Oi,
Porque os filmes. na época eram P&B... e mudo!!!
Mas dá uma olhada nisto (é interessante):
(...) Carlitos Repórter, em que o personagem se caracteriza como um falso aristócrata inglés, personaje bufo predilecto del norte americano (LEPROHON,1961, p.154) certamente, projeção de personagem do Music Hall inglês, trazido pelo autor Charles Chaplin, como é descrito em sua biografia. De fato, Carlitos apresenta-se aí como um típico vilão eduardiano: cartola, monóculo, bigode grande e caído, fraque claro e longo, gravata de laço, colarinho e punhos engomados, finas botas e uma pequena bengala. Com este aparato, Carlitos adquire personalidade e de acordo com a teoria de Barthes, torna possível uma verdadeira combinatória de unidades caracteriais e prepara, a bem dizer, tecnicamente, a ilusão de uma riqueza quase infinita da pessoa, que em Moda se chama exatamente personalidade (BARTHES, 1979, p. 241).
Não são poucas as cenas em que o personagem adquire gestos aristocráticos, com ar de fidalguia, fazendo evoluções com a bengala, tirando meticulosamente as luvas, furadas nas pontas, ou pegando resto de cigarro dentro de uma lata de sardinha, tudo delicadamente, com um gestual específico das boas maneiras da mais alta classe social.
A semiótica considera o homem como um ser em situação, descobrindo-se diferente do que o cerca, na medida em que se relaciona com o mundo exterior, o que o leva a tomar consciência de sua existência e de sua individualidade. Nesse espaço de relações, a linguagem gestual estabelece uma dinâmica fecunda em significações. Portanto, desvelar o jogo entre o ser e o parecer é uma forma de satirizar o homem que, ainda no século XX, quer estabelecer-se por pura aparência. Destarte, faz-se presente, em ecos paródicos, o sonho do pícaro de mostrar-se como um “ homem de bem” e possuir capa e espada. Carlitos inverte ironicamente a situação de Lázaro, não se livrando dos trapos que o acompanham durante anos, mas, ao mesmo tempo, vestindo-se com roupas que lembram um hombre de bien do século XX. Desta maneira, Carlitos satiriza pessoas que querem esconder a miséria, através de disfarces e atitudes.
No mundo extralingüístico do cinema mudo, apesar da proeminência da linguagem gestual, outros signos, mais ou menos explícitos, podem ser explorados, dentro do sistema semiótico, haja vista o valor significativo que adquirem os objetos na transcontextualização. Assim, a bengala, usada pelo personagem nas mais diversas situações e utilidades, é, ao mesmo tempo, sua espada, seu apoio, sua arma. Ajuda-o nas habilidades gestuais lúdicas ¾ feitas também com o chapéu e com seus passos de pingüim ¾, parodicamente, referendando a espada de Dom Quixote. Ostentada com esnobismo, esta sua vara mágica, entra na composição de uma imagem que lembra gestos de fidalguia e de vaidade.
Por seu turno, o gestual comunicativo, como o nome indica, visa a estabelecer, a manter ou a interromper a comunicação inter-humana. Pressupõe a correlação emissor-destinatário e reforça, contradiz ou substitui a camada informativa da linguagem. Nesta instância, observa-se que, ao substituir a linguagem verbal, no cinema mudo, a gestualidade comunicativa, sem excluir as outras funções, assume, especialmente, a função referencial. Ao passo que, na obra literária, esta gestualidade exerce, sobretudo, as funções fática e conativa.
Carlitos, no seu gestual improdutivo, oposto ao eu ativo do herói modelar, que fez a história nos séculos passados, surge como um anti-herói que se afirma em meio a uma ordem confusional, libertando-se das amarras dos modelos clássicos e rompendo o habitual racionalismo dos séculos anteriores. O filme Tempos Modernos mostra, em princípio o personagem Carlitos como operário de uma fábrica, inserido, por uns tempos, na ordem e na lei do trabalho, exercendo sua gestualidade prática como apertador de parafusos. Ao adquirir, enlouquecidamente, tiques nervosos, o personagem, reduzido à reiteração involuntária do gesto, denuncia, através do orgiástico movimento incessante de construção, de superação e demolição, a alienação do homem transformado em uma máquina fora de controle. Assim, o que se percebe, assegura Barthes referindo-se textualmente ao filme, na obra Mitologias, é o proletariado ainda cego e mistificado, definido pela natureza imediata das suas necessidades, e a sua alienação total nas mãos dos senhores (patrões e polícias) (BARTHES, 1989. p.31).
O estudo do cinema mudo atenta para as virtualidades das práticas gestuais do ser humano. Aí o gesto ¾ signo arbitrário por excelência ¾ apresenta uma expressiva variante de sinonímica. A relação entre o signo e o representado, excepcionalmente, motivada, reveste-se de um alto grau de polissemia, já que o mesmo gesto pode traduzir mensagens diferentes. A recusa do personagem à mecanização acaba por fazer reinar a confusão, e a vida improdutiva explode através da loucura que o faz sair da norma e voltar às margens. Tal recusa já se indicia desde as primeiras cenas do filme, quando se percebe um carneiro preto, em meio ao rebanho de carneiros todos brancos, que se amontoam no campo. Esta cena encontra-se em similaridade com uma outra, quando, entre homens e mulheres, animalescamente aglomerados, à saída do metrô, camufla-se uma outra ovelha negra, Carlitos. Deste modo, o gestual mítico do personagem sublinha a sua recusa em participar do automatismo da multidão, satirizando, assim, o severo treinamento do homem, segundo as convenções da sociedade.
Roland Barthes, em Sistema da Moda, propõe, dentro da Semiologia, uma valoração dos signos objectuais. Desta forma, no tocante à roupa de Carlitos, ter-se-ia o que Barthes considera como uma “poética do vestuário.” Carlitos, como homem de margem, apresenta um vestuário, pela forma estrutural e institucional do costume, fora do tempo e do espaço. Seu traje se insere na paródia gestual do herói, pois compõe uma figura excêntrica, para além de qualquer forma "atualizada, individualizada, usada". Sua indumentária, em inversão irônica, consta de peças velhas, ultrapassadas e deterioradas, mas denunciam um passado respeitável. A gestualidade confusional do anti-herói reflete-se na mistura de várias “modas”: calça muito larga e caída sobre as botas, paletó curto e justo, chapéu de coco longo e pequeno, botas excessivamente grandes com os pés trocados, gravata e colarinho engomados e bengala de bambu. O personagem Carlitos apresenta-se, então, como uma figura ambiguamente paródica, não só pelo anacronismo dos trajes, mas também pela inversão da gestualidade, já que sua postura de respeitabilidade não condiz com sua posição social marginal. Além disso, a reiteração da mesma vestimenta, em quase todos os filmes, enfatiza a circularidade do personagem, pois, como observa Barthes, uma variação de vestuário produz uma variação de caráter (BARTHES, 1989, p. 241).
Tanto a gestualidade mimética quanto a lúdica manifestam-se, via de regra, associadas aos objetos, dentre o quais, um dos mais significativos é a máscara. Carlitos, representa seu caráter de anomia de retraimento, utilizando-se do duplo mascaramento: no gestual da figura do dândi com sua vestimenta anacrônica e no mascaramento, propriamente dito, do corpo e do rosto. A máscara dissimula, encobre e engana. Assim, na sua máscara facial, imensamente branca como se estivesse enfarinhada ¾ chamada por Bazin de máscara lunar ( BAZIN, 1989, p. 54), guarda um certo ar de melancolia. Em contraste com a palidez do rosto, surgem olhos muito profundos, rodeados por um círculo muito negro. Compõe, ainda, a máscara um bigode pequeno, espesso e recortado, colocado bem junto ao nariz que lhe dá, segundo alguns críticos, um ar de vaidade. A máscara do rosto prolonga-se para o corpo, no anacronismo confusional de sua vestimenta. A esta combinação de elementos, completamente díspares, junta-se o mascaramento em preto e branco do gestual em seu andar bamboleante de um pingüim. Reforça-se, pois, o distanciamento crítico do espectador frente a um personagem com aspecto caricaturesco do homem.
Para Bakhtin, a máscara encarna também o princípio de jogo da vida e está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, e, desta forma, as manifestações paródicas, a caricatura, a careta, as contorções e as macaquices são derivadas da máscara. Ela é, ainda, segundo Pierre Leprohon: la caricatura de nuestras calamidades, de nuestros ridículos y de nuestras torpezas (LEPROHON, 1961, p. 52).
Por outro lado, o gestual trapaceiro e astucioso do personagem, aliado ao matiz negro, que prevalece na figura do personagem, traz ressonâncias da raposa negra, que, no simbolismo estudado por Jean Chevalier, apresenta-se: “ativa, inventiva, independente, audaciosa, medrosa, inquieta, desenvolta, encarnando as contradições inerentes à natureza humana” (CHEVALIER, 1990, p. 769).
Sabe-se que o complexo simbolismo da máscara é inesgotável. Numa análise zoomórfica, a raposa/pingüim Carlitos é capaz de simbolizar: agregador anti-herói do orgiasmo ou cúmplice de fraudes, em inumeráveis mitos, tradições e contos pelo mundo, conotando, assim, uma ambivalência já há muito conhecida.
O gestual da quixotada vem acompanhado dos trejeitos de olhos, do andar de pingüim, das evoluções com a bengala, dos ajustes na roupa e da própria postura anacrônica de lorde. Carlitos, com faces quixotescas, também se comporta como um bufão, nas roupas e na gestualidade: quando soldado caminha em descompasso com a tropa; no baile, tem um cachorro amarrado às calças; como ladrão é roubado por outro ladrão. Se encontra algum dinheiro, acaba logo por perdê-lo.
A gestualidade lúdica se processa, ainda , nos exemplos dos quiproquós das perseguições, das idas e vindas, das corridas amalucadas, da fuga da polícia, ostentando-se, aí, a alegria dionisíaca do personagem. O barulhento Dionísio mostra, desta maneira, também estar presente na gestualidade lúdica de Carlitos dos primeiros tempos, em meio ao burlesco agressivo e jovial, às piruetas, aos tombos, às perseguições, o que consigna bem sua liberdade instintiva confusional.
No riso agremiador do orgiasmo existe o poder criador de transformação e rebeldia. É o que se vê, na fábula do príncipe encantado de A Corrida do Ouro e de Luzes da Cidade, quando o personagem nos permite assimilar, através do gestual lúdico, muitas coisas interditadas para o sério, numa amostragem antitética de situações de riso para uns e de lágrimas, para outros, especialmente para aqueles acostumados a conviver com a desilusão, a desesperança e a fome. Então, ri-se da própria miséria, conforme os dizeres de Vasco Vidal: Riso de todas as formas - riso alvar, riso até as lágrimas, rir da pantomima, do simples ‘fait divers’,da dor e rir, até se for preciso da própria miséria (VIDAL, 1954, p. 15).
Na tipologia de Greimas, o gestual comunicativo se nutre da gestualidade atributiva, modal, mimética e lúdica. O conteúdo da gestualidade atributiva manifesta-se graças a um código de expressão, subjacente às manifestações móveis do corpo humano, encobrindo e revelando estados interiores fundamentais, quais sejam: a alegria, a tristeza, o medo, o ódio, o amor.
Por meio da gestualidade atributiva não se formulam enunciados sobre o mundo. Entretanto, o enunciado sintético, da natureza do “ser”, é tão mais fecundo quanto mais o homem se vê tolhido em manifestar suas emoções através da linguagem verbal, tal como ocorre no cinema mudo.
Nos filmes O Garoto, Vida de Cachorro e Luzes da Cidade a manifestação da gestualidade atributiva, com forte conotação emocional, filantrópica e amorosa, encontra-se na visão utópica do real e do irreal, onde um Carlitos-Quixote consegue, com as inovações de vagabundo, que se faz cavaleiro e cavalheiro, no jogo de protetor e protegido, efetuar, no exercício da realidade oscilante, o que antes ele consideraria irreal.
Carlitos se dá o direito de ir e vir, em renovação total da gestualidade prática. Ao trilhar o caminho da aventura, Carlitos faz uso de um gestual ágil, mas também astucioso e oportunista, o que o torna, picarescamente, disponível perante a vida.
Com Carlitos, o corpo erótico contrapõe-se ao corpo, enquanto instrumento de produção, avizinhando-se de Dom Quixote, ao mostrar que qualidades como a indulgência, a passividade e a perda de sentido mais geral merecem mais atenção do que o eu ativo.
Vale pontear que nos filmes de Charles Chaplin, particularmente, da linguagem gestual promana uma sedução extraordinária, pois exige-se a cumplicidade do espectador que deve descodificar, nas virtualidades da prática gestual, a estrutura paródica e preencher os vazio
Um abraço
2006-11-01 01:42:41
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answer #8
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answered by Tin 7
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