CULTURA
Cinderelas em extinção
""Chinesas que enfaixavam os pés, para deixá-los bem pequenos e adequar-se a antigo padrão de beleza, viram artigo raro, assim como seus sapatinhos""
Harbin (China) — A morte já levou muitas das clientes leais da Fábrica de Sapatos Zhiqiang. Várias outras devem seguir o mesmo caminho nas duas próximas décadas, e a empresa teve que pensar criativamente e diversificar a produção para manter o negócio.
No entanto, como há freguesas que precisam deles, a fábrica ainda produz os produtos que a fizeram conhecida: os pequenos sapatos usados pelas mulheres que tiveram os pés enfaixados quando meninas, impedindo-os de crescer.
Por toda a China, o número dessas mulheres está diminuindo ao longo dos anos. Muitas estão entre 80 e 90 anos de idade, seus corpos servindo como lembrança de uma época passada na nação mais populosa do mundo.
Por séculos tais mulheres eram referência do modelo de beleza e postura femininas. Então, foram deixadas de lado, por representar o ultrapassado pensamento feudal. Agora são objeto de estudo de sociólogos, médicos e historiadores.
No entanto, para Du Guanghua, presidente da Zhiqiang, essas mulheres são de carne e osso, apesar de desfiguradas. Elas ainda precisam dar umas voltas, e Du está determinada a mantê-las bem calçadas. ‘‘Nós não ganhamos muito dinheiro com isso’’, diz. ‘‘Estamos fazendo isso agora mais como uma contribuição para a sociedade.’’
Sua companhia está entre as últimas da China que fabricam esse tipo de sapato. A maioria dos outros sapateiros reduziu essa parte de seus negócios há muito tempo ou passou a vender os chinelinhos como delicados souvenirs bordados, em vez de sapatos.
A fábrica Zhiqiang assistiu à demanda diminuir rapidamente, uma queda de aproximadamente dois terços em dez anos. A média agora é de 700 pares por ano, a maioria deles destinada a clientes do nordeste da China.
Em Tianjin, a sudeste de Pequim, um fabricante de sapatos que está na ativa há quase um século vende cerca de 20 mil pares anualmente, mas também sofreu diminuição dos negócios.
O mercado provavelmente irá desaparecer durante as próximas duas décadas, e a morte das mulheres que calçavam esses chinelos em miniatura fechará um capítulo da história social que durou mil anos e ainda fascina as pessoas.
Dor e orgulho
A professora universitária Pam Cooper levou vários anos para superar as desconfianças de seus contatos na China quando tentava encontrar mulheres com pés enfaixados para entrevistas durante a metade dos anos 90.
‘‘Eu sabia que isso seria uma luta’’, conta Cooper, que leciona na Universidade de Northwestern. ‘‘Mas fiquei surpresa que até meus amigos da Universidade Chinesa de Hong Kong estavam relutantes em falar sobre isso ou colocar-me em contato com as pessoas.’’
Uma vez encontradas as mulheres, no entanto, elas estavam ansiosas para contar histórias que até seus próprios filhos e netos desconheciam — histórias da dor que envolve o enfaixe dos pés, mas também do orgulho pela beleza que sentiam ter atingido.
Era uma beleza, obviamente, definida por homens. ‘‘É assim em toda cultura’’, destaca Cooper. ‘‘Há um padrão de beleza, e quem quer que esteja no poder passa a determiná-lo. E geralmente os homens estão no poder.’’
Mulheres que tiveram seus pés enfaixados pela maior parte de suas vidas foram chamadas a desenfaixá-los depois que os comunistas assumiram o poder e baniram o costume, em 1949. O que uma vez disseram que era bonito tornou-se tão ridicularizado quanto repulsivo. Mulheres que tinham suportado a dor para encaixar-se em ideais de beleza eram repentinamente objeto de escárnio — de novo pelos homens. Também nesse caso, as mulheres estavam em desvantagem.
‘‘Eu era uma criança e não tinha o controle quando meus pés foram enfaixados, e eu não tive controle quando foi dito que eu os desenfaixasse’’, conta, aborrecida, cada uma das entrevistadas de Cooper.
A prática banida deixou problemas de saúde visíveis nas mulheres cujos pés foram alguma vez enfaixados. Um estudo de 1997 do Jornal Americano de Saúde Pública mostrou que elas são mais suscetíveis a quedas e têm riscos maiores de fraturar a espinha e os quadris.
Apesar de o costume parecer cruel e bárbaro para o pensamento moderno, estudiosos lembram que, no Ocidente, algumas mulheres compram sapatos muito pequenos para parecerem mais atraentes e sujeitam-se a usar saltos altos. E em algumas versões do conto de fadas da Cinderela, a feia irmã de criação mutila seus pés para calçar o sapatinho de cristal.
Na palma da mão
Na China, encontrar sapatos que sirvam tornou-se mais difícil para as mulheres cujos pés foram enfaixados. ‘‘A grande maioria está provavelmente fazendo esses sapatos para si ou calçando modelos para crianças’’, ressalta Du Guanghua, presidente da Fábrica de Sapatos Zhiqiang.Os ‘‘sapatinhos’’ da Zhiqiang não são do menor tipo, para as mulheres cujos pés têm 10cm de comprimento. Mas o menor chinelinho da companhia, com cerca de 17cm de comprimento e 6cm de largura, pode até mesmo caber na mão de um homem.
A companhia emprega um artesão que faz cada par individualmente, costurando tecido preto simples em solas de borracha, criando um sapato macio, mas firme.Não há enfeites, bordados ou algo colorido, particularmente porque as mulheres não desejam chamar atenção para uma coisa que, na opinião da maioria dos chineses, significa uma vergonha, um passado primitivo.
‘‘Agora todo mundo tem os pés grandes’’, diz Wang Yixian, 78 anos, que se mudou da província de Shandong, onde passou a infância, para Harbin há 50 anos. ‘‘Só pessoas velhas têm os pés pequenos.’’ Wang possui oito pares de sapatos feitos pela Zhiqiang — quatro para o verão e quatro de lã para o inverno.
A Zhiqiang há muito tempo parou de confiar nos pequenos sapatos para manter os negócios.
A receita da venda desses produtos é minúscula.
Na loja de departamento, rua abaixo, o chinelinho é vendido por cerca de três dólares o par; o lucro da fábrica, que possui cerca de 20 empregados, é uma fração disso. Quanto tempo mais Du espera continuar a fazer sapatos para mulheres cujos pés foram enfaixados? ‘‘No máximo dez anos’’, afirma ela, e acrescenta: ‘‘Isso sendo generosa’’.
-
Lótus de ouro
O costume de enfaixar os pés das mulheres existe na China pelo menos desde o início do século X. Uma história fala de um imperador, encantado por uma concubina com os pés pequenos que dançou sobre um palco em forma de flor de lótus. Ela teria lançado a moda do enfaixe dos pés, batizados de ‘‘lótus de ouro’’.Outras fontes dizem que o nome refere-se ao formato dos pés - curvados para cima -, alcançado depois de anos de enfaixe com ataduras apertadas o suficiente para quebrar os ossos, arqueando o pé e interrompendo o crescimento.
O enfaixe começava aos cinco ou seis anos, uma tradição passada de mãe para filha. As ataduras dobravam os quatro dedos menores até a sola dos pés e forçavam o calcanhar para dentro, exagerando o arco. O processo era torturante. A carne apodrecia. Garotas choravam em agonia, incapazes de comer, beber ou pensar por causa da dor.‘‘Claro que isso era doloroso’’, lembra Wang Yixian, 78 anos. ‘‘Mas se você não enfaixava os pés, não achava marido.’’
Muitos chineses achavam esses pés muito eróticos, considerados a parte mais íntima da anatomia das mulheres.Um pé enfaixado com sucesso tinha de 7cm a 10cm. Andar era difícil: as mulheres oscilavam de um lado para o outro, o que também evocava a imagem da flor de lótus ao vento.
Reformistas, durante a última dinastia chinesa, a dos Qing, tentaram banir a prática. O enfaixe dos pés só foi abolido quando os comunistas tomaram o poder em 1949.
2006-10-28 19:35:01
·
answer #6
·
answered by doutoradodoi 5
·
0⤊
0⤋