerado como um Louco Moral ou um Perverso Constitucional.
3. O Criminoso Profissional, que não possui os estigmas biológicos inatos, como os anteriores, mas que se tornava criminoso por forças e pressões do seu meio. Este criminoso começa por um crime ocasional e pode reincidir.
4. O Criminoso Primário, que cometerá um ou outro delito por força de um conjunto de fatores circunstanciais do meio, mas não tenderia para a reincidência. De acordo com Lombroso, estes eram ainda predispostos por hereditariedade para o crime, mas não possuíam uma tendência genética para ele (?). Para Ferri (Peixoto), seriam, ao contrário do ditado que diz "a ocasião faz o ladrão", ladrões já prontos e aguardando a melhor ocasião para roubar.
5. O Criminoso por Paixão, vítima de um humor exaltado, de uma sensibilidade exagerada, "nervoso", explosivo e inconseqüente, a quem a contrariedade dos sentimentos leva por vezes a cometer atos criminosos, impulsivos e violentos, como solução para as suas crises emocionais.
O que é determinismo criminoso ?
Apesar dos estudos de Lombroso terem se limitado às relações entre anatomia e crime, entendendo-se este como uma espécie de anomalia morfológica, sua contribuição foi fundamental para o enriquecimento do conceito holístico do ser humano. Garofalo, na mesma linha das concepções genéticas e constitucionais, atribuía maior importância aos aspectos morais e psicológicos do que aos elementos anatômicos. Ele passou a defender o ponto de vista, segundo o qual, os criminosos possuiriam uma anomalia moral e psíquica, uma espécie de lesão ética, responsável pela prática da delinqüência. A predeterminação da personalidade ao crime caminhou, então, da anatomia defeituosa à lesão ética. De qualquer forma, não se falava em livre arbítrio do criminoso.
Foi nesta ocasião que Colajanni, defendendo também a predisposição psíquica do delinqüente, sugeriu à criminologia o conceito de periculosidade; uma perversidade constitucional e ativa no delinqüente, bem como uma certa quantidade de maldades que se podia esperar dele, quase automaticamente. Nesta mesma época, partindo ainda das concepções biológicas de Lombroso, Enrico Ferri, elaborou um dos primeiros modelos integrativo do direito com a psiquiatria e com a sociologia, valorizando como um importante fator na determinação do crime, além da predisposição psíquica, também o meio social onde se inseria o criminoso. Ainda assim não se falava em juízo crítico e arbítrio do contraventor; ora era a biologia a responsável pelo delito, ora a tal Lesão Ética, ora a psicologia claudicante do criminoso e, finalmente, poderia ser também o meio social propício ao crime.
Se Lombroso despertou uma série de conceitos posteriores baseados na importância da constituição biológica, não lhe faltaram opositores. Os autores mais modernos achavam demasiadamente retrógrada a idéia do determinismo biológico de Lombroso, e alguns preferiam o determinismo social. Embora essa nova migração das influências criminais, do biológico para o social, dava a impressão de chique avanço intelectual, continuava sendo determinista do mesmo jeito. O criminoso continuava objeto de forças emancipadas de seu arbítrio e decisão. Este determinismo social, concebido por autores da moda, não era menos radical que o determinismo biológico de Lombroso. Alguns até defendiam que "cada sociedade tem os criminosos que merece", e que os fatores sociais e geográficos, por si só, já seriam suficientes para explicar a criminalidade. Dessa forma, a intenção, motivo ou personalidade do delinqüente, ficavam em segundo plano.
Apesar de todas estas movimentações doutrinárias, a figura do Criminoso Nato e Constitucional dominou os estudos de criminologia no séc. XIX e início do séc. XX, progressivamente substituindo a predominância da constituição biológica em favor de uma natureza psicológica, moral e até social. Com base nestas várias teorias, considera-se a possibilidade de alguma alteração psíquica relacionada com a criminalidade. Inicialmente tem-se em mente a figura do Perverso Constitucional e, posteriormente, a figura do Sociopata e do Psicopata, atualmente, fala-se na Personalidade Anti-Social dos manuais de diagnóstico DSM.IV e CID.10.
Na realidade, ao longo de mais de um século houve apenas um deslocamento das teorias deterministas; inicialmente falava-se no determinismo biológico, onde as constituições genéticas e hereditárias eram determinantes absolutas. Posteriormente foi a vez do determinismo moral, onde o indivíduo podia já nascer degenerado ou normal. Em seguida, foi a vez do determinismo psicológico, onde as maneiras da pessoa reagir psicologicamente à vida eram inatas, absolutas e invariáveis e, finalmente, veio o determinismo social, reconhecendo circunstâncias sociais que empurravam invariavelmente a pessoa para o crime.
Com tantos determinismos, de qualquer forma o delinqüente continuava sempre sendo vítima de alguma circunstância, interna ou externa, a qual eximia a responsabilidade plena por seu ato, como se, por sua constituição, fosse ela biológica, moral ou psicológica, ou ainda pelas adversidades sociais e culturais ou, simplesmente pelo modismo, não lhe restasse outra opção senão o crime.
Quem acredita no Livre Arbítrio do criminoso?
Se, do século XIX até atualmente, acreditava-se que elementos ou fatores, internos ou externos, determinavam inexoravelmente uma espécie de Homem Criminoso, recentemente surgiu uma nova corrente fenomenológica de De Greeff. Trata-se de uma tendência que procura compreender as vivências interiores do delinqüente e o processo do ato criminoso, partindo dum pressuposto de que o delinqüente não é um ser diferente, por natureza ou qualidade, das outras pessoas. Em natureza e qualidade, o hipotético Homem Criminoso seria igual ao indivíduo dito normal, diferindo deste apenas em relação a um certo número de características, as quais facilitam nele a execução do ato criminoso. Com De Greeff deixamos o constitucional ou degenerado comprometedor da espécie humana, e passamos a considerar a pessoa com sua história pessoal, a considerar o conjunto de processos psicológicos, afetivos, morais, sociais, etc, eventualmente capazes de conduzir à criminalidade. E esse "certo número de características, as quais facilitam nele a execução do ato criminoso", parece tratar-se de algo relacionado à escala de valores, ou seja, um atributo muito mais arbitrário e eletivo das pessoas do que os determinismos estigmatizantes até então considerados.
As idéias de De Greeff despertaram a necessidade de encarar o delinqüente como qualquer outra pessoa, possuidor de uma história particular e opções pessoais realizadas em função desta história. Tal posição pode ser considerada "fenomenológica", e atenuou, sobremaneira, a hipótese de uma incontrolável predeterminação biológica, psicológica e social para a criminalidade. Essa fenomenologia valorizava sim a conduta geral da pessoa, seu caráter, seus motivos, instintos, afetos e antecedentes pessoais. A partir de agora, há necessidade de se conhecer profundamente o criminoso naquilo que ele tem de mais específico: sua personalidade específica pessoal e não mais uma personalidade geral e própria dos Homens Criminosos.
Entretanto, livrar-se da idéia de Personalidade Criminosa não é tão simples assim. Surgiu então o conceito de periculosidade. O conceito de periculosidade, tal como refere Debuyst, incluía três elementos: a personalidade criminosa, a situação perigosa e a importância sócio-cultural do ato cometido. Segundo este autor, através da periculosidade seria possível fazer um diagnóstico dos traços de personalidade e definir adequadas medidas de intervenção. Assim sendo, com o conceito de periculosidade volta à tona a idéia de personalidade criminosa, como dissemos, difícil de se livrar.
O conceito de periculosidade se mantém indissociável do conceito de personalidade (criminosa), e ambos seriam conceitos fundamentais para o desenvolvimento da criminologia clínica. Através desta, acredita-se poder concentrar esforços na procura de índices capazes de identificar características de risco e fatores desencadeantes. Aqui ficam patentes a avaliação da periculosidade do sujeito e a eventual argüição de seu potencial de socialização.
Determinismo à parte, não se consegue esquecer o fato do conceito de personalidade ser, por si próprio, problemático. As principais teorias psicológicas da criminalidade que hoje em dia dominam a investigação nesta área poderão ser agrupadas em duas grandes linhas gerais. Uma delas, centrada na pesquisa das diferenças que caracterizam a dita Personalidade Criminosa, específica do criminoso e determinadora do ato delinqüente (Pinatel, Le Blanc), e uma outra linha, a de investigação, mais ligada à análise do vivido do criminoso e de seu percurso na criminalidade, partindo de uma abordagem fenomenológica do autor da ação delituosa (Debuyst).
Pinatel, defende a criminologia clínica como o meio de se estudar os fatores que conduzem ao ato delinqüente e a identificar dos traços psicológicos subjacentes a este. Defende o ponto de vista segundo o qual, não haveria nos criminosos em geral, tipos psicopatológicos classificáveis dentro das categorias psiquiátricas tradicionais mas, no máximo, conjugações de traços de personalidade, agrupados de uma forma específica. Esses traços é que definiriam a tal Personalidade Criminosa e, esta sim, seria determinadora do comportamento delinqüente. Poderemos sintetizar essa posição nos seguintes pontos:
(a) o criminoso é um homem como outro qualquer, só se diferenciando por uma maior aptidão para ato criminoso;
(b) a personalidade criminosa seria descrita através de traços psicológicos agrupados numa determinada característica;
(c) essa característica englobaria os traços de agressividade, egocentrismo, labilidade e indiferença afetiva, sendo estes os elementos responsáveis pelo ato delituoso, enquanto as variáveis, tais como o temperamento, as aptidões físicas, intelectuais e profissionais, as razões aparentes, e as necessidades seriam responsáveis pelas diferentes modalidades desse ato;
(d) a personalidade criminosa, considerada na sua globalidade, seria dinâmica em relação aos seus diferentes traços constitutivos e adaptabilidade social.
Partindo dessa noção de Personalidade Criminosa, específica de cada delinqüente ou do criminoso e composta por um conjunto de traços em atuação dinâmica, diferentes investigadores chegarão a resultados diversos e, por vezes, contraditórios. Assim, por exemplo, LeBlanc e Fréchette, estudando a personalidade delinqüente ao longo da infância e adolescência, concluem pela existência de um Síndrome da Personalidade Delinqüente. Esta comportaria uma estrutura específica com os seguintes sintomas: inclinação criminosa, anti-sociabilidade e egocentrismo, cada um deles sofrendo desenvolvimentos diversos ao longo do tempo. De acordo com esses autores, estes traços psicológicos específicos do delinqüente seriam responsaveis pela maneira como eles valorizariam o impacto que as circunstâncias sociais lhes causarão.
Numa perspectiva pouco diferente, Eysenck defende que o comportamento criminoso é o resultado da interação entre fatores ambientais e características hereditárias, o que todo mundo já sabe há tempos. Porém, ele atribui uma importância fundamental a estas últimas, as hereditárias, e desenvolve uma teoria bio-psicológica da personalidade. De qualquer forma, também Eysenck acaba defendendo a existência de uma Personalidade Criminosa, composta por um conjunto variável de traços psicológicos característicos do delinqüente e responsáveis pelos seus atos transgressivos.
Entretanto, Ch. Debuyst, apesar de contestar o conceito da Personalidade Criminosa, tal como era definido, e apesar de alegar que este conceito é uma visão ingênua da realidade por ser estática e determinista, não consegue se desvencilhar da idéia de uma personalidade inclinada à contravenção, como todos os outros. Ele recomenda analisarmos a delinqüência a partir de três aspectos fundamentais; a posição que o sujeito delinqüente ocupa na sociedade, os processos que resultam de suas múltiplas interações sociais e, finalmente, as características de sua personalidade. A diferença é que ele aceita, com mais facilidade, um aspecto dinâmico da personalidade, conseqüentemente, acaba considerando que a criminalidade não é um fenômeno estático e nem obrigatório. Acha que seria ingênuo acreditar que um conjunto fixo de elementos, sejam esses elementos os traços, estilos ou qualquer outro conceito determinista, estivesse na base de todo o comportamento transgressivo indistintamente.
Finalmente, dando um passo além do aspecto dinâmico da personalidade proposto por Debuyst, tal como um devir não totalmente determinado por circunstâncias várias, surge F. Digneffe defendendo a idéia de que o indivíduo é sim responsável, dependendo dele a construção do seu próprio mundo e projetos. Digneffe dedica-se ao estudo das maneiras como o sujeito faz a gestão da sua vida, como elabora seus aspectos relativos à ética, aos valores e ao desenvolvimento moral, acabando por adquirir uma característica pessoal de acordo com a adoção de seu próprio modelo existencial. A autora se detém, sobretudo, nos casos onde a delinqüência é a forma de gestão de vida escolhida pelo indivíduo.
Se a Personalidade é responsável pelo crime, quem é responsável pela Personalidade?
A criminalidade moderna, entretanto, particularmente considerando-se crimes curiosos entre escolares, franco-atiradores, ideológicos, religiosos e outros, exige o desenvolvimento de outros modelos criminais. Alguns autores partem da constatação de que não existem diferenças de personalidade entre delinqüentes e não delinqüentes. A pesquisa atual se orienta cada vez mais para a compreensão dos processos complexos pelos quais uma pessoa se envolve numa conduta delinqüente, adquire uma identidade criminosa e adota, finalmente, um modo de vida delinqüente (Yochelsom).
Desta forma, não estaríamos diante um conjunto de traços de personalidade determinantes de uma conduta criminosa, mas diante de uma ação delituosa resultante da interação entre determinados contextos e situações do meio, juntamente com um conjunto de processos cognitivos pessoais, afetivos e vivenciais, os quais acabariam por levar a pessoa a interpretar a situação de uma forma particular e a agir (criminosamente) de acordo com o sentido que lhe atribui. Aqui também se pensa numa determinada Personalidade Criminosa, entretanto, personalidade esta produzida não apenas pelo arranjo genético mas, sobretudo, pelo desenvolvimento pessoal.
De acordo com novas teorias da personalidade (Agra, Guidano), seriam sete os sistemas que a constituem:
· neuro-psicológico
· psico-sensorial
· expressivo
· afetivo
· cognitivo
· vivencial
· político.
Essa nova tendência reconhece que a personalidade e o ato são inter-relacionados da seguinte forma: a personalidade é a matriz de produção da ação e define as condições e modalidades do agir, enquanto o ato seria o processo de materialização dessa personalidade.
Hoje em dia, alguns autores que pesquisam crimes e delinqüências comuns do cotidiano perpetrados por delinqüentes primários e reincidentes, não têm encontrado entre eles déficits ou psicopatologias relevantes o suficiente para se associar ao que se entende por Personalidade Criminosa ou comportamento criminal, verificando-se, pelo contrário, que esses sujeitos não se distinguem significativamente dos indivíduos ditos normais.
Tem sido simpática a idéia de que os comportamentos transgressivos não resultam da incapacidade para agir de outra forma que não a criminosa, como pretendiam os positivistas, nem de uma determinação biológica para só agir desta forma, como acreditavam os deterministas. Os atos, delituosos ou não, estariam relacionados com processos da personalidade ao nível da construção de significados e de valores da realidade, bem como com as opções de relacionamento da pessoa com essa realidade. Tal conceito implica na existência de uma estrutura da personalidade que determina certos padrões de ação e certos padrões de inter-relação particular do indivíduo com a realidade, fazendo com que ela aja em conformidade com a visão pessoal que tem da realidade.
Atualmente é difícil aceitar-se a existência de uma personalidade tipicamente criminosa, composta por traços imutáveis e pré-definidos. Defende-se sim a existência de diferentes formas de organização e estruturação da personalidade, de diferentes maneiras de integrar os estímulos do meio e os processos psíquicos e de diferentes maneiras de relação com o mundo exterior. Essa estruturação típica e própria da personalidade é que produziria diferentes representações da realidade nas diferentes pessoas e, em função dessa personalidade, as pessoas definirão também suas diferentes formas de agir e de se relacionar com os outros e com o mundo.
Seguindo esse raciocínio, o criminoso, como qualquer pessoa, estabelece uma representação da realidade, desenvolve uma ordem de valores e significados, na qual a transgressão adquire um determinado sentido e se torna, em dado momento da sua história de vida, uma modalidade de vida.
Não se pretende negar aqui, peremptoriamente, as valiosas teorias da personalidade, notadamente a idéia de uma eventual Personalidade Criminosa, como advogaram inúmeros autores. Nossa idéia é apenas demonstrar que a criminalidade pode ser demasiadamente complexa para se supor um modelo teórico relativamente simples e fixo como, por exemplo, o dos traços de personalidade ou da característica biológica criminosa (Kreitler).
Pelas mesmas razões, somos obrigados também a não considerar aceitável o conceito de periculosidade, tal como tem sido definido, facultando um prognóstico definido e uma argüição hipotética sobre o devir da pessoa dita criminosa. Estaríamos, se aceitássemos isso tudo, novamente nos confrontando com abordagens deterministas da Personalidade Criminosa.
No entanto, a grande questão que se impõe é sabermos: a partir de qual momento, negamos à pessoa a capacidade de ser, ela mesma, produtora de si mesma e determinadora de seus percursos? Ou, de outra forma: quando podemos confinar a pessoa numa análise reducionista que a transforma num objeto de conceitos como o de Personalidade Criminosa, portanto, objeto de estratégias de intervenção terapêutica concordante com esse modelo?
Este artigo é inspirado no trabalho de Celina Manita
"Personalidade Criminal e perigosidade: da "perigosidade"do sujeito criminoso ao(s) perigo(s) de se tornar objecto duma "personalidade criminal"
Assistente da Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação da Universidade do Porto
Membro do Centro de Ciências do Comportamento Desviante
para referir:
Ballone GJ - Personalidade Criminosa, in. PsiqWeb, internet, disponível em revisto em 2002.
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Ri Melhor quem Ri Por Último
Esse é um ditado gostoso de se ouvir e bastante lenitivo de nossas falhas e faltas, de nossa inoperância. Trata-se de uma afirmativa tão falsa e reconfortante como aquela que diz: "... não faz mal, pelo menos tenho minha consciência tranqüila". É uma claudicante lei da compensação.
São exemplos da gritante falsidade e não menos demagógico poder das palavras bonitas e bem arranjadas.
Falo de alguns discursos sobre a Personalidade que fluem de fora da medicina e da ciência mas consolam a confortam aqueles que desses distúrbios padecem, ou seus familiares... sei lá.
Muito cuidado com aqueles textos escritos brilhantemente mas que afirmam mentiras científicas, como é o caso de dizer que somos todos iguais,... que não existem personalidades doentias... que a má intenção é apenas uma questão de influência ambiental, e assim por diante.
Há grande diferença entre aquilo que o mundo é e aquilo que, romanticamente, gostaríamos que fosse.
Ballone
Psicopata e a Justiça
Os olhos da justiça, sabe-se que o portador de Personalidade Psicopática é "incurável" e, talvez o seja, porque não se trata de uma verdadeira doença, aos moldes médicos, mas de uma formação especial de caráter (ou não-formação).
Conforme diz Nelson Hungria, Ministro do supremo tribunal federal:
"... Mais prudente ou ponderado deve ser ainda o prognóstico quando se trate dos desconcertantes "anormais psíquicos" ou "portadores de personalidade psicopática", cuja periculosidade (também aprioristicamente presumida pela lei) é manifestação de uma personalidade constitucionalmente defeituosa e não oportunamente corrigida; ou quando se trate de indivíduos que não se apartam sensivelmente do tipo do "homo medius", mas cuja personalidade se formou inadequadamente, por deficiência de aquisições éticas ou ineducação dos instintos, ou veio a deformar-se pela adoção de hábitos contrários à dominante moral jurídico-social. È que nesses casos a periculosidade não resulta de uma condição episódica ou estanha à personalidade foncière ou constante do indivíduo, mas de um status que lhe é ou se lhe tornou inerente ou integrante.".
Chega
Profissional
2006-11-20 04:46:01
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answer #5
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answered by PROFISSIONAL 2
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