Em Junho de 1993, o meu velho amigo Tom Schulte, da Califórnia, foi visitar-me a Boston. Estávamos sentados numa esplanada em Newbury Street, com bebidas frescas à nossa frente. Tom tinha acabado de se divorciar e estava bastante transtornado. Virou--se para mim e disse-me: «A propósito, o último teorema de Fermat foi provado há pouco tempo.» Pensei que isto só podia ser uma piada, visto que Tom continuava a olhar fixamente para o passeio. Vinte anos antes tínhamos sido colegas de quarto quando estudávamos matemática na Universidade da Califórnia em Berkeley. O último teorema de Fermat era algo de que falávamos muito. Também falávamos de funções, conjuntos, álgebras de números e topologia. Nenhum estudante de matemática dormia muito, porque os trabalhos eram muito difíceis. Era isso que nos distinguia dos estudantes de outras áreas. Por vezes tínhamos pesadelos matemáticos... ao tentarmos demonstrar algum teorema cuja demonstração tivesse de ser entregue no dia seguinte. Mas o último teorema de Fermat? Ninguém acreditava que pudesse ser provado durante a nossa existência. O teorema era muito difícil, e já muitas pessoas tinham tentado prová-lo ao longo de três séculos. Tínhamos consciência de que tinham sido criados ramos inteiros da matemática em resultado das tentativas para demonstrar o teorema. Mas todas as tentativas falharam. O último teorema de Fermat surgira para simbolizar o inatingível. Uma vez até cheguei a tirar proveito da suposta impossibilidade de demonstração do teorema. Foi alguns anos mais tarde, ainda em Berkeley, quando, já licenciado, estava a fazer o mestrado em investigação operacional. Um estudante licenciado arrogante, sem saber que também eu estava em matemática, ofereceu-me ajuda quando nos conhecemos na International House, onde ambos vivíamos. «Estou em matemática pura», disse ele. «Se alguma vez tiveres algum problema matemático que não consigas resolver, não hesites em perguntar-me.» Estava já a ir-se embora quando lhe disse «umm... sim, há algo em que podes ajudar-me...». Ele virou-se para trás: «Mas, claro, diz-me o que é.» Peguei num guardanapo de papel — estávamos na sala de jantar. Comecei a escrever:
xn + yn = zn não tem solução inteira quando n é maior do que 2
«Ando a tentar demonstrar isto desde ontem à noite», disse, mostrando-lhe o guardanapo. Via a cara dele cada vez mais pálida. «O último teorema de Fermat», grunhiu ele. «Sim», disse eu, «tu estás em matemática pura. Consegues ajudar-me?» Nunca mais o vi na vida.
«Estou a falar a sério», disse Tom, enquanto acabava a bebida. «Andrew Wiles. Ele provou o último teorema de Fermat no mês passado em Cambridge. Lembra-te desse nome. Irás ouvi-lo muito.» Nessa noite Tom apanhou um voo de regresso à Califórnia. Nos meses seguintes percebi que Tom não me tinha enganado e comecei a seguir o desenvolvimento dos acontecimentos: Wiles foi aplaudido de início, mas depois foi descoberta uma falha na sua demonstração. Retirou-se por um ano, mas, finalmente, voltou com a demonstração correcta. Contudo, segundo o desenrolar da história, percebi que Tom estava errado. Não era o nome de Wiles que devia ter decorado, ou pelo menos não o único. Eu, aliás o mundo, devia ter reconhecido que a demonstração do último teorema de Fermat estava longe de ser obra de um único matemático. Enquanto Wiles recebeu a maioria dos louros, os créditos pertencem também a outros: Ken Ribet, Barry Mazur, Goro Shimura, Yutaka Taniyama, Gerhard Frey, entre outros. Este livro conta a história completa, incluindo o que aconteceu nos bastidores e longe das câmaras e das luzes dos media. É também uma história de decepção, intriga e traição.
«Talvez descrevesse melhor a minha experiência de trabalho matemático como a entrada numa mansão escura. Vamos até à primeira divisão, que está escura, completamente escura. Damos encontrões, batemos na mobília. Gradualmente, acabamos por aprender onde se encontra cada peça da mobília. Finalmente, após cerca de seis meses, encontramos o interruptor e ligamos a luz. De repente, tudo se ilumina e podemos ver exactamente onde estivemos. Então entramos na divisão seguinte [...]»
Foi desta maneira que o professor Andrew Wiles descreveu a sua aventura de sete anos à procura do Santo Graal dos matemáticos.
Na madrugada de 23 de Junho de 1993 o professor John Conway aproximou-se do sombrio edifício de matemática da Universidade de Princeton. Abriu a porta da frente e caminhou rapidamente para o seu gabinete. Nas semanas antes da partida do seu colega Andrew Wiles para Inglaterra circulavam rumores entre a comunidade matemática mundial. Conway estava à espera de que algo de importante acontecesse. Exactamente o quê, não sabia. Ligou o computador e sentou-se à frente do ecrã. Faltavam sete minutos para as 6 horas da manhã quando surgiu um e-mail, vindo do outro lado do Atlântico: «Wiles prova o U. T. F.»
Cambridge, Inglaterra, Junho de 1993
Em finais de Junho de 1993 o professor Andrew Wiles voou até Inglaterra. Estava de volta à Universidade de Cambridge, onde estudara vinte anos antes. O seu ex-orientador de tese de doutoramento em Cambridge, o professor John Coates, estava a organizar uma conferência sobre a teoria de Iwasawa — a área específica da teoria dos números sobre a qual Wiles fez a sua dissertação. Coates perguntou ao seu ex-aluno se gostaria de fazer uma curta apresentação de uma hora na conferência sobre um tema à sua escolha. Para sua surpresa e dos outros organizadores, o tímido Wiles — anteriormente relutante a falar em público — respondeu perguntando se podia fazer uma apresentação de três horas.
Quando chegou a Cambridge, com os seus 40 anos, Wiles tinha a aparência típica de um matemático: camisa branca, com as mangas enroladas descuidadamente, óculos grossos, vestígios dispersos de cabelos brancos. Visto ter nascido em Cambridge, a sua vinda era como um regresso a casa — era a realização de um sonho de infância. Para tentar concretizar esse sonho, Andrew Wiles passou sete anos da sua vida como prisioneiro virtual no seu próprio sótão. Mas esperava que o seu sacrifício, os anos de luta e as longas horas de solidão acabassem depressa. Em breve poderia passar mais tempo com a mulher e as filhas, as quais vira tão pouco durante sete anos. Por vezes não ia almoçar com a família, esquecia-se de lanchar, quase faltava ao jantar... Mas agora os louros seriam só dele.
O Sir Isaac Newton Institute for Mathematical Sciences, em Cambridge, tinha sido aberto apenas recentemente, quando o professor Wiles chegou para fazer a sua palestra de três horas. O instituto é espaçoso, com arredores agradáveis, a alguma distância da Universidade de Cambridge. As vastas áreas fora dos auditórios estão equipadas com confortáveis cadeiras almofadadas, pensadas para ajudarem a troca informal de ideias entre estudiosos e cientistas e também para promoverem o estudo e o conheci- mento.
Embora conhecesse a maior parte dos matemáticos que tinham vindo de todo o mundo para a conferência, Wiles manteve-se bastante calado. À medida que os colegas iam ficando curiosos acerca do tempo da sua apresentação, Wiles ia apenas informando que deveriam assistir a ela e descobrir por si próprios. Tal secretismo era pouco comum, mesmo para um matemático. Embora normalmente trabalhem sozinhos nas tentativas de provarem teoremas e não sejam as pessoas mais sociáveis do mundo, costumam partilhar os resultados da sua pesquisa entre eles. Os resultados matemáticos são postos a circular livremente pelos autores ainda na forma de pré-publicação. Esta permite aos autores receber comentários que os ajudam a melhorá-los antes de serem publicados. Mas Wiles não forneceu qualquer pré-publicação e não discutiu o seu trabalho. O título das conferências era «Formas modulares, curvas elípticas e representações de Galois», mas o nome não fornecia qualquer pista sobre o objectivo das conferências e nem mesmo os especialistas nessas áreas conseguiam adivinhá-lo. Os rumores intensificavam-se à medida que o tempo passava.
No primeiro dia Wiles recompensou os cerca de vinte matemáticos que compareceram com um vigoroso e inesperado resultado matemático — e ainda faltavam duas palestras. O que se seguiria? Tornou-se claro para todos que as conferências de Wiles eram importantíssimas e crescia a expectativa à medida que as palestras eram invadidas por matemáticos curiosos.
No segundo dia o discurso de Wiles intensificou-se. Tinha trazido 200 páginas de fórmulas e derivações, pensamentos originais escritos sob a forma de teoremas, com as suas longas e abstractas demonstrações. O auditório estava agora totalmente cheio e todos ouviam com atenção. Onde iria ele chegar? Wiles não fornecia pistas. Continuou a escrever no quadro e, quando acabou, desapareceu rapidamente.
No dia seguinte, quarta-feira, 23 de Junho de 1993, proferiu a última palestra. À medida que se aproximava do auditório, Wiles viu-se obrigado a forçar a entrada. Havia público a bloquear a entrada e a sala transbordava. Muitos traziam máquinas fotográficas. A tensão crescia à medida que no quadro aparecia um sem-fim de fórmulas e teoremas. «Havia apenas um clímax possível, um único fim possível para a sua apresentação», disse-me mais tarde o professor Ken Ribet, da Universidade da Califórnia em Berkeley. Wiles estava a acabar as últimas linhas da sua demonstração de uma enigmática e complicada conjectura matemática, a conjectura de Shimura-Taniyama. E, de repente, adicionou uma linha final, reexpondo uma equação com séculos de idade, que Ken Ribet tinha demonstrado sete anos antes ser uma consequência da conjectura. «E isto prova o último teorema de Fermat», disse ele. «Acho que vou ficar por aqui.»
Houve um momento de silêncio e de admiração na sala. De súbito a audiência explodiu num aplauso espontâneo. Flashes de máquinas disparavam e todos se levantaram para felicitarem o orgulhoso Wiles. Em poucos minutos correio electrónico e faxes corriam por todo o mundo. O mais célebre problema matemático de todos os tempos parecia resolvido.
«O mais inesperado foi no dia seguinte termos sido contactados pela imprensa mundial», recorda o professor John Coates, que organizou a conferência sem ter a mínima ideia de que seria a plataforma de lançamento para uma das maiores conquistas matemáticas. Os títulos dos jornais mundiais saudavam a inesperada descoberta. «Finalmente, o grito eureka! num mistério matemático secular», anunciava a primeira página do New York Times de 24 de Junho de 1993. O Washington Post, num extenso artigo, chamava a Wiles «o matador de dragões matemáticos». Entretanto, passaram a circular histórias que descreviam a pessoa que aparentemente resolvera o problema mais persistente de toda a matemática, o qual escapara à resolução por mais de trezentos e cinquenta anos. Do dia para a noite, o calado e tímido Andrew Wiles tornou-se uma figura familiar.
Pierre de Fermat
Pierre de Fermat foi um jurista do século xvii que também era matemático amador. No entanto, embora, tecnicamente, fosse «amador», visto trabalhar como jurista durante o dia, o famoso historiador de matemática E. T. Bell, em princípios do século xx, chamou-lhe apropriadamente «príncipe dos amadores.» Bell acreditava que Fermat tinha conseguido mais resultados matemáticos do que a maior parte dos matemáticos «profissionais» do seu tempo. Bell argumentava que Fermat foi o mais prolífico matemático do século xvii, um século que testemunhou o trabalho de alguns dos maiores cérebros matemáticos de todos os tempos1.
Uma das mais espantosas conquistas de Fermat foi o desenvolvimento das ideias principais do cálculo matemático, que ele fez treze anos antes do nascimento de Sir Isaac Newton. Newton e o seu contemporâneo Gottfried Wilhelm von Leibniz foram creditados em conjunto na tradição popular por terem concebido a teoria matemática do movimento, aceleração, forças, órbitas e outros conceitos de aplicação matemática em constante mudança, a que chamamos cálculo matemático.
Fermat estava fascinado com os trabalhos matemáticos da Grécia antiga. Possivelmente, chegou à concepção do cálculo através dos trabalhos dos matemáticos gregos clássicos Arquimedes e Eudoxo, que viveram nos séculos iii e iv a. C., respectivamente. Fermat estudou os trabalhos dos antigos — que foram então traduzidos para latim — no seu tempo livre. Tinha um trabalho importante a tempo inteiro como jurista, mas o seu passatempo — a sua paixão — era tentar generalizar o trabalho dos antigos e encontrar nova beleza nas suas descobertas há muito enterradas. «Encontrei um grande número de teoremas extraordinariamente belos», disse ele uma vez. Estes teoremas seriam por ele anotados nas margens dos seus exemplares de traduções de livros antigos.
Fermat era filho de um comerciante de cabedais, Dominique Fer-mat, que era 2.o cônsul na cidade de Beaumont-de-Lomagne, e de Claire de Long, filha de uma família de magistrados parlamentares. O jovem Fermat nasceu em Agosto de 1601 (baptizado em 20 de Agosto em Beaumont-de-Lomagne) e foi criado e educado pelos pais para ser magistrado. Foi à escola em Toulouse e instalou-se na mesma cidade como comissário solicitador aos 30 anos de idade. Casou com Louise Long, prima da mãe, nesse mesmo ano de 1631. Pierre e Louise tiveram três filhos e duas filhas. Um dos filhos, Clement Samuel, tornou-se auxiliar científico do pai e publicou os seus trabalhos após a sua morte. É, na realidade, a partir do livro que contém o trabalho de Fermat, publicado pelo filho e que chegou aos nossos dias, que conhecemos o seu famoso último teorema. Clement Samuel de Fermat reconheceu a importância do teorema escrito à margem e adicionou-o à tradução do trabalho antigo quando este foi publicado.
A vida de Fermat é muitas vezes descrita como calma, estável e monótona. Desempenhou o seu trabalho com dignidade e honestidade e em 1648 foi promovido à importante posição de conselheiro do rei no parlamento local de Toulouse, título que manteve durante dezassete anos, até à morte, em 1665. Considerando o grande trabalho que Fermat fez para a coroa, uma vida de serviço dedicado, capaz e consciencioso, muitos historiadores sentem-se intrigados pelo facto de ter tido tempo e energia mental para realizar matemática de primeiro plano e em vários volumes. Um especialista francês sugeriu que o trabalho oficial de Fermat terá sido, na realidade, um trunfo para os seus estudos matemáticos, visto que os conselheiros parlamentares franceses deviam reduzir ao mínimo os seus contactos não oficiais para evitarem as tentações de subornos e corrupção. Visto que Fermat necessitava certamente de uma alternativa ao seu árduo trabalho, e dado que tinha de limitar a sua vida social, a matemática, provavelmente, oferecia-lhe a pausa necessária. E as ideias de cálculo estavam longe de serem a sua única conquista. Fermat trouxe até nós a teoria dos números. E um elemento importante nesta teoria é o conceito de número primo.
Números primos
Os números 1, 2 e 3 são números primos. O número 4 não é primo porque é o produto de 2 por 2: 2 × 2 = 4. O número 5 é primo. O número 6 não é primo, visto que, como o 4, é o produto de dois números: 2 × 3 = 6. 7 é primo, 8 não é (2 × 2 × 2 = 8), 9 não é (3 × 3 = 9) e 10 não é (2 × 5 = 10). Mas 11 é novamente um número primo, visto não haver inteiros (além do próprio 11 e de 1) que pos-sam ser multiplicados para perfazerem 11. E podemos continuar: 12 não é primo, 13 é, 14 não é, 15 não é, 16 não é, 17 é, e assim sucessi-vamente. Não há aqui qualquer estrutura aparente, como seria, por exemplo, o caso de haver um não primo de quatro em quatro números ou até um padrão mais complexo. O conceito envolveu a humanidade em mistério desde a Antiguidade. Sendo os números primos elementos essenciais da teoria dos números, a falta de uma estrutura simples faz com que a teoria pareça desunificada e os seus problemas isolados, difíceis de resolver, sem implicações claras para outros ramos da ma-temática. Segundo Barry Mazur: «A teoria dos números produz, sem esforço, inúmeros problemas que têm um ar inocente e doce, flores tentadoras; no entanto [...] a teoria dos números está cheia de insectos, prontos a picarem os sedutores amadores de flores, que, uma vez picados, ficam inspirados a esforçarem-se denodadamente2!»
Uma famosa nota à margem
Fermat estava tocado pelo encanto dos números. Neles encontrava beleza e significado. Inventou um conjunto de teoremas na teoria dos números, um dos quais foi o de que qualquer número da forma 22n + 1 (2 elevado ao expoente 2 elevado a n, somado com 1) é um número primo. Mais tarde, quando foi encontrado um número não primo desta forma, descobriu-se que o teorema era falso.
Entre as estimadas traduções latinas de textos antigos pertencentes a Fermat encontrava-se um livro chamado Arithme- tica, escrito pelo matemático grego Diofanto, que viveu em Alexandria no século iii d. C. Por volta de 1637 Fermat escre- veu em latim nas margens do seu Diofanto, ao lado de um problema de decomposição de um número ao quadrado em dois quadrados:
Por outro lado, é impossível separar um cubo em dois cubos, ou um biquadrado em dois biquadrados, ou, em geral, qualquer potência, excepto um quadrado, em duas potências com o mesmo expoente. Descobri uma maravilhosa prova disso, que, no entanto, não cabe nas margens deste livro.
Este misterioso comentário manteve gerações de matemáticos ocupados a tentarem descobrir a «maravilhosa demonstração» que Fermat dizia possuir. O comentário em si, segundo o qual, embora um quadrado de um número inteiro possa ser separado em dois outros quadrados de números inteiros (por exemplo, 5 ao quadrado, que é 25, é igual à soma de 4 ao quadrado, que é 16, com 3 ao quadrado, que é 9) e o mesmo não possa ser feito com cubos ou potências maiores, aparentava ser bem simples. Todos os outros teoremas enunciados por Fermat foram considerados verdadeiros ou falsos até princípios do século xix. Aquela aparentemente simples afirmação continuou, porém, por demonstrar, razão por que lhe foi dado o nome de «último teorema de Fermat». Seria na realidade verdadeiro? Mesmo no nosso século foram já utilizados computadores em tentativas de verificação da veracidade do teorema. Os computadores conseguiam verificar a validade do teorema para números muito grandes, mas não podiam fazê-lo para todos os números. O teorema poderia ser experimentado em milhares de milhões de números que haveria ainda um número infinito de muitos outros — e de expoentes — para verificar. Para estabelecer o último teorema de Fermat era necessária uma demonstração matemática. No século xviii as academias de ciências francesa e alemã ofereceram prémios a quem encontrasse uma prova, pelo que todos os anos milhares de matemáticos e amadores mandavam «provas» para jornais matemáticos e peritos científicos — tendo sempre falhado.
Julho-Agosto de 1993 — descoberta de uma falha fatal
Os matemáticos estavam cautelosamente optimistas quando Wiles desceu do pódio nessa quarta-feira de Junho. Finalmente, um mistério com trezentos e cinquenta anos tinha aparentemente sido desvendado. A longa demonstração de Wiles, que recorrera a noções matemáticas e a teorias complicadas que não existiam no tempo de Fermat ou até ao século xx, precisava de ser validada por peritos independentes. A prova foi enviada a vários matemáticos. Talvez os sete anos de trabalho solitário de Wiles no sótão tivessem, finalmente, valido a pena. Mas o optimismo foi curto. Em poucas semanas foi descoberta uma falha na lógica de Wiles, que tentou eliminá-la, mas ela persistia. O matemático Peter Sarnak, de Princeton, um bom amigo de Andrew Wiles, via-o agonizar, dia após dia, por causa da demonstração que apenas dois meses antes comunicara possuir. «É como se o Andrew estivesse a tentar pôr um tapete gigante no chão de uma sala», explica Sarnak. «Puxando por uma ponta, caberia perfeitamente de um lado, mas do outro lado ficaria encostado à parede e, ao ajustá-lo aí, levantar-se-ia noutro sítio. Se o tapete tinha o tamanho da sala ou não, era algo que ele não conseguia determinar.» Wiles retirou-se para o seu sótão. Os jornalistas do New York Times e o resto da imprensa deixaram-no a completar a sua tarefa. À medida que o tempo avançava sem uma prova, os matemáticos e o público, em geral, começaram a duvidar se o teorema de Fermat seria verdadeiro. A prova maravilhosa que o professor Wiles informara possuir tornou-se tão real como a de Fermat, na verdade uma «prova maravilhosa que, infelizmente, não cabe nas margens deste livro».
Entre os rios Tigre e Eufrates, c. 2000 a. C.
A história do último teorema de Fermat é bastante mais antiga do que o próprio Fermat. É até mais antiga do que Diofanto, cujo trabalho Fermat tentou generalizar. As origens deste aparentemente simples mas, no entanto, profundo teorema são tão antigas como a própria civilização humana. Têm raízes na cultura da Idade do Bronze, que se desenvolveu no Crescente Fértil, entre os rios Tigre e Eufrates, da antiga Babilónia (área no interior do actual Iraque). E, enquanto o último teorema de Fermat é uma afirmação abstracta, sem aplicações em ciência, engenharia ou matemática — nem mesmo na teoria dos números, o seu ninho na matemática —, as raízes deste teorema estão ligadas ao quotidiano do povo da Mesopotâmia de 2000 a. C.
A era de 2000 a. C. a 600 a. C. no vale da Mesopotâmia é con-siderada a era babilónica. Este tempo presenciou desenvolvimentos culturais espantosos, incluindo a escrita, o uso da roda e trabalhos em metal. Era usado um sistema de canais para irrigar vastas porções de terra entre os dois rios. À medida que a civilização florescia no fértil vale da Babilónia, os povos antigos que aí habitavam aprendiam a comercializar e a construir cidades prósperas, como Babilónia e Ur (onde Abraão nasceu). Mesmo antes, em finais do 4.o milénio a. C., havia já sido desenvolvida uma forma primitiva de escrita tanto na Mesopotâmia como no vale do rio Nilo. Como o barro era abundante na Mesopotâmia, foi possível imprimir formas em cunha em placas de barro mole. Estas placas eram então cozidas em fornos ou deixadas a secar ao sol. Esta forma de escrita, designada por cuneiforme, um termo derivado da palavra latina cuneus, que significa cunha, constitui o primeiro tipo de escrita que o mundo conheceu. O comércio e a construção na Babilónia e no antigo Egipto fizeram surgir a necessidade de medições precisas. Os primeiros cientistas destas sociedades da Idade do Bronze aprenderam a calcular a relação entre a circunferência e o diâmetro de um círculo, de que resultou um número a que hoje chamamos pi. As pessoas que construíram o gigante Zigurate, a bíblica Torre de Babel e os Jardins Suspensos, uma das sete maravilhas do mundo antigo, necessitavam de um método para cálcular áreas e volumes.
A riqueza é uma quantidade quadrada
Foi desenvolvido um sistema sofisticado de numeração usando a base 60, o que permitiu que os engenheiros e construtores babilónios pudessem calcular as quantidades necessárias no dia a dia da sua vida profissional. Os quadrados de números surgem naturalmente na vida, embora tal não pareça assim à primeira vista. Podem ser vistos como a representação da riqueza. A prosperidade de um camponês depende da quantidade de colheitas que consegue produzir. Estas colheitas, por sua vez, dependem da área que está disponível para o camponês. A área é o produto do comprimento e da largura do campo e é aí que os quadrados entram. Um campo que tenha comprimento e largura igual a x tem área igual a x ao quadrado. Neste sentido, a riqueza é uma quantidade quadrada.
Os Babilónios queriam saber quando é que os quadrados de números inteiros poderiam ser separados noutros quadrados de números inteiros. Um lavrador que possuía um campo de 25 unidades quadradas de terra poderia trocá-lo por dois campos quadrados, um medindo 16 unidades quadradas e o outro 9 unidades quadradas. Por conseguinte, um campo de 5 unidades por 5 unidades era equi-valente a dois campos, um com 4 por 4 e outro com 3 por 3. Isto era uma informação importante para solucionar um problema prático. Hoje escreveríamos este tipo de relação na forma de uma equação: 52 = 32 + 42. E os conjuntos de três destes inteiros, neste caso 3, 4 e 5, cujos quadrados satisfazem esta relação, denominam--se triplos pitagóricos — embora fossem já conhecidos pelos Babilónios um milénio antes do tempo do famoso matemático grego, Pitágoras, sendo baptizados com o seu nome.
Toda esta informação provém de uma placa de barro invulgar datada de cerca de 1900 a. C.
«Plimpton 322»
Os Babilónios eram obcecados por tabelas. E a abundância de barro e a técnica de escrita cuneiforme que possuíam tornaram possível a criação de muitas delas. Devido à durabilidade das placas de barro, muitas delas sobreviveram até aos nossos dias. De um único lugar, o local do antigo Nipur, foram recuperadas mais de 50 000 placas, que se encontram agora em colecções dos museus de Yale, Colúmbia e da Universidade da Pensilvânia, entre outros. Muitas dessas placas estão nas caves dos museus, a acumular pó, ainda por ler e decifrar.
Uma placa que foi decifrada era notável. Esta placa, do museu da Universidade de Colúmbia, tem o nome de «Plimpton 322». Apenas contém quinze triplos de números. Cada um destes triplos tem a característica de o primeiro número ser um quadrado e a soma de outros dois, cada um destes também quadrado — a ta- bela contêm quinze triplos pitagóricos3. Os números 25 = 16 + 9, apresentados anteriormente, formam um triplo pitagórico. Outro triplo pitagórico inscrito na «Plimpton 322» é 169 = 144 + 25 (132 = 122 + 52). Nem todos os estudiosos estão de acordo sobre a razão por que os antigos Babilónios se interessavam por estes números. Uma teoria refere que o interesse se limitava aos efeitos práticos e o facto de usarem um sistema de numeração de base 60 e, por isso, preferirem inteiros a fracções corrobora a necessidade de resolver problemas práticos com simpáticos números inteiros quadrados. Mas outros especialistas pensam que o interesse inerente aos números em si pode ter também sido motivação para o interesse dos Babilónios por números quadrados. Aparentemente, qualquer que tenha sido a razão, a «Plimpton 322» pode ter servido como ferramenta para ensinar estudantes a resolver problemas cujos números são quadrados perfeitos.
A perspectiva dos Babilónios não era a de desenvolverem uma teoria geral para resolverem estes problemas, mas antes a de fornecerem tabelas que listassem triplos de números e, aparentemente, ensinarem os alunos a lerem e usarem estas tabelas.
Uma antiga sociedade secreta de adoradores de números
Pitágoras nasceu na ilha grega de Samos por volta de 580 a. C. Viajou bastante pelo mundo antigo e visitou a Babilónia, o Egipto e, possivelmente, a Índia. Nas suas viagens, nomeadamente à Babilónia, Pitágoras entrou em contacto com matemáticos e, provavelmente, teve conhecimento dos seus estudos sobre os conjuntos de números, agora com o seu nome — os triplos pitagóricos, que eram já conhecidos dos cientistas e matemáticos babilónios há mais de 1500 anos. Também falou com os construtores de trabalhos magníficos de arte e arquitectura e os aspectos matemáticos dessas maravilhas não podiam escapar-lhe. Nessas viagens foi ainda confrontado com as ideias religiosas e filosóficas do Oriente.
Quando voltou à Grécia, Pitágoras abandonou a ilha de Samos e mudou-se para Crotona, na «bota» italiana. É interessante salientar que Pitágoras viu certamente muitas das sete maravilhas do mundo antigo. Uma dessas maravilhas, o Templo de Hera, situa-se precisamente no sítio onde Pitágoras nasceu, em Samos. Hoje as ruínas desse magnífico templo — das centenas de colunas existentes, apenas uma se encontra de pé — encontram-se nos arredores da moderna cidade de Pitagórion, baptizada com esse nome em homenagem ao filho ilustre da ilha. Alguns quilómetros a norte, na actual Turquia, pode ser vista outra dessas maravilhas nas ruínas do antigo Éfeso. O Colosso de Rodes fica perto, a sul de Samos, as Pirâmides e a Esfinge estão no Egipto, e Pitágoras viu-as, e na Babilónia deve ter visto os Jardins Suspensos.
A bota italiana, incluindo Crotona, onde Pitágoras se instalou, assim como a maior parte do Sul da Itália, faziam nessa altura parte do mundo grego — Magna Grécia. Esta «grande Grécia» incluía possessões em todo o Mediterrâneo oriental, incluindo Alexandria, no Egipto, com uma grande população de etnia grega —, cujos descendentes aí viveram até princípios do século xx. Não muito longe de Crotona existiam grutas para oráculos, como o de Delfos, que se acreditava ser capaz de adivinhar a sorte e o futuro de pessoas e nações.
«O número é tudo»
Nos arredores estéreis e rudes da ponta da Itália, Pitágoras fundou uma sociedade secreta dedicada ao estudo dos números. Crê--se que a sociedade, cujos membros se tornaram colectivamente conhecidos como pitagóricos, desenvolveu uma parte substancial do conhecimento matemático — tudo em absoluto segredo. Pensa--se que os pitagóricos seguiam uma filosofia sumarizada no lema «o número é tudo». Adoravam os números e acreditavam que eles tinham propriedades mágicas. Um objecto de interesse para eles era um número «perfeito». Uma das definições de um número perfeito — um conceito que continuou a ser pesquisado na Idade Média e aparece em sistemas místicos, como a Cabala judaica — é um número que é a soma dos seus factores multiplicativos. O melhor e mais simples exemplo de número perfeito é o número 6. 6 é o produto de 3 por 2 e por 1. São estes os factores multiplicativos deste número, ou seja, 6 = 3 × 2 × 1. Mas deve também notar-se que, somando os mesmos factores, o resultado é o mesmo número 6: 6 = 3 + 2 + 1. Neste sentido, 6 é «perfeito». Outro número perfeito é 28, visto que os números que podem dividir 28 (sem resto) são 1, 2, 4, 7 e 14, verificando-se também que 1 + 2 + 4 + 7 + + 14 = 28.
Os pitagóricos seguiam um modo de vida ascético e eram estritamente vegetarianos. Mas não comiam feijões, pensando que tinham uma aparência semelhante a testículos. As suas preocupações com os números faziam parte do espírito de uma religião e o seu estrito vegetarianismo tinha origem em crenças religiosas. Embora nenhum documento datado do tempo de Pitágoras tenha sobrevivido, existe uma grande quantidade de literatura posterior sobre o mestre e os seus seguidores, sendo o próprio Pitágoras considerado um dos grandes matemáticos da Antiguidade. É-lhe atribuída a descoberta do teorema de Pitágoras, que diz respeito aos quadrados dos lados de um triângulo rectângulo, que tem uma forte influência nos triplos pitagóricos e, 2000 anos depois, no último teorema de Fermat.
O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos...
O teorema em si teve origem na Babilónia, visto que os Babilónios compreendiam muito bem os triplos «pitagóricos». Aos pitagóricos, no entanto, deve ser creditado o seu relacionamento com a geometria, generalizando a questão para além dos números naturais (inteiros positivos, excepto o zero). O teorema de Pitágoras afirma que o quadrado da hipotenusa de um triângulo rectângulo é igual à soma dos quadrados dos restantes dois lados do triângulo, como mostra a figura.
Quando a hipotenusa é um inteiro (como 5, cujo quadrado é 25), a solução pitagórica geral em termos da soma de dois quadrados será dada pelos inteiros 4 (cujo quadrado é 16) e 3 (cujo quadrado é 9). Logo, o teorema de Pitágoras, quando aplicado a números inteiros (números como 1, 2, 3, ...), dá-nos os triplos pitagóri- cos que eram conhecidos mil anos antes de Pitágoras na Babilónia.
Os pitagóricos também sabiam que um número ao quadrado é a soma de sequências de números ímpares. Por exemplo, 4 = 1 + 3; 9 = 1 + 3 + 5; 16 = 1 + 3 + 5 + 7, etc. Esta propriedade foi por eles representada com um arranjo visual de números num padrão com uma série de quadrados. Quando a um quadrado da série se junta o número ímpar de círculos ao longo de lados adjacentes, forma--se um novo quadrado:
Números inteiros, fracções e que mais?
Mas os pitagóricos conheciam muito mais do que os números inteiros e as fracções (números como 1/2, 1/3, 5/8, 147/1769, etc.), que eram conhecidos na Babilónia e no Egipto antigos. Foram os pitagóricos que descobriram os números irracionais — isto é, números que não podem ser escritos na forma de fracções, mas têm de ser escritos como números com casas decimais infinitas não repetidas. Um exemplo é o número pi (3,141592654...), a razão da circunferência de um círculo pelo seu diâmetro. O número pi é interminável; levaria uma eternidade a escrever completa- mente, visto que comportaria uma infinidade de dígitos distintos (isto é, sem nunca acabar). Para o escrevermos apenas dizemos pi (p). Ou podemos escrevê-lo aproximado a um número finito de casas decimais, como 3,14, 3,1415, etc. No nosso século foram utilizados computadores para calcular e escrever o pi com 1 milhão ou mais dígitos, mas isso raramente é necessário. O pi era conhecido, com várias aproximações, pelos Babilónios e pelos Egípcios do 2.o milénio a. C. Aproximavam-no a 3, e sur- giu como consequência natural da descoberta da roda. O pi tam-bém apareceu em várias medições de uma pirâmide. É também feita uma referência ao pi no Velho Testamento: em Reis, i, 7, 23, refere-se uma parede circular a ser construída. A partir do número dado de unidades para a circunferência e o diâmetro pode concluir-se que os antigos Israelitas adoptaram o pi como sendo cerca de 3.
Os pitagóricos descobriram que a raiz quadrada de 2 era um número irracional. A partir de uma aplicação do teorema de Pitágoras a um triângulo rectângulo com ambos os catetos iguais a uma unidade, os pitagóricos obtinham na hipotenusa um valor estranho: a raiz quadrada de 2. E conseguiram perceber que este número não era inteiro, nem mesmo uma fracção, ou seja, não era a divisão entre dois inteiros. Era um número com uma representação decimal interminável que não se repetia. Tal como no caso do pi, para escrever o número exacto da raiz quadrada de 2 (1,414213562...) levar-se-ia uma eternidade, visto haver uma infinidade de dígitos, formando uma sequência única (ao contrário de uma sequência repetitiva, como 1,857142857142857142857142857..., etc., que poderia ser representada sem escrever todos os dígitos). Qualquer número com uma parte decimal repetitiva (neste caso, a sequência 857142 repete-se infinitamente na parte decimal do número) é um número racional, ou seja, pode escrever-se sob a forma a/b, isto é, a razão entre dois inteiros. Neste exemplo os inteiros são 13 e 7. A razão 13/7 é igual a 1,857142857142857142857142..., com o padrão 857142 a repetir-se eternamente.
A descoberta da irracionalidade da raiz quadrada de 2 surpreendeu e chocou estes diligentes admiradores de números. Juraram nunca o revelarem a ninguém fora da sua sociedade. Mas a notícia espalhou-se. E a lenda diz que o próprio Pitágoras afogou o membro que divulgou ao mundo o segredo da existência dos estranhos números irracionais.
Os números na recta numérica são de dois tipos distintos: racionais e irracionais. Vistos em conjunto, enchem por completo a recta sem deixarem buracos. Os números estão muito, muito perto (infinitesimalmente perto) uns dos outos. Os números racionais são designados por densos na totalidade dos números reais. Qualquer vizinhança, qualquer pequeno intervalo, em redor de um número racional contém infinitos números irracionais. E vice-versa: à volta de cada número irracional existem infinitos números racionais. Ambos, os racionais e os irracionais, são em número infinito. Mas os irracionais são tão numerosos que existem mais números irracionais do que racionais. A sua ordem de infinidade é maior. Este facto foi revelado no século xix pelo matemático Georg Cantor (1845-1918). Nessa altura poucas pessoas acreditaram em Cantor. O seu arqui-inimigo Leopold Kronecker (1823-1891) insultou e ridicularizou Cantor pelas suas teorias sobre a quantidade de racionais e irracionais existentes. Kronecker é conhecido pelo comentário «Deus criou os inteiros; tudo o resto é obra do homem», o que equivalia a dizer que não acreditava que os números irracionais, tal como a raiz de 2, existissem! (Isto, mais de dois milénios após os pitagóricos.) O facto de Cantor não ter conseguido uma posição como professor na prestigiada Universidade de Berlim e até os fre-quentes esgotamentos nervosos e o seu fim num asilo para pessoas mentalmente instáveis devem-se ao antagonismo de Kronecker. Hoje todos os matemáticos sabem que Cantor tinha razão e que há infi-nitamente mais números irracionais do que números racionais, embora ambos sejam infinitos. Mas saberiam disso os antigos Gregos4?
A herança pitagórica
Um aspecto importante da vida pitagórica, com as suas regras dietéticas e adoração de números e reuniões secretas e rituais, era a realização de estudos matemáticos e filosóficos como uma base moral. Pensa-se que o próprio Pitágoras cunhou as palavras filosofia — amor à sabedoria — e matemática — aquilo que se aprende. Pitágoras transformou a ciência da matemática numa forma liberal de educação.
Pitágoras morreu por volta de 500 a. C. e não deixou qualquer registo escrito do seu trabalho. O centro de Crotona foi destruído quando um grupo político rival, os sibaríticos, surpreendeu os seus membros e matou grande parte deles. O resto dispersou-se pelo mundo grego à volta do Mediterrâneo, levando consigo a sua filosofia e o misticismo dos números. Entre os que aprenderam a filo-sofia da matemática através desses refugiados encontrava-se Filolau de Tarento, que estudou no novo centro que os pitagóricos estabeleceram nessa cidade. Filolau foi o primeiro filósofo grego que escreveu a história e as teorias da ordem pitagórica. Foi no livro escrito por Filolau que Platão aprendeu a filosofia pitagórica dos números, a cosmologia e o misticismo, temas sobre os quais escreveria mais tarde. O símbolo especial da ordem pitagórica era a estrela de cinco vértices inscrita num pentágono. As diagonais que formam a estrela intersectam-se de tal maneira que formam outro pentágono, mais pequeno, na direcção inversa. Se as diagonais dentro deste pentágono mais pequeno forem desenhadas, formarão ainda outro pentágono, e assim sucessivamente. Este pentágono e a estrela nele inscrita composta por diagonais têm propriedades fascinantes, que os pitagóricos pensavam serem místicas. Um ponto diagonal (intersecção de duas diagonais) divide uma diagonal em duas partes diferentes. A razão entre a totalidade da diagonal e o segmento maior é exactamente igual à razão entre o segmento maior e o segmento menor. Esta razão é designada por número de ouro. É um número irracional igual a 1,618... Dividindo 1 por este número, obtém-se exactamente a mesma parte decimal sem o 1. Isto é, obtém--se 0,618... Como veremos mais adiante, o número de ouro surge em fenómenos naturais, assim como em proporções que a visão humana considera belas. Aparece como o limite da razão dos famosos números de Fibonacci que também encontraremos mais à frente.
Pode encontrar-se o número de ouro por uma sequência interessante de operações numa calculadora. Basta fazer 1 + 1 =, depois premir 1/x, a seguir + 1 =, depois 1/x, seguidamente + 1 =, depois 1/x, e assim sucessivamente. Feitas as operações repetidamente um determinado número de vezes, deverá surgir, alternadamente, o número de ouro e o seu inverso, 1,618... e 0,618... (O número de ouro obtém-se dividindo por 2 a soma de 1 com a raiz quadrada de 5.) É esta a forma como é obtida geometricamente a partir do pen-tágono pitagórico. Visto que esta razão nunca se torna a razão de dois inteiros, não sendo, portanto, um número racional, demonstra-se assim que a raiz quadrada de 5 também é um número irracional. Mais à frente serão feitas outras referências ao número de ouro.
Os pitagóricos descobriram que a harmonia na música correspondia a razões simples entre números. De acordo com Aristóte-les, os pitagóricos pensavam que todo o céu era composto por escalas musicais e números. A harmonia musical e os desenhos geométricos levaram os pitagóricos a acreditar que «tudo se resumia a números». Os pitagóricos pensavam que as razões numéricas básicas da música envolviam apenas os números 1, 2, 3 e 4, cuja soma é 10. E 10, por sua vez, é a base do nosso sistema de numeração. Representavam o número 10 como um triângulo, ao qual chamaram tetraktys5.
Os pitagóricos consideravam o tetraktys sagrado e até lhe faziam juramentos. Incidentalmente, de acordo com Aristóteles, assim como Ovídio e outros escritores clássicos, o número 10 foi escolhido como a base do sistema de numeração porque as pessoas têm 10 dedos. Recordemos que os Babilónios, por sua vez, usavam um sistema numérico de base 60. Ainda hoje há vestígios de outros sistemas de numeração. A palavra francesa para 80 (quatre-vingt, que significa «quatro vintes») é uma relíquia de um sistema numérico arcaico de base 20.
As cordas, o Nilo e o nascimento da geometria
Muito do que se sabe sobre a matemática da antiga Grécia pro-vém dos Elementos de Euclides, de Alexandria, que viveu por volta de 300 a. C. Pensa-se que os primeiros dois volumes dos Elemen-tos são sobre o trabalho de Pitágoras e da sua sociedade secreta. A matemática dos antigos Gregos era feita pela sua beleza e ocupava-se de figuras geométricas abstractas. Os Gregos desenvolveram uma teoria geométrica completa, sendo esta teoria, com poucas modificações, leccionada ainda hoje nas escolas. De facto, a obra Elementos, ou o que resta dela, é considerada o mais grandioso compêndio de todos os tempos.
Heródoto, o grande historiador grego da Antiguidade, acreditava que a geometria fora desenvolvida no antigo Egipto por volta de 3000 a. C., muito antes dos gregos de Alexandria e de qualquer outro lugar. Ele conta como as cheias do Nilo destruíam as fronteiras entre os campos no fértil delta do rio e como isto necessitava de técnicas complicadas de agrimensura. Com esta finalidade, os agrimensores tinham de desenvolver conceitos e ideias geométricos. Na sua obra Histórias escreveu Heródoto:
Se o rio levasse alguma porção de terra de um homem, o rei enviava pessoas para examinarem e determinarem por medições a extensão exacta das perdas. Isto leva-me a concluir que a geometria surgiu inicialmente no Egipto, donde foi levada para a Grécia6.
A geometria é o estudo de formas e figuras feitas de circunferências e linhas rectas, de arcos e triângulos, formando as suas intersecções diversos ângulos. Depreende-se que tal ciência seria essencial para um bom trabalho de agrimensura. Os geómetras egípcios eram, na realidade, apelidados de «esticadores de cordas», visto usarem cordas para visualizarem linhas rectas, necessárias tanto para a construção de pirâmides e templos como para o realinhamento das fronteiras entre os campos. Mas é possível que as origens da geometria sejam ainda mais antigas. Achados neolíticos revelam exemplos de congruência e simetria em desenhos, podendo estes ter sido os antecessores da geometria egípcia, herdada séculos depois pelos antigos Gregos. As preocupações que os Babilónios tinham com as áreas dos campos, levando à necessidade de compreensão dos quadrados dos números e suas relações, foram partilhadas pelos antigos Egípcios, que eram confrontados com os mesmos dilemas agrários, assim como com problemas na construção das pirâmides. É, assim, possível que os antigos Egípcios hajam tido conhecimento dos triplos pitagóricos. Os Gregos, no entanto, limitaram-se a encarar a geometria como matemática pura. Apenas enunciavam e demonstravam teoremas.
O que é um teorema?
Os Gregos trouxeram até nós o conceito de teorema. Um teorema é uma afirmação matemática cuja demonstração está feita. A demonstração de um teorema é uma justificação rigorosa da veracidade do teorema, de tal modo que não pode ser posta em causa por ninguém que siga as regras da lógica e aceite um conjunto de axiomas definidos à partida como sendo a base do sistema lógico. Os axiomas de Euclides incluem a definição de um ponto, de uma linha, e a afirmação de que duas linhas paralelas não se encontram. Seguindo os axiomas e as progressões lógicas, como, por exemplo, se A im-plica B e B implica C, então A implica C, os antigos Gregos de-monstraram muitos teoremas belos sobre a geometria de triângulos e circunferências, quadrados e octógonos, hexágonos e pentágonos.
«Eureka! Eureka!»
Os grandes matemáticos gregos Eudoxo (século v a. C.) e Arquimedes (século iii a. C.) desenvolveram esse trabalho em figuras geométricas para determinar áreas, usando quantidades infinitesimais (ou seja, infinitamente pequenas). Eudoxo de Cnido (408- -355 a. C.), amigo e aluno de Platão, era demasiado pobre para viver na Academia, em Atenas, e por isso vivia na cidade de Pireu, onde a vida era mais barata. Daí viajava diariamente para a Academia de Platão. Embora o próprio Platão não fosse matemático, encorajava o trabalho matemático, especialmente o de alunos dotados, como Eudoxo. Eudoxo viajou até ao Egipto e aí, assim como na Grécia, aprendeu muita geometria. Inventou o «método de exaustão», que utilizou para encontrar áreas de figuras geométricas, servindo-se de quantidades infinitesimais. Eudoxo aproximaria, por exemplo, a área de um círculo pela soma das áreas de mui- tos rectângulos pequenos, cujas áreas são fáceis de calcular, multiplicando a base pela altura. Este é essencialmente o método utilizado hoje em dia no cálculo integral, não sendo os moder- nos argumentos de limite diferentes do método de «exaustão» de Eudoxo.
Mas o mais brilhante matemático da Antiguidade foi, sem dúvida, Arquimedes (287-212 a. C.), que viveu na cidade de Siracusa, na ilha da Sicília. Arquimedes era filho do astrónomo Fídias e parente de Hierão II, rei de Siracusa. Tal como Eudoxo, Arquimedes desenvolveu métodos para determinar áreas e volumes, que foram os antecessores do cálculo (infinitesimal). O seu trabalho antecipou tanto o cálculo integral como o cálculo diferencial (o cálculo infinitesimal inclui essas duas partes — Arquimedes integrava as duas). Todavia, embora estivesse principalmente interessado em matemática pura — números, geometria, áreas de figuras geométricas, etc. —, é também conhecido pelos seus feitos na aplicação da matemática. A descoberta por Arquimedes da que é hoje conhecida pela primeira lei da hidrostática é uma história muito conhecida: a lei diz que um corpo submerso perde o equivalente ao peso do líquido que desloca. Nessa altura havia um ourives desonesto em Siracusa, pelo que o rei Hierão pediu ao seu amigo matemático que descobrisse uma maneira de provar a sua desonestidade. Arquimedes começou por estudar a perda de peso dos corpos submersos, usando nas experiências o próprio corpo. Tomou um banho e fez algumas medições. Quando descobriu a lei, saltou da banheira e correu nu pelas ruas de Siracusa gritando eureka, eureka! («encontrei-a, encontrei-a!»).
Arquimedes é também considerado o responsável pela descoberta do parafuso de Arquimedes, um aparelho utilizado para elevar a água, rodando apenas manualmente uma manivela. É ainda usado por agricultores em todo o mundo.
Quando o general romano Marcelo atacou Siracusa em 214-212 a. C., Hierão pediu de novo ajuda ao ilustre parente. À medida que a frota romana se aproximava, Arquimedes desenvolveu grandes catapultas, baseando-se no seu estudo sobre as alavancas, e o povo de Siracusa conseguiu defender-se bem. Contudo, Marcelo reagrupou as suas forças e algum tempo depois atacou por trás e conseguiu tomar Siracusa de surpresa. Nessa altura Arquimedes não estava a par do ataque e permanecia sentado calmamente no chão, desenhando figuras geométricas na areia. Um soldado romano aproximou-se e pisou as figuras. Arquimedes saltou, exclamando: «Não perturbes as minhas circunferências!» Em resposta, o sol-dado pegou na espada e matou o matemático, que morreu com 75 anos. No seu testamento, Arquimedes tinha aparentemente pedido que na pedra da sua campa fosse esculpida uma forma geométrica que admirava particularmente — uma esfera dentro de um cilindro. A campa abandonada foi coberta e a localização perdeu-se, mas o orador romano Cícero encontrou-a muitos anos depois e restaurou-a, acabando as areias por fazê-la desaparecer de novo. Em 1963, durante as escavações para a construção de um novo hotel perto de Siracusa, o túmulo de Arquimedes foi de novo encontrado pelos trabalhadores. O teorema favorito de Arquimedes tinha a ver com a esfera dentro do cilindro e encontra--se num livro chamado O Método. Tal como a maior parte dos textos antigos, foi dado como perdido. Em 1906 o estudioso dinamarquês J. L. Heiberg, ouvindo dizer que havia em Constantinopla um rolo de pergaminho desvanecido com escrituras de natureza matemática, viajou até lá e encontrou o rolo, que era composto por 185 folhas de pergaminho. Estudos científicos indica- ram que era uma cópia do livro de Arquimedes, feita no século x, à qual haviam sido adicionadas orações ortodoxas orientais no século xiii.
Alexandria, Egipto grego, c. 250 d. C.
Cerca de 250 d. C. viveu em Alexandria um matemático chamado Diofanto. O que sabemos da sua vida é-nos fornecido no seguinte problema, extraído de uma colecção chamada Antologia Palatina, escrita, aproximadamente, um século após a morte de Diofanto7:
Aqui vêem o túmulo que contém os restos de Diofanto, é espantoso: fornece-nos habilmente as medidas da sua vida. A sexta parte da sua vida foi-lhe dada por Deus para a sua juventude. Decorrida outra décima-segunda parte, a sua face já tinha barba. Um sétimo da sua vida depois casou-se e durante o quinto ano teve um filho. O querido mas infeliz filho tinha metade da idade do pai quando o destino cruel o levou. Consolou o seu sofrimento nos quatro restantes anos de vida. Por esta disposição de números, diga-nos qual a duração da sua vida.
(Resolvendo a equação implícita, chega-se à conclusão de que a resposta é 84.)
Não há certezas sobre o período em que Diofanto viveu. Podemos determinar este período baseando-nos apenas em dois factos interessantes. Em primeiro lugar, nos seus escritos cita Hípsicles, que sabemos ter vivido aproximadamente em 150 a. C. Em segundo lugar, o próprio Diofanto é citado por Téon de Alexandria. A época de Téon é-nos dada pelo eclipse que ocorreu em 16 de Junho de 364 d. C. Logo, Diofanto viveu certamente antes de 364 d. C., mas depois de 150 a. C. Os estudiosos, um pouco arbitrariamente, situam-no, aproximadamente, em 250 d. C.
Diofanto escreveu a Arithmetica, que desenvolveu conceitos algébricos e fez nascer um certo tipo de equações. São as equações diofantinas, usadas na matemática actual. Escreveu quinze volumes, mas apenas chegaram seis até aos nossos dias. O resto per-deu-se no fogo que destruiu a grande biblioteca de Alexandria, a mais monumental colecção de livros da Antiguidade. Os volumes que sobreviveram foram alguns dos últimos textos gregos a serem traduzidos. A primeira tradução em latim que é conhecida foi publicada em 1575. Mas a cópia que Fermat tinha era a que Claude Bachet traduzira em 1621. Foi o problema oitavo que Diofanto escreveu no seu segundo volume, que questionava sobre uma maneira de dividir um dado número ao quadrado na soma de dois quadrados — o problema pitagórico cuja solução era conhecida dos Babilónios 2000 anos antes —, que inspirou Fermat a escrever o seu famoso último teorema na margem. Os feitos matemáticos de Diofanto e dos seus contemporâneos foram a glória final dos antigos Gregos.
As Mil e Uma Noites
Enquanto a Europa se entretinha com pequenas guerras feudais de um vassalo de um rei ou príncipe contra outro, ou a sobreviver à peste negra, ou a embarcar nas caras e muitas vezes mortíferas expedições das cruzadas, os Árabes dominavam um florescente império desde o Médio Oriente até à Península Ibérica. Entre os grandes feitos em medicina, astronomia e nas artes, os Árabes desenvolveram a álgebra. Em 632 a. C. o profeta Maomé estabeleceu um Estado islâmico, com a capital em Meca, que ainda hoje se mantém como o centro religioso do islão. Pouco depois as suas forças atacaram o Império Bizantino, uma ofensiva que continuou após a morte de Maomé em Medina nesse mesmo ano. Em poucos anos Damasco, Jerusalém e grande parte da Mesopotâmia caíram nas mãos das forças islâmicas e em 641 d. C. o mesmo aconte- ceu a Alexandria — o centro matemático do mundo. Cerca de 750 d. C. estas guerras, assim como as travadas entre os próprios muçulmanos, subsistiam, mas os árabes de Marrocos e do Ocidente reconciliaram-se com os árabes do Oriente, cujo centro era Bagdade.
Bagdade tornou-se o centro da matemática. Os Árabes absorveram as ideias matemáticas, assim como as descobertas em astronomia e outras ciências, dos habitantes das áreas que ocuparam. Estudiosos do Irão, da Síria e de Alexandria foram chamados a Bagdade. Durante o reinado do califa Al Mamun, em princípios do século ix d. C., foram escritas As Mil e Uma Noites e muitos trabalhos gregos, incluindo os Elementos de Euclides, foram traduzidos para árabe. O califa estabeleceu uma Casa da Sabedoria em Bagdade, tendo um dos seus membros sido Mohammed Ibn Musa Al-Kw~rism§. Tal como Euclides, Al-Kw~rism§ viria a ser mundialmente conhecido. Usando ideias e símbolos hindus para os números, assim como os conceitos mesopotâmicos e as ideias geométricas de Euclides, Al-Kw~rism§ escreveu livros sobre aritmética e álgebra. A palavra algoritmo deriva de Al-Kw~rism§. E a palavra álgebra deriva das primeiras palavras do título do mais conhecido livro de Al-Kw~rism§, Al Jabr Wa’l Muqabalah. Foi a partir deste livro que a Europa tomou mais tarde conhecimento do ramo da matemática conhecido por álgebra. Embora as ideias algébricas estejam nas raízes da Arithmetica de Diofanto, o Al Jabr está mais relacionado com a álgebra actual. O livro aponta soluções simples e directas de equações do 1.o e do 2.o grau. Em árabe, o nome do livro significa «restauração por transposição de termos de um lado da equação para o outro» — que é a maneira pela qual as equações do 1.o grau são resolvidas hoje em dia.
A álgebra e a geometria estão relacionadas, como o estão todos os ramos da matemática. Um campo que une estes dois ramos é a geometria algébrica, desenvolvida no nosso século. Seria a ligação de ramos da matemática a áreas que se encontam em ramos diferentes e os correlacionam que abriria caminho ao trabalho de Wiles para a resolução do problema de Fermat séculos depois.
O mercador medieval e o número de ouro
Os Árabes estavam interessados num problema intimamente relacionado com a questão diofantina de encontrar triplos pitagóricos. O problema consistia em encontrar triplos pitagóricos que fornecessem a área de um triângulo rectângulo cujo valor fosse também inteiro. Centenas de anos depois este problema acabou por servir de base ao Liber Quadratorum, escrito em 1225 por Leonardo de Pisa (1180-1250). Leonardo era mais conhecido por Fibonacci (que significa «filho de Bonaccio»). Fibonacci era um mercador internacional nascido em Pisa. Também viveu no Norte de África e em Constantinopla e viajou muito, tendo visitado a Provença, a Sicília, a Síria, o Egipto e muitas outras regiões do Mediterrâneo. As viagens e as suas relações com a elite da sociedade mediterrânica da altura puseram-no em contacto com as ideias matemáticas árabes, assim como com as culturas grega e romana. Quando o imperador Frederico II visitou Pisa, Fibonacci foi apresentado à corte imperial e acabou por se integrar socialmente no círculo imperial.
Além do Liber Quadratorum, Fibonacci é também conhecido por ter escrito outro livro, o Liber Abaci. Um problema sobre os triângulos pitagóricos enunciado no livro de Fibonacci aparece também num manuscrito bizantino do século xi, agora na biblioteca do Palácio Velho, em Istambul. Poderá ter sido uma coincidência; por outro lado, Fibonacci poderá ter visto esse mesmo livro em Constantinopla numa das suas viagens.
Fibonacci é mais conhecido pela sucessão de números que tem o seu nome, os números de Fibonacci. Estes números têm origem no problema seguinte, extraído do Liber Abaci:
Quantos pares de coelhos serão produzidos num ano, começando com um único par, se em cada mês cada par gerar um novo par que se torne produtivo no segundo mês?
A sucessão de Fibonacci, que é derivada deste problema, é tal que cada termo depois do primeiro é obtido adicionando-lhe os dois números que o precedem. A sucessão é 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, ...
Esta sucessão (que é suposto continuar para lá dos doze meses do problema) tem propriedades significativas inesperadas. Espantosamente, a razão entre dois números seguidos na sucessão tende para o número de ouro. As razões são 1/2, 1/2, 2/3, 3/5, 5/8, 8/13, 13/21, 21/34, 34/55, 55/89, 89/144, etc. Note-se que estes números se aproxi- mam cada vez mais de ( - 1)/2. Este é o inverso do número de ouro. Pode ser também obtido usando uma calculadora e repetindo a operação 1/1 + 1/1 + 1/..., como foi descrita anteriormente. Convém lembrar que o inverso (1/x) do número de ouro dá exactamente o mesmo número, subtraído de 1 unidade. A sucessão de Fibonacci aparece bastante na natureza. As folhas de um ramo crescem a distâncias uma da outra que correspondem à sucessão de Fibonacci. Os números de Fibonacci aparecem em flores. Na maior parte das flores o número de pétalas é um dos seguintes: 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55 ou 89. Os lírios têm 3 pétalas, os botões-de-ouro 5, os delfínios, frequentemente, 8, os ásteres 21, as margaridas, normalmente, 34, 55 ou 89.
Os números de Fibonacci surgem também nos girassóis. As florzinhas que se transformam em sementes no topo do girassol estão agrupadas em dois tipos de espirais, rodando uma no sentido dos ponteiros do relógio e a outra em sentido contrário. O número de espirais no sentido dos ponteiros do relógio é muitas vezes 34 e no sentido oposto é 55. Muitas vezes estes números são 55 e 89 e outras vezes até 89 e 144. São todos números consecutivos da sucessão de Fibonacci (cuja razão se aproxima do número de ouro). Ian Stewart argumenta em Nature’s Numbers (Números da Natureza) que, quando as espirais se encontram desenvolvidas, os ângulos entre elas são de 137,5 graus, que é 360 graus multiplicado por 1 menos o número de ouro, dando as espirais também origem a dois números sucessivos de Fibonacci, respectivamente para o número de espirais no sentido dos ponteiro do relógio e no sentido contrário, como se ilustra a seguir8:
Desenhando um rectângulo cujos lados tenham uma razão entre si igual ao número de ouro, o rectângulo pode ser dividido num quadrado e noutro rectângulo. Este segundo rectângulo é semelhante ao primeiro no sentido em que também ele tem a razão entre os dois lados igual ao número de ouro. O rectângulo pequeno pode agora ser dividido num outro quadrado e num outro rectângulo, também com as proporções do número de ouro..., e assim sucessivamente. Pode ser vista com frequência em conchas e em arranjos de flores de girassóis, acima mencionados, e de folhas de um ramo, uma espiral que passa por sucessivos vértices daqueles rectângulos.
O rectângulo tem proporções interessantes. O número de ouro surge não apenas na natureza, mas também na arte, como o ideal clássico de beleza. Há algo de divino na sucessão. A Sociedade Fibonacci, que ainda existe, sediada no St. Mary’s College, na Califórnia, é liderada por um padre e dedica-se à procura de exemplos do número de ouro e de números de Fibonacci na natureza, na arte e na arquitectura, acreditando que essa razão é uma oferta de Deus ao mundo. Como ideal de beleza, o número de ouro surge em locais como o Pártenon, em Atenas. A razão entre a altura do Pártenon e a sua largura é igual ao número de ouro. A razão entre a altura de uma face e metade do lado da base da grande pirâmide de Gizé, construída muitas centenas de anos antes do Pártenon grego, é também igual ao número de ouro. O papiro Rhind, egípcio, refere-se a uma «razão sagrada». Estátuas antigas, assim como quadros renascentistas, exibem proporções iguais ao número de ouro, a razão divina.
O número de ouro tem sido procurado como o ideal de be- leza, para além das flores e da arquitectura. Numa carta dirigida à Sociedade Fibonacci, há alguns anos, um membro descrito como alguém que procurava encontrar o número de ouro pediu a vários casais para participarem numa experiência. A um marido era pedido que medisse a altura do umbigo da mulher e a dividisse pela respectiva altura. O escritor afirma que em todos os casais a razão era de cerca de 0,618.
Os cossistas
A matemática entrou na Europa medieval através dos trabalhos de Fibonacci e pela Espanha, que nessa altura fazia parte do mundo árabe, através dos trabalhos de Al-Kw~rism§. O objectivo principal da álgebra naquela época era resolver equações com uma quantidade desconhecida. Hoje chamamos x à quantidade desconhecida e tentamos resolver a equação seja qual for o valor que x possa ter. Um exemplo da equação mais simples é x - 5 = 0. Aqui efectuamos operações matemáticas simples para encontrarmos o valor de x. Se adicionarmos 5 a ambos os lados da equação, ficamos com x - 5 + 5 do lado esquerdo e com 0 + 5 do lado direito. Logo, o lado esquerdo é x e o lado direito é 5. Isto é, x = 5. Os árabes contemporâneos de Al-Kw~rism§ chamavam «coisa» à quantidade desconhecida. A palavra coisa em árabe é shai. Portanto, resolviam equações com a shai desconhecida, como foi feito acima com x. Quando estas ideias foram importadas para a Europa, a shai árabe foi traduzida para latim. Em latim, «coisa» é res e em italiano é cosa. Uma vez que os primeiros algebristas europeus eram italianos, a palavra cosa estava relacionada com eles. Como estavam preocupados com a resolução de equações que visavam uma cosa desconhecida, ficaram conhecidos como cossistas9.
Como na Babilónia 3,5 milénios antes, na Idade Média e no início do Renascimento a matemática era usada principalmente como auxiliar do comércio. A sociedade mercantil dessa época estava cada vez mais preocupada com os problemas das transacções, com os respectivos lucros e custos, que podiam, por vezes, ser considerados problemas matemáticos que necessitavam da resolução de alguma equação. Os cossistas eram pessoas, como Luca Pacioli (1445-1514), Geronimo Cardano (1501-1576), Niccolo Tartaglia (1500-1557) e outros, que competiam entre eles para resolverem problemas para os mercadores e comerciantes. Estes matemáticos utilizavam a solução de problemas mais abstractos como forma de publicidade, participando em competições em busca de clientela. Despendiam também algum tempo na tentativa de resolverem problemas mais difíceis, como equações cúbicas (equações onde a quantidade desconhecida, cosa ou o nosso x, está elevada ao cubo, x3), de forma que pudessem publicar os resultados e tornar-se ainda mais procurados para resolverem problemas mais práticos.
Em princípios do século xvi Tartaglia encontrou uma forma de resolver as equações do 3.o grau, mas manteve o método secreto, de forma a poder manter-se um passo à frente dos rivais no lucrativo mercado da resolução de problemas. Depois de Tartaglia ter ganho uma competição de resolução de problemas contra outro matemático, Cardano pressionou-o a revelar o segredo sobre a resolução destas equações. Tartaglia revelou o método na condição de Cardano não o revelar ao resto do mundo. Quando, mais tarde, Cardano ouviu os mesmos métodos de outro cossista, Scippione del Ferro (1456-1526), partiu logo do princípio de que Tartaglia aprendera o sistema por intermédio deste, pelo que se sentiu livre para revelar o segredo. Cardano publicou então o método para resolver equações do 3.o grau no seu livro Ars Magna, de 1545. Tartaglia sentiu-se traído e ficou furioso com Cardano. Nos seus últimos anos despendeu muito tempo em disputas com o seu ex- -amigo, conseguindo diminuir assim a reputação de Cardano.
Os cossistas eram considerados matemáticos de um nível inferior ao dos antigos Gregos. A sua preocupação com problemas práticos na procura de sucesso financeiro e as lutas estéreis entre eles impediam-nos de descobrirem a beleza na matemática e de procurarem o conhecimento por si. Não desenvolveram qualquer teoria geral abstracta de matemática. Por isso, tornou-se necessário regressar aos antigos Gregos, o que aconteceu exactamente no século seguinte.
A procura renascentista do conhecimento antigo
Entretanto, decorridos 1300 anos após o desaparecimento de Diofanto, o mundo medieval deu lugar à Renascença e ao início da era moderna. A Europa acordou da escuridão da Idade Média com sede de conhecimento. Muitas pessoas viraram os seus interesses para os trabalhos clássicos dos antigos. Todos os livros antigos existentes foram traduzidos para latim — a língua dos cultos e edu-cados —, como forma de ressuscitar a procura do conhecimento e do esclarecimento. Claude Bachet, um nobre francês, era um tradutor bastante interessado em matemática. Obteve uma cópia do livro grego Arithmetica de Diofanto, que traduziu e publicou, com o título Diophanti Alexandrini Arithmeticorum Libri Sex, em Paris, em 1621. Foi um exemplar deste livro que chegou às mãos de Fermat.
O teorema de Fermat diz que não há triplos pitagóricos para potências além de quadrados. Não há triplos de números, em que que a soma de dois deles seja igual ao terceiro, quando os números são cubos perfeitos de inteiros, ou quartas potências de inteiros, quintas, sextas ou outras potências. Como poderia Fermat ter inventado tal teorema?
Quadrados, cubos e dimensões superiores
Um teorema é uma afirmação com uma demonstração. Fermat dizia ter uma «prova maravilhosa», mas sem ver e validar essa prova ninguém podia chamar teorema a essa afirmação. Uma afirmação pode ser muito profunda, muito significativa e importante, mas sem a demonstração de ser verdadeira deve ser apelidada de conjectura ou, por vezes, de hipótese. Uma vez demonstrada, a conjectura pode ser então designada por teorema, ou lema, se for uma afirmação provada que leve a um teorema mais profundo. Os resultados provados que se tiram de um teorema chamam-se corolários. E Fermat tinha muitas destas afirmações. Uma delas era a de que o número 22n + 1 era sempre um número primo. Esta conjectura não só não foi provada, não sendo, portanto, um teorema, como, na realidade, se provou que estava errada, o que foi feito pelo grande matemático suíço Leonhard Euler (1707-1783) no século seguinte. Logo, não havia razão para acreditar que o «último teorema» fosse verdadeiro. Podia ser verdadeiro, ou podia ser falso. Para provar que o último teorema de Fermat era falso era apenas necessário encontrar um triplo de inteiros, a, b e c, e uma potência n, maior do que 2, que satisfizessem a relação an + bn = cn. Ninguém encontrou ainda tal conjunto de inteiros. (Contudo, admiti que tal solução pudesse existir e ser um dos elementos base para a tentativa de demonstração do teorema mais tarde.) E por volta de 1990 foi demonstrado que tais números não existiam para qualquer n menor do que 4 milhões. Mas tal não significava que esses números não pudessem ser encontrados um dia. O teorema tinha de ser provado para todos os inteiros e todas as potências possíveis.
O próprio Fermat conseguiu demonstrar o seu último teorema para n = 4, seguindo um método engenhoso a que chamou método da «descida infinita», para provar que não existiam quaisquer inteiros a, b e c que satisfizessem a4 + b4 = c4. Reconhecendo que, se existisse uma solução para uma potência n, seria também válida para qualquer divisor de n, teriam então de ser considerados apenas os números primos (maiores do que 2) como expoentes, isto é, números que não podem ser divididos por qualquer outro número inteiro, excepto 1 ou eles próprios. Os primeiros números primos são 1, 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17... Nenhum destes números pode ser dividido por qualquer outro número inteiro, excepto 1 e ele próprio, e resultar daí um inteiro. Um exemplo de um número que não é primo é o 6, visto que 6 dividido por 3 dá 2 — um inteiro. Fermat também conseguiu demonstrar o seu teorema para n = 3. Leonhard Euler provou os casos n = 3 e n = 4 de uma forma diferente da de Fermat e Peter G. L. Dirichlet, em 1828, conseguiu provar o caso n = 5, o mesmo sucedendo com Adrien-Marie Legendre em 1830. Gabriel Lamé e Henri Lebesgue, que o corrigiu em 1840, conseguiram estabelecer a prova para n = 7. Assim, duzentos anos após Fermat ter escrito a famosa nota na margem do livro de Diofanto, o teorema só ainda havia sido provado correctamente para os expoentes 3, 4, 5, 6 e 7. Seria um caminho longo até ao infinito, o que era necessário para provar o teorema para qualquer expoente n. Obviamente, o que era necessário era uma prova geral que resultasse para todos os expoentes, por muito grandes que estes fossem. Todos os matemáticos procuravam a elusiva prova geral, mas, infelizmente, apenas iam encontrando provas de casos particulares de expoentes.
O algorista
Um algorista é uma pessoa que cria sistemas de computação, ou algoritmos. Uma pessoa assim era o prolífico matemático suíço Leonhard Euler, que, segundo se dizia, era capaz de calcular tão naturalmente como as outras pessoas respiram. Euler, porém, foi muito mais do que uma calculadora ambulante. Foi o mais produtivo cientista suíço de todos os tempos e um matemático que escreveu tantos volumes de trabalho que o governo suíço criou um fundo especial para coligir todas as suas obras. Diz-se que produzia trabalhos matemáticos entre duas chamadas para jantar no seu grande lar.
Leonhard Euler nasceu em Basileia em 15 de Abril de 1707. No ano seguinte a família mudou-se para a aldeia de Riechen, onde o pai se tornou pastor calvinista. Quando o jovem Leonhard foi para a escola, o pai encorajou-o a seguir o estudo da teologia, de modo que, eventualmente, pudesse assumir o seu lugar de pastor da aldeia. Todavia, Euler revelava sinais de um futuro mais promissor na matemática, em que foi ensinado por Johannes Bernoulli, um matemático suíço bastante conhecido na época. Daniel e Nicolaus Bernoulli, dois jovens membros da grande família de matemáticos Bernoulli, tornaram-se bons amigos dele. E convenceram os pais de Leonhard a deixarem-no seguir matemática, visto dar sinais de poder vir a tornar-se um grande matemático. Leonhard, no entanto, continuou com a teologia, além da matemática, pelo que os sentimentos e costumes religiosos acabariam por fazer parte da sua vida.
Naquele tempo a investigação matemática e científica na Europa não tinha normalmente lugar nas universidades, como sucede hoje em dia. As universidades dedicavam-se mais a ensinar e não havia muito tempo para outras actividades. No século xviii a investigação era feita principalmente em academias reais, onde os monarcas sustentavam os principais cientistas da época na sua procura de conhecimento. Algum desse conhecimento era aplicado e ajudaria os governos a melhorarem o estado das respectivas nações. Outra investigação era mais «pura», isto é, investigação por curiosidade — para o avanço do conhecimento humano. A realeza sustentava esta investigação generosamente e os cientistas que trabalhavam nas academias conseguiam levar vidas confortáveis.
Quando acabou os estudos de matemática, assim como os de teologia e hebraico, na Universidade de Basileia, Euler concorreu a um cargo de professor. Apesar dos importantes trabalhos que já tinha realizado, foi recusado. Entretanto, os seus dois amigos Daniel e Nicolaus foram nomeados investigadores matemáticos na Academia Real de Sampetersburgo, na Rússia. Os dois mantiveram-se em contacto com Leonhard e prometeram-lhe que, de alguma maneira, o levariam também. Um dia os dois Bernoullis escreveram uma carta urgente a Euler anunciando-lhe que havia uma vaga na secção médica da Academia de Sampetersburgo. Euler começou imediatamente a estudar fisiologia e medicina em Basileia. Medicina era algo que não lhe interessava muito, mas queria desesperadamente um emprego e esperava, deste modo, juntar-se aos dois amigos, que tinham excelentes posições e se limitavam a fazer investigação, na Rússia.
Euler encontrou matemática em tudo o que estudou, incluindo a medicina. O estudo da fisiologia do ouvido levou-o a uma análise matemática da propagação das ondas. De qualquer maneira, cedo recebeu um convite para ir para Sampetersburgo e em 1727 juntou--se aos dois amigos. Contudo, após a morte da mulher de Pedro, o Grande, Catarina, espalhou-se o caos pela academia, visto ter sido ela a grande apoiante da investigação. Na confusão, Leonhard Euler saiu da secção médica e conseguiu ver o seu nome listado na secção de matemática, onde pertencia por direiro. Durante seis anos não deu nas vistas para não detectarem o jogo e evitou todas as interacções sociais para não ter a decepção de ser descoberto. Durante este período trabalhou arduamente, produzindo volumes de trabalho matemático importante. Em 1733 foi promovido ao principal cargo matemático da academia. Aparentemente, Euler era uma pessoa que podia trabalhar em qualquer lado, pelo que, à medida que a família crescia, chegava a trabalhar muitas vezes em matemática enquanto segurava um bebé no outro braço.
Quando Anna Ivanova, sobrinha de Pedro, o Grande, se tornou imperatriz da Rússia, começou um período de terror e Euler escondeu-se mais uma vez no seu trabalho durante dez anos. Durante esse tempo trabalhou num problema difícil de astronomia, para o qual era oferecido um prémio em Paris. Um grande número de mate-máticos pediu vários meses de licença da academia para se dedicar ao problema. Euler resolveu-o em três dias. Mas pagou um preço caro pela concentração no exercício e ficou cego do olho direito.
Euler mudou-se para a Alemanha, para a Academia Real, mas não se deu bem com os Alemães, que gostavam de longas discussões filosóficas, que ele não apreciava. Catarina, a Grande, da Rússia, convidou Euler a voltar à Academia de Sampetersburgo e ele ficou mais do que contente por voltar. Nessa altura o filósofo Denis Diderot, ateu, estava de visita à corte de Catarina. A imperatriz pediu a Euler que argumentasse com Diderot sobre a existência de Deus. Diderot, entretanto, tivera conhecimento de que o famoso matemático tinha uma prova da existência de Deus. Euler aproximou-se de Diderot e disse gravemente: «Senhor, a + b/n = x; logo Deus existe!» Diderot, que não sabia nada de matemática*, desistiu e regressou imediatamente a França.
Durante a segunda estada na Rússia, Euler ficou cego do outro olho. Continuou, no entanto, a fazer matemática com a ajuda dos filhos, que escreviam por ele. O facto de ter ficado cego aumentou--lhe a capacidade mental de fazer cálculos matemáticos complicados de cabeça. Euler continuou a fazer trabalhos matemáticos durante dezassete anos e morreu enquanto brincava com o neto em 1783. Muitas das notações matemáticas hoje utilizadas são da autoria de Euler. Isto inclui o uso da letra i para o número imaginário básico, a raiz quadrada de -1. Euler adorava uma fórmula matemática, que considerava a mais bela, e mandou pô-la por cima dos portões da academia. A fórmula é:
eip + 1 = 0
Esta fórmula integra 1 e 0, que são básicos no nosso sistema numérico, as três operações matemáticas — adição, multiplicação e exponenciação —, os dois números naturais pi e e e ainda i, a base dos números imaginários. É também visualmente cativante.
As sete pontes de Königsberg
Euler era um visionário tão incrível em matemática que o seu trabalho pioneiro em números imaginários (a hoje chamada análise complexa) não foi a sua única inovação. Fez trabalhos pioneiros num ramo que, no nosso século, se tornaria indispensável no trabalho dos matemáticos — e em tentativas para resolver o mistério de Fermat. O ramo é a topologia, uma teorial visual de configurações espaciais que se mantêm intactas quando transformadas por funções contínuas. É o estudo das formas e configurações, algumas com geometria inesperada, que se estende a quatro, cinco ou mais dimensões, além do nosso mundo tridimensional normal. Visitaremos de novo esta fascinante área quando chegarmos à abordagem moderna do problema de Fermat, visto que a topologia — por mais que pareça não estar relacionada com a equação de Fermat — tem grande importância para a sua compreensão.
Antecipando o desenvolvimento da topologia, o contributo de Euler para este campo é o famoso problema das sete pontes de Kö-nigsberg. É o problema que iniciou o grande interesse pela topologia. No tempo de Euler havia sete pontes que atravessavam o rio Pregel em Königsberg. São apresentadas no diagrama que se segue.
Euler perguntou se seria ou não possível atravessar as sete pontes sem passar mais de uma vez por cada uma delas. Era impossível. Outros problemas estudados nos tempos modernos e que foram levantados devido ao interesse pelo problema das sete pontes são os vários problemas de coloração de mapas. Um cartógrafo desenha o mapa do mundo. Neste mapa cada país é colorido com cores diferentes para se distinguir dos vizinhos. Quaisquer dois países que se encontrem completamente separados entre si podem ser coloridos com a mesma cor. A questão consiste em saber qual o número mínimo de cores necessárias para que quaisquer dois países que se toquem não tenham a mesma cor. É claro que é um problema geral, não está limitado pela forma como se apresenta o mapa do mundo actual. A questão é, na realidade, a seguinte: dadas todas as configurações possíveis de mapas num plano, qual o número mínimo de cores que deve ser usado? Dadas as fronteiras entre estados na ex-Jugoslávia ou no Médio Oriente, com linhas muito irregulares entre entidades políticas, este problema geral torna-se relevante em aplicações.
Matematicamente, é um problema topológico. Em Outubro de 1852 Francis Guthrie estava a colorir um mapa da Inglaterra. Questionou-se então sobre o número mínimo de cores que teria de utilizar para diferenciar os condados. Ocorreu-lhe que deveriam ser quatro cores. Em 1879 foi feita uma demonstração de que eram, na verdade, quatro, mas mais tarde descobriu-se que a prova era falsa. Quase um século depois, em 1976, dois matemáticos, Haken e Appel, resolveram o que se tornara conhecido como o problema do mapa de quatro cores. Até hoje, no entanto, a prova é considerada controversa, por terem recorrido a trabalho computacional, e não a lógica matemática pura.
Gauss, o grande génio alemão
Um erro na demonstração de Euler para n = 3 (isto é, para cubos) foi corrigido por Carl Friedrich Gauss (1777-1855). Embora a maior parte dos matemáticos de renome dessa época fossem franceses, Gauss, sem dúvida o maior matemático do seu tempo — e indiscutivelmente de todos os tempos —, era inequivocamente alemão. Na verdade, nunca saiu da Alemanha, nem para uma visita. Gauss era neto de um camponês bastante pobre e filho de um operário de Brunswick. O pai era severo para com ele, mas a mãe protegeu-o e encorajou-o. O jovem Carl esteve também ao cuidado do tio Friedrich, irmão de Dorothea, mãe de Gauss. Este tio, que tinha mais posses do que os pais de Carl, adquiriu boa reputação no campo da tecelagem. Uma vez, tinha Carl 3 anos de idade, observou o tio a fazer a contabilidade do negócio. «Tio Friedrich», interrompeu ele, «esta conta está errada.» O tio ficou chocado. A partir desse dia, o tio fez tudo o que estava ao seu alcance para contribuir para a educação e bem-estar do jovem génio. Embora Gauss mostrasse ter grandes potencialidades na escola, o seu comportamento, por vezes, não era tão correcto. Um dia a professora puniu o jovem Gauss, obrigando-o a ficar na sala de aula até somar todos os números entre 1 e 100 enquanto os outros alunos iam brincar. Dois minutos depois Gauss, que tinha 10 anos, estava a brincar com os outros alunos. A professora ficou furiosa. «Carl Friedrich!», chamou a professora, «queres um castigo pior? Disse-te para ficares na sala até teres somado todos os números!» «Mas já os somei», disse ele, «está aqui a resposta.» Gauss entregou à professora um bocado de papel com a resposta certa escrita: 5050. Aparentemente, Gauss percebeu que podia escrever duas linhas de 101 números:
0 1 2 3 97 98 99 100
100 99 98 97 3 2 1 0
Verificando que a soma de cada coluna era 100, concluiu que não havia nada extenso para somar. Visto haver 101 colunas, a soma de todos os números era 101 × 100 = 10 100. Agora qualquer das linhas tinha a soma que ele pretendia — todos os números de 1 a 100. Visto que precisava apenas de uma das duas linhas, a resposta era metade de 10 100, ou seja 5050. Muito simples, pensou ele. A professora, no entanto, aprendeu a lição e nunca mais deu ao jovem Gauss um problema matemático como castigo.
Com 15 anos, Gauss teve aulas na Universidade de Brunswick com a ajuda do duque de Brunswick. Mais tarde o duque ajudou também o jovem matemático a entrar na famosa Universidade de Göttingen. Foi aí que em 30 de Março de 1796 Gauss escreveu a primeira página do seu famoso diário. O diário só tinha 19 páginas, mas nelas Gauss escreveu 146 breves afirmações de importantes e poderosos resultados matemáticos que tinha derivado. Mais tarde descobriu-se que quase todas as mais importantes ideias matemáticas publicadas por matemáticos em finais do século xviii e no século seguinte eram precedidas por uma das frases do diário não publicado de Gauss. O diário manteve-se escondido até ser encontrado na posse do neto de Gauss, em Hamlin, em 1898.
Os resultados de Gauss em teoria dos números, que eram partilhados com os matemáticos da sua época através de correspondência frequente, foram de grande importância em todas as tentativas dos matemáticos para provar o último teorema de Fermat. Muitos destes resultados foram encontrados num livro sobre a teoria dos números que Gauss publicou em latim em 1801, quando tinha 24 anos. O livro, Disquisitiones Arithmeticae, foi traduzido para francês e publicado em Paris em 1807, onde foi muito bem recebido. Foi considerado o trabalho de um génio. Gauss dedicou--o ao seu patrono, o duque de Brunswick.
Gauss foi também um estudante distinto de línguas clássicas. Quando entrou na universidade, já era perito em latim e o seu interesse pela filosofia precipitou uma crise na sua carreira. Deveria seguir o estudo de línguas ou de matemática? O ponto decisivo ocorreu em 30 de Março de 1796. De acordo com o diário, sabemos que nesse dia o jovem Gauss decidiu definitivamente especializar--se em matemática. Em matemática e estatística (onde tem o crédito de ter inventado o engenhoso método do mínimo de quadrados para encontrar uma linha que se adapte a um conjunto de dados) contribuiu para muitas áreas, mas acreditava que a teoria dos números era o coração de toda a matemática.
Mas por que razão o maior génio matemático do mundo nunca tentou demonstrar o último teorema de Fermat? H. W. M. Olbers, amigo de Gauss, escreveu-lhe uma carta de Bremen, datada de 7 de Março de 1816, em que lhe dizia que a Academia de Paris oferecia um grande prémio a quem conseguisse apresentar uma prova ou refutação do último teorema de Fermat. O amigo sugeriu-lhe que o dinheiro lhe faria certamente jeito. Nessa altura, assim como durante a sua carreira de matemático, Gauss recebia auxílio financeiro do duque de Brunswick, o que lhe permitia continuar o seu trabalho matemático sem ter necessidade de se empregar. Mas estava longe de ser rico. E, como Olbers sugeria, nenhum outro matemático tinha tanta habilidade ou experiência: «Parece-me, caro Gauss, que devias começar a trabalhar nisto», concluiu ele.
Mas não conseguiu motivar Gauss, que, possivelmente, sabia que o último teorema de Fermat era decepcionante. É provável que o grande génio da teoria dos números tenha sido o único matemático da Europa a perceber como seria difícil prová-lo. Duas semanas mais tarde Gauss enviou a Olbers a sua opinião sobre o último teorema de Fermat: «Estou muito reconhecido pelas notícias sobre o prémio de Paris. Mas confesso que o teorema de Fermat, enquanto afirmação isolada, tem pouco interesse para mim, visto que podia criar uma infinidade dessas proposições, que não poderia provar nem desmentir.» Ironicamente, Gauss deu grandes contributos para o ramo da matemática conhecido como análise complexa — uma área que incorpora os números imaginários em que Euler trabalhou. Os números imaginários teriam um papel decisivo no século xx para a compreensão do contexto do último teorema de Fermat.
Números imaginários
O campo* dos números complexos é um campo de números (ou corpo) baseado nos números reais usuais e nos chamados números imaginários, que eram conhecidos por Euler. Estes números surgiram quando os matemáticos procuravam definir como número a solução de uma equação como x2 + 1 = 0. Não existe solução «real» para esta simples equação, porque não há qualquer número real que, quando elevado ao quadrado, dê -1 — o número que, quando é adicionado a 1, dá 0. Mas, se de alguma forma conseguisse ser definida a raiz quadrada de um número negativo como sendo um número, então — embora não sendo um número real — seria a solução da equação.
A recta real dos números foi então alargada de modo a incluir números imaginários. Estes números são múltiplos da raiz quadrada de -1, denotada por i. Foram colocados na sua própria recta de números, perpendicular à recta real. Juntos, estes dois eixos dão- -nos o plano complexo. O plano complexo é apresentado a seguir. Tem muitas propriedades surpreendentes, como uma rotação ser a multiplicação por i.
O plano complexo é o mais pequeno campo (ou corpo) que contém as soluções de todas as equações de 2.o grau. Descobriu-se que é muito útil, até em aplicações de engenharia, mecânica de fluidos e outras áreas. Em 1811, décadas à frente do seu tempo, Gauss estava a estudar o comportamento de funções no plano complexo, tendo descoberto algumas propriedades fantásticas dessas funções, conhecidas como funções analíticas. Gauss percebeu que as funções analíticas tinham uma suavidade especial e que permitiam cálculos particularmente claros. As funções analíticas preservavam os ângulos entre linhas e arcos no plano — um aspecto que se tor-naria significativo no século xx. Algumas funções analíticas, chamadas formas modulares, seriam cruciais para novas abordagens do problema de Fermat.
Na sua modéstia, Gauss não publicou estes resultados impressionantes. Escreveu-os numa carta dirigida ao seu amigo Friedrich Wilhelm Bessel (1784-1846). Quando a teoria reemergiu anos depois sem o nome de Gauss ligado a ela, outros matemáticos ficaram com o crédito por trabalho sobre as mesmas funções analíticas que Gauss compreendia tão bem.
Sophie Germain
Certo dia Gauss recebeu uma carta de um tal «Monsieur Leblanc.» Leblanc estava fascinado com o livro de Gauss, Disquisitiones Arithmeticae, e enviou-lhe alguns resultados de teoria aritmética. Através das cartas seguintes sobre assuntos matemáticos, Gauss ganhou muito respeito por Mr. Leblanc e pelo seu trabalho. Esta admiração não diminuiu quando Gauss descobriu que o nome verdadeiro do correspondente não era Leblanc, nem sequer que o escritor era «M.» O matemático que escrevia tão eloquentemente a Gauss era um das poucas mulheres activas na profissão nesse tempo, Sophie Germain (1776-1831). De facto, após descobrir a verdade, Gauss escreveu-lhe:
Mas como posso descrever-lhe a minha admiração e espanto ao verificar que o meu estimado correspondente Mr. Leblanc se transformou nesta ilustre personagem que me deu tão brilhante exemplo do que achava difícil de acreditar [...] [Uma carta de Gauss a Sophie Germain, escrita em Brunswick no dia do aniversário de Gauss, como está indicado em francês no fim da sua carta: «Bronsvic ce 30 avril 1807 jour de ma naissance.»]
Sophie Germain usou um nome de homem para evitar os preconceitos contra as mulheres cientistas prevalecentes naqueles tempos e para ganhar a séria atenção de Gauss. Foi um dos mais importantes matemáticos a tentar demonstrar o último teorema de Fermat e a dar um considerável avanço ao problema. O teorema de Sophie Germain, que lhe deu muito reconhecimento, indica que, se existe uma solução da equação de Fermat para n = 5, então os três números têm de ser divisíveis por 5. O teorema separou o último teorema de Fermat em dois casos: o primeiro caso para números não divisíveis por 5 e o segundo caso para núme- ros que o são. O teorema foi generalizado a outros expoentes e Sophie Germain legou um teorema geral que provava o último teorema de Fermat para todos os números primos, n, menores do que 100 e para o primeiro caso. Foi um resultado importante, que reduziu os exemplos possíveis onde o último teorema de Fermat poderia falhar para primos menores do que 100 e para o segundo caso10.
Sophie Germain teve de desvendar a verdadeira identidade quando Gauss pediu ao amigo «Leblanc» um favor. Em 1807 Napoleão ocupava a Alemanha. Os Franceses impunham taxas de guerra aos Alemães e determinavam o que cada residente devia baseados em critérios aparentes. Como proeminente professor e astrónomo em Göttingen, haviam determinado que Gauss devia 2000 francos — muito além das suas posses. Um grande número de matemáticos franceses amigos do grande Gauss ofereceu ajuda, mas ele recusou-se a aceitá-la. Gauss queria que alguém intercedesse em seu nome junto do general francês Pernety em Hano-ver.
Escreveu então ao amigo Monsieur Leblanc pedindo-lhe se poderia contactar o general francês em seu nome. Quando Sophie Germain fez o que lhe tinha sido pedido, tornou-se claro quem ela era. Mas Gauss ficou fascinado, como se percebe pela sua carta, e a correspondência continuou a abordar profundamente muitos tópicos matemáticos. Infelizmente, os dois nunca se encontraram. Sophie Germain morreu em Paris em 1831, antes de a Universidade de Göttingen a presentear com um doutoramento honorário recomendado por Gauss.
Sophie Germain tem o crédito de muitos outros feitos, além dos seus contributos para a solução do último teorema de Fermat. Contribuiu para as teorias matemáticas da acústica e da elasticidade e para outras áreas de matemática aplicada e pura. Na teoria dos números também provou teoremas em que os números primos podem levar a equações resolúveis.
O ardente cometa de 1811
Gauss fez muitos trabalhos importantes em astronomia, determinando a órbita dos planetas. Em 22 de Agosto de 1811 observou no céu à noite um cometa pouco visível. Conseguiu prever a trajectória precisa do cometa na direcção do Sol. Quando o cometa se tornou claramente visível e resplandecia pelo céu, os povos supersticiosos e oprimidos da Europa viram-no como um sinal dos céus que indicava o declínio de Napoleão. Gauss viu no cometa a realização da órbita que ele tinha previsto com grande precisão numérica. Mas as massas incultas estavam também certas — no ano seguinte Napoleão foi derrotado e retirou-se da Rússia. Gauss achou graça. Não estava descontente por ver o imperador derrotado após os Franceses lhe terem extorquido tão altas somas, assim como aos seus compatriotas.
O discípulo
O matemático norueguês Niels Henrik Abel visitou Paris em Outubro de 1826. Aí tentou conhecer outros matemáticos — Paris era nessa época uma meca da matemática. Uma das pessoas que mais impressionaram Abel foi Peter Gustav Lejeune Dirichlet (1805-1859), um prussiano de visita a Paris que também se acercara do jovem norueguês, pensando que também ele fosse prussiano. Abel ficou bastante impressionado pelo facto de Dirichlet ter demonstrado o último teorema de Fermat para n = 5. Numa carta dirigida a um amigo mencionaria que isso também havia sido feito por Adrien-Marie Legendre (1752-1833). Abel descreveu Legendre como sendo bastante educado, mas muito velho. Legendre demonstrara o resultado de Fermat para n = 5 de forma diferente de Dirichlet dois anos depois. Infelizmente, isto acontecia frequentemente a Legendre — muito do seu trabalho era substituído pelo trabalho de matemáticos mais jovens.
Dirichlet era amigo e discípulo de Gauss. Quando foi publicado o grande livro de Gauss, o Disquisitiones Arithmeticae, esgotou rapidamente. Até matemáticos cujo trabalho estava relacionado com o de Gauss não conseguiram obter um exemplar. E muitos que o conseguiram não compreenderam a natureza profunda do trabalho de Gauss. Dirichlet conseguira um exemplar. Levava consigo o livro de Gauss nas suas muitas viagens a Paris, Roma e outros locais do continente. Aonde quer que fosse, Dirichlet dormia sempre com o livro debaixo da almofada. O livro de Gauss ficou conhecido como o livro dos sete selos: o dotado Dirichlet é conhecido como a pessoa que abriu os sete selos. Dirichlet fez mais do que ninguém para interpretar e explicar o livro do seu grande mentor ao resto do mundo.
Além de ampliar e explicar o Disquisitiones, assim como provar o último teorema de Fermat para o expoente 5, Dirichlet fez mais trabalhos matemáticos. Um resultado interessante que Dirichlet demonstrou estava relacionado com a seguinte sucessão de números: a, a + b, a + 2b, a + 3b, a + 4b, ... etc., onde os números a e b são inteiros primos entre si, ou seja, não têm divisor comum entre eles, excepto o 1 (isto é, são números como 2 e 3 ou 3 e 5; ao contrário de números como 2 e 4, que têm o divisor comum 2, ou os números 6 e 9, cujo divisor comum é o 3). Dirichlet provou que esta sucessão de números contém infinitos números primos. O que é espantoso na demonstração de Dirichlet é o facto de ter utilizado uma área da matemática que naquele tempo parecia bastante distante da teoria dos números, onde o problema se coloca por direito. Nesta prova Dirichlet usou a chamada análise matemática, uma área importante da matemática que contém o cálculo matemático. A análise lida com coisas contínuas: funções contínuas na recta real, que parecem bastante distantes do mundo discreto dos inteiros, e números primos, que estão bem dentro da teoria dos números.
Seria uma ponte semelhante entre dois ramos aparentemente distintos da matemática que ajudaria na filosofia moderna de resolução do mistério de Fermat já no século xx. Dirichlet era um pioneiro ousado nesta área de unificar ramos distintos da matemática. O estudante herdou mais tarde a posição do professor. Quando Gauss morreu, em 1855, Dirichlet abandonou a sua prestigiada posição em Berlim para aceitar a honra de substituir Gauss em Göttingen.
Os matemáticos de Napoleão
O imperador dos Franceses adorava matemáticos, embora ele próprio não o fosse. Dois matemáticos que lhe eram chegados eram Gaspard Monge (1746-1818) e Joseph Fourier (1768-1830). Em 1798 Napoleão levou os dois matemáticos com ele ao Egipto para o ajudarem a «civilizar» aquele antigo país.
Fourier nasceu em Auxerre, em França, em 21 de Março de 1768, mas ficou órfão aos 8 anos e foi ajudado pelo bispo local a entrar na escola militar. Com 12 anos apenas, Fourier demonstrava grandes potencialidades e já escrevia sermões para dignitários da Igreja em Paris, os quais os liam como se fossem deles. A revolução francesa de 1789 salvou o jovem Fourier de uma vida como padre. Em vez disso, tornou-se professor de matemática e um grande apoiante da revolução. Quando a revolução desembocou no terror, Fourier ficou repugnado com a sua brutalidade. Serviu-se então da sua eloquência, desenvolvida ao longo de vários anos a escrever sermões para outros, para falar contra os excessos. Fourier também usou as suas grandes capacidades de falar em público para ensinar matemática nas melhores escolas de Paris.
Fourier interessava-se por engenharia, matemática aplicada e física. Na Escola Politécnica fez grandes pesquisas nessas áreas, tendo muitos dos seus trabalhos sido apresentados à academia. A sua reputação chegou aos ouvidos de Napoleão, e em 1798 o imperador pediu a Fourier que o acompanhasse, a bordo do seu navio-almirante, com a frota francesa de 500 navios que se dirigia para o Egipto. Fourier faria parte da legião da cultura. O objectivo da legião era «enriquecer os povos do Egipto com todos os benefícios da civilização europeia». Ou seja, levar cultura a estes povos enquanto estavam a ser conquistados pelas forças de invasão. No Egipto, os dois matemáticos fundaram o Instituto Egípcio, e Fourier permaneceu aí até 1802, altura em que regressou à França e se tornou prefeito de uma região perto de Grenoble, onde foi responsável por muitos trabalhos públicos, como a drenagem de áreas pantanosas e o combate à malária. Não obstante todo esse trabalho, Fourier, o matemático que se tornou administrador, conseguiu arranjar tempo para ter os seus melhores pensamentos matemáticos. A obra-prima de Fourier foi a teoria matemática do calor, respondendo à importante questão «como é conduzido o calor?». Este trabalho granjeou-lhe um grande prémio da academia em 1812. Parte do trabalho baseava-se em experiências que tinha feito nos desertos do Egipto durante a estada nesse país. Alguns dos seus amigos acreditavam que essas experiências, incluindo a exposição ao calor intenso desenvolvido em salas fechadas, contribuíram para apressar a sua morte, com 62 anos de idade.
Fourier passou os últimos anos da sua vida a contar histórias sobre Napoleão e a sua associação com ele tanto no Egipto como depois da fuga de Napoleão de Elba. Foi, porém, a investigação de Fourier sobre o calor que o imortalizou, por ter desenvolvido uma teoria importante sobre funções periódicas. Uma série de tais funções periódicas, quando usada de uma forma particular para calcular outra função, chama-se série de Fourier.
Funções periódicas
O melhor exemplo de uma função periódica é o nosso relógio. Minuto a minuto, o ponteiro maior move-se circularmente e, decorridos sessenta minutos, volta ao local de partida. Depois continua e, passados exactamente outros sessenta minutos, retorna à mesma posição. (É claro que o ponteiro das horas vai mudando de posição à medida que as horas passam.) O ponteiro dos minutos num relógio é uma função periódica. O seu período é de exactamente sessenta minutos. De uma certa forma, o espaço de todos os minutos da eternidade — o conjunto infinito de minutos desde agora até sempre — pode ser descrito pelo ponteiro maior do relógio na margem do mostrador do relógio:
Para indicar outro exemplo: uma locomotiva a deslocar-se num caminho de ferro transfere a potência do motor para as rodas com movimentos do braço de cima para baixo ao longo da roda de forma que ela rode. Em cada volta completa da roda o braço volta à posição original — também este braço é periódico. A altura vertical do braço, quando o raio da roda da locomotiva é uma unidade, é definida como sendo a função seno. Esta é a função trigonométrica elementar ensinada nas escolas. A função coseno é a medida horizontal do braço. Tanto o seno como o coseno são funções do ângulo que o braço faz com a linha horizontal que passa no centro da roda, como pode ver-se a seguir:
À medida que a locomotiva se desloca para a frente, a altura vertical do braço desenha um padrão de onda, como pode ver-se em cima. Este padrão é periódico, sendo esse período de 360 graus. De início a altura do braço é 0, depois sobe em forma de onda até chegar a 1, aí desce até chegar outra vez a 0, após o que desce para valores negativos até 1, decrescendo então a sua magnitude negativa para 0. E depois o ciclo recomeça indefinidamente.
O que Fourier descobriu foi que a maior parte das funções pode ser estimada a qualquer grau de precisão pela soma de muitas funções de seno e coseno (teoricamente, é necessário um número infinito de funções para uma precisão quase perfeita). É este o famoso resultado das séries de Fourier. Esta expansão de uma função em termos da soma de muitas funções de senos e cosenos é útil em muitas aplicações matemáticas, quando a expressão matemática inicial é difícil de estudar, mas a soma de senos e cosenos, todos multiplicados por factores diferentes, pode ser manipulada e avaliada — e isto é especialmente prático num computador. A área da matemática conhecida como análise numérica preocupa-se com métodos computacionais para avaliar funções e outras quantidades numéricas. A análise de Fourier é uma parte substancial da análise numérica e consiste em técnicas para estudar problemas difíceis, muitos fornecidos por uma simples expressão matemática, usando as séries de Fourier de funções periódicas. Após o trabalho pioneiro de Fourier, as expansões que usavam outras funções simples, nomeadamente polinomiais (isto é, potências crescentes de uma variável: quadrados, cubos, etc.), foram também desenvolvidas. Quando uma máquina calculadora calcula a raiz quadrada de um número, fá-lo por uma aproximação baseada num desses métodos. A série de Fourier de senos e cosenos é especialmente útil no cálculo relacionado com fenómenos que são naturalmente a soma de elementos periódicos — por exemplo, a música. Uma obra musical pode ser decomposta nos seus harmónicos. As marés, as fases da Lua e as manchas solares são exemplos de fenómenos simples e periódicos.
Embora as aplicações das funções periódicas de Fourier a fenómenos naturais e os seus métodos computacionais sejam de grande importância, é surpreendente o facto de as séries e a análise de Fourier terem aplicações úteis em matemática pura, um campo que nunca motivou particularmente Fourier. No século xx as séries de Fourier desempenharam na teoria dos números o papel de ferramentas para transformar elementos matemáticos de uma área noutra no trabalho de Goro Shimura. (A demonstração da conjectura de Shimura era o ponto crucial da prova do último teorema de Fermat.) As extensões das funções periódicas de Fourier ao plano complexo, ligando estas duas áreas da matemática, levariam à descoberta de funções automórficas e de formas modulares — que tiveram um impacto crucial na prova do último teorema de Fermat através do trabalho de outro matemático francês, Henri Poincaré, no início do século xx.
Uma prova fraca
Na reunião da Academia de Paris de 1 de Março de 1847 o matemático Gabriel Lamé (1795-1870) anunciou exaltadamente que tinha obtido uma prova geral para o último teorema de Fermat. Até aí haviam sido atacadas apenas potências específicas, n, e fora apresentada uma prova para o teorema nos casos n = 3, 4, 5 e 7. Lamé indicou ter uma abordagem geral do problema que resul- taria para qualquer potência n. O método de Lamé consistia em factorizar o lado esquerdo da equação, xn + yn, em factores lineares usando números complexos. Lamé informou então modestamente que não deveria ser-lhe atribuída toda a glória, visto que o mé- todo que sugeria lhe fora mostrado por Joseph Liouville (1809- -1882). Mas Liouville subiu ao pódio após Lamé e afastou qualquer glória. Lamé não tinha provado o último teorema de Fermat, informava Liouville, porque a factorização que sugerira não era única (isto é, havia muitas maneiras de fazer a factorização, razão por que não havia solução). Foi uma tentativa galante, uma de muitas, mas que não teve frutos. Contudo, a ideia de factorização, isto é, dividir a equação num produto de factores, seria tentada mais vezes.
Números ideais
A pessoa seguinte a tentar a factorização foi Ernst Eduard Kummer (1810-1893) — o homem que ficou mais perto do que ninguém do seu tempo de uma solução geral do problema de Fermat. Kummer, de facto, inventou uma teoria matemática inteira, a teoria dos números ideias, na tentativa de demonstrar o último teorema de Fermat.
A mãe de Kummer, que ficou viúva quando o filho tinha apenas 3 anos de idade, trabalhava muito para assegurar ao filho uma boa educação. Aos 18 anos entrou na Universidade de Halle, na Alemanha, para estudar teologia e preparar-se para uma vida na Igreja. Um professor de matemática com entusiasmo por álgebra e teoria dos números fez com que o jovem Kummer se interessasse por essas mesmas áreas e pouco depois abandonasse a teologia para estudar matemática. No seu terceiro ano de estudante, o jovem Kummer resolveu um problema matemático difícil para o qual tinha sido oferecido um prémio. A seguir a este êxito foi-lhe outorgado um doutoramento em matemática com a idade de 21 anos.
No entanto, Kummer não conseguiu encontrar uma vaga numa universidade e teve de aceitar um trabalho como professor no seu velho ginásio (liceu). Aí continuou durante dez anos. Durante este período, Kummer fez muita investigação, que publicou e escreveu em cartas dirigidas a vários matemáticos importantes do seu tempo. Os amigos perceberam como era triste que um matemático tão dotado passasse a vida a ensinar matemática no liceu. Com a ajuda de alguns matemáticos eminentes, Kummer conseguiu o lugar de professor na Universidade de Breslau. Um ano depois, em 1855, Gauss morria. Dirichlet ocupou o lugar de Gauss em Göttingen, deixando para trás o velho emprego na prestigiosa Universidade de Berlim. Kummer foi escolhido para substituir Dirichlet em Berlim, posição em que se manteve até à reforma.
Kummer trabalhou numa vasta gama de problemas matemáticos, desde os muito abstractos até aos muito aplicados — incluindo matemática de aplicações militares. Mas o seu nome ficou na história devido principalmente ao extenso trabalho sobre o último teorema de Fermat. O matemático francês Augustin-Louis Cauchy (1789-1857) pensou, em várias ocasiões, ter encontrado uma prova geral para o problema de Fermat. Mas o irrequieto e descuidado Cauchy percebeu em cada tentativa que o problema era muito maior do que ele pensava. Os campos de números com que trabalhava nunca tinham a propriedade de que necessi-tava. Cauchy desistiu do problema e começou a trabalhar noutras coisas.
Kummer tornou-se obcecado pelo último teorema de Fermat, mas as tentativas para encontrar uma solução levaram-no ao caminho inútil já percorrido por Cauchy. Todavia, em vez de desistir quando percebeu que os campos de números que utilizava não tinham uma ou outra propriedade necessária, decidiu inventar novos números que tivessem a propriedade de que precisava. A estes chamou «números ideais». Kummer desenvolveu então uma nova teoria, que usou nas suas tentativas para provar o último teorema de Fermat. A certa altura pensou ter finalmente uma prova geral, mas, infelizmente, faltava-lhe ainda algo.
Mesmo assim, Kummer conseguiu avanços espantosos no seu ataque ao problema de Fermat. Graças ao seu trabalho com números ideais, conseguiu provar o último teorema de Fermat para uma vasta classe de números primos com expoente n. Assim, conseguiu provar que o último teorema de Fermat era verdadeiro para um número infinito de expoentes, nomeadamente os que são divisíveis por números primos «regulares». Os números primos «irregulares», no entanto, escapavam-lhe. Os únicos números primos irregulares menores do que 100 são o 37, o 59 e o 67. Kummer trabalhou então separadamente no problema destes números primos irregulares e, finalmente, conseguiu provar o teorema de Fermat para estes números. Por volta de 1850 os incríveis avanços de Kummer permitiam que o último teorema de Fermat fosse já conhecido como verdadeiro para todos os expoentes menores do que n = 100, assim como para infinitos múltiplos de números primos neste intervalo. Isto foi um grande empreendimento, mesmo não sendo uma prova geral e deixando de fora infinitos números para os quais não se sabia se o teorema era verdadeiro.
Em 1816 a Academia de Ciências francesa ofereceu um prémio a quem provasse o último teorema de Fermat. Em 1850 ofereceu mesmo uma medalha de ouro e 3000 francos ao matemático que conseguisse demonstrar o último teorema de Fermat. Em 1856, porém, decidiu retirar o prémio, visto não ser provável que uma solução do problema de Fermat estivesse iminente. Em vez disso, decidiu oferecer o prémio a Ernst Eduard Kummer «pelas suas maravilhosas investigações sobre os números complexos compostos de raízes da unidade e inteiros». Assim, Kummer recebeu um prémio ao qual nunca tinha concorrido.
Kummer continuou os seus incansáveis esforços na tentativa de provar o último teorema de Fermat, parando essa pesquisa apenas em 1874. Kummer fez também trabalhos pioneiros na geometria do espaço quadridimensional. Alguns dos resultados são úteis no campo da física moderna, conhecida como mecânica quântica. Kummer morreu de gripe quando tinha pouco mais de 80 anos, em 1893.
O sucesso de Kummer com os números ideais é ainda mais apreciado pelos matemáticos do que os avanços com que contribuiu para a solução do problema de Fermat com estes números. O facto de esta notável teoria ser inspirada por tentativas para resolver o último teorema de Fermat mostra como novas teorias podem ser desenvolvidas por tentativas de resolução de problemas particulares. De facto, a teoria de Kummer sobre os números ideais levou ao que hoje se conhece sob o nome de «ideais», que têm tido impacto no trabalho de Wiles e de outros matemáticos do século xx que procuram a resolução do problema de Fermat.
Outro prémio
Na Alemanha, em 1908, foi oferecido o Prémio Wolfskehl, no valor de 100 000 marcos, a quem conseguisse encontrar uma prova geral do último teorema de Fermat. No primeiro ano do prémio foram apresentadas 621 «soluções». Eram todas falsas. Nos anos seguintes foram apresentadas, com o mesmo efeito, milhares de outras «soluções». Pouco depois de 1920 a hiperinflação alemã reduziu o valor real do prémio de 100 000 marcos a nada. Mas, mesmo assim, continuaram a chover falsas provas do último teorema de Fermat.
Geometria sem Euclides
No século xix começaram a ter lugar novos desenvolvimentos em matemática. Janos Bolyai (1802-1860) e Nicolas Ivanovitch Lobachevsky (1793-1856), um húngaro e um russo, respectivamente, mudaram a face da geometria. Ao desfazerem-se do axioma de Euclides, relativo a duas linhas paralelas que nunca se encontram, conseguiram formular independentemente um universo geométrico que mantinha muitas das propriedades euclidianas, mas que possibilitava que duas linhas paralelas se encontrassem no infinito. Esta nova geometria pode ser vista, por exemplo, numa esfera como o globo. Localmente, duas linhas longitudinais são paralelas. Mas, na realidade, à medida que as linhas se aproximam do pólo norte, encontram-se aí. A nova geometria resolve muitos proble-mas e explica situações que, até à data, pareciam misteriosas e sem solução.
Beleza e tragédia
A álgebra abstracta, um campo derivado da familiar álgebra ensinada nas escolas como sistema de resolução de equações, foi desenvolvida no século xix. Nesta área a maravilhosa teoria de Galois tem boa fama.
Évariste Galois nasceu em 1811 na pequena vila de Bourg-la- -Reine, nos arredores de Paris. O pai era aí presidente da câmara e um firme republicano. O jovem Évariste cresceu com os ideais de democracia e liberdade. Infelizmente, a maior parte da França estava a ir na direcção oposta. A revolução francesa veio e foi-se, e o mesmo sucedeu com Napoleão. Mas os sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade ainda não tinham sido atingidos. E os monárquicos estavam contentes com uma marcha a trás em França, com um Bourbon uma vez mais coroado rei dos Franceses — agora para governar juntamente com os representantes do povo.
A vida de Évariste estava imersa nos ideais da revolução. Era um bom ideólogo e fez alguns discursos mobilizadores aos republicanos. Como matemático, por outro lado, era um génio de capacidades incomparáveis. Quando era adolescente, Galois aprendeu todas as teorias de álgebra e equações conhecidas dos matemáticos do seu tempo e — ainda enquanto estudante — desenvolveu o seu próprio sistema completo, conhecido hoje como a teoria de Galois. Infelizmente, não iria receber qualquer reconhecimento na sua tragicamente curta vida. Galois ficava acordado à noite no colégio interno enquanto todos dormiam, escrevendo a sua teoria. Man-dou-a ao matemático Cauchy, que pontificava na Academia de Ciências francesa na esperança de que este o ajudasse a publicar a teoria. Contudo, Cauchy não estava apenas muito ocupado, era também arrogante e descuidado. E o brilhante manuscrito de Galois foi parar a um caixote de lixo, sem ser lido.
Galois tentou de novo, com o mesmo resultado. Entretanto, falhou os exames de admissão na Escola Politécnica, onde a maior parte dos matemáticos franceses célebres estudaram. Galois tinha o hábito de fazer tudo de cabeça. Nunca tirava notas, nem escrevia nada, a não ser os resultados finais. Este método concentrava-se em ideias, em vez de pormenores. O jovem Évariste tinha pouca paciência, ou interesse, com os pormenores. Era a ideia geral, a maravilha da teoria global, que lhe interessava. Como consequência, Galois não estava no seu melhor quando fez um exame num quadro preto. E foi isto que fez com que falhasse duas vezes a tentativa de entrar na escola dos seus sonhos. Por duas vezes em frente de um quadro não conseguiu ter sucesso no que escreveu e ficou irritado quando lhe perguntaram pormenores que, simplesmente, não considerava importantes. Era uma tragédia que um jovem tão espantosamente inteligente fosse questionado por examinadores menos capazes, que não conseguiam compreender as suas ideias profun-das e que tomavam a sua relutância de fornecer pormenores por ignorância. Quando percebeu que iria falhar na segunda e última tentativa possível e que os portões da escola lhe seriam fechados para sempre, Galois atirou o apagador do quadro à cara do examinador.
Galois teve de se contentar com a segunda melhor escolha, a École Normale. Mas mesmo aí não teve sucesso. O pai de Galois, o presidente da Câmara de Bourg-la-Reine, era alvo de intrigas na vila. Um padre sem escrúpulos fez circular versos porno- gráficos, assinando-os com o nome do pai de Galois. Esta per-seguição fez com que o pai de Galois perdesse a confiança e pensasse que o mundo lhe queria mal. Perdendo lentamente o contacto com a realidade, foi para Paris. Aí, num apartamento não muito longe do local onde o filho estudava, suicidou-se. O jovem Galois nunca recuperou desta tragédia. Obcecado com a causa perdida da revolução de 1830 e frustrado com o director da escola, que considerava um apoiante firme da monarquia e da Igreja, Galois escreveu uma carta severa a criticar o director. Foi inspirado a fazê-lo depois de três dias de distúrbios nas ruas, quando os estudantes de Paris se revoltaram contra o regime. Galois e os colegas ficaram fechados na escola, impossibilitados de saírem. O furioso Galois enviou a ríspida carta em que criticava o director da escola à Gazette des Écoles. Em consequência, foi expulso da escola. Mas Galois não ficou desencorajado — escreveu uma segunda carta à Gazette e recomendou aos estudantes da escola que se fizessem ouvir, falando de honra e consciência. Não recebeu resposta.
Após ter saído da escola, Galois começou a dar aulas privadas de matemática. Queria ensinar as suas próprias teorias matemáticas fora das escolas francesas quando tinha apenas 19 anos. Mas não conseguia encontrar estudantes para ensinar — as suas teorias eram demasiado avançadas em relação ao seu tempo.
Confrontado com um futuro incerto e condenado a não conseguir uma educação decente, Galois entrou desesperadamente para o ramo de artilharia da Guarda Nacional francesa. Dentro da Guarda Nacional, comandada no passado por Lafayette, havia muitos elementos liberais que partilhavam a filosofia política do jovem Galois. Enquanto esteve na Guarda Nacional, fez uma última tentativa para publicar o seu trabalho matemático. Escreveu um trabalho sobre a solução geral de equações — hoje reconhecido como a bela teoria de Galois — e mandou-o a Siméon-Denis Poisson (1781-1840), da Academia de Ciências francesa. Pois- son leu o trabalho, mas determinou que era «incompreensível». Mais uma vez, o jovem adolescente estava tão avançado em re-lação aos outros matemáticos franceses do seu tempo que as suas elegantes novas teorias eram demasiado complicadas para eles. Nessa altura decidiu abandonar a matemática e tornou-se revolucionário a tempo inteiro. Disse que, se fosse necessário um corpo para fazer com que as pessoas se envolvessem na revolução, daria o seu.
Em 9 de Maio de 1831, duzentos jovens republicanos organizaram um banquete no qual protestaram contra a ordem real de dissolver a artilharia da Guarda Nacional. Foram feitos brindes à revolução francesa e aos seus heróis, assim como à nova revolução de 1830. Galois levantou-se e propôs um brinde. Ele disse «a Luís Filipe», o duque de Orleães, que era agora rei dos Franceses. Enquanto dizia isto, levantando o copo, Galois estava também a segurar um canivete aberto na outra mão. Isto foi interpretado como uma ameaça à vida do rei e causou distúrbios. No dia seguinte Galois foi preso.
No julgamento por ter ameaçado a vida do rei, o advogado de Galois afirmou que este, enquanto segurava o canivete, tinha dito na realidade «a Luís Filipe, se ele se tornar traidor». Alguns dos amigos de Galois da artilharia que estavam presentes testemunharam a seu favor e o júri considerou-o inocente. Galois recuperou o canivete da mesa das provas, fechou-o, pô-lo no bolso e saiu do tribunal. Mas não estaria em liberdade por muito tempo. Um mês depois foi de novo preso por ser um republicano perigoso e mantido na prisão sem acusação enquanto as autoridades procuravam uma acusação que fosse válida contra ele. Finalmente, encontraram uma — usar o uniforme da artilharia dissolvida. Galois foi julgado por este crime e condenado a seis meses de cadeia. Os monárquicos estavam contentes por, finalmente, po-rem atrás das grades um jovem que consideravam um grande inimigo do regime. Galois obteve liberdade condicional passado algum tempo e foi realojado numa casa de reabilitação. O que aconteceu de seguida está aberto a discussão. Enquanto em liberdade condicional, Galois conheceu uma jovem e apaixonou- -se. Alguns pensam que foi enganado pelos seus inimigos monárquicos, que queriam pôr fim às suas actividades revolucionárias de uma vez por todas. De qualquer modo, a mulher com quem se envolveu era de virtude duvidosa (une coquette de bas étage). Mal se tornaram amantes, surgiu um monárquico a «defender a honra da donzela» e desafiou Galois para um duelo. O jovem matemático não teve outra saída. Tentou tudo o que podia para dissuadir o homem de continuar com o duelo, mas sem resultado.
Na véspera do duelo Galois escreveu várias cartas. Estas car- tas dirigidas aos amigos ajudaram a concluir que tinha sido enganado pelos monárquicos. Disse que tinha sido desafiado por dois monárquicos e que o fizeram jurar pela sua honra que nada diria aos amigos republicanos sobre o duelo. «Vou morrer vítima de uma infame moça namoradeira. Será numa briga miserável que a minha vida se extinguirá. Oh, porquê morrer por uma coisa tão trivial, porquê morrer por algo tão desprezível!» Mas a maior parte da noite antes do duelo Galois pôs cuidadosamente em papel toda a sua teoria matemática e enviou-a ao seu amigo Auguste Chevalier. Na madrugada de 20 de Maio de 1832 encontrou-se com o seu adversário num campo deserto. Foi atingido no estômago e deixado em agonia sozinho no campo. Ninguém se preocupou em chamar um médico. Finalmente, um camponês encontrou-o e levou-o ao hospital, onde morreu, na manhã seguinte. Tinha 20 anos de idade. Em 1846 o matemático Joseph Liouville editou e publicou a elegante teoria matemática de Galois num jornal científico. A teoria de Galois iria fornecer o passo crucial para o método usado século e meio depois para atacar o último teorema de Fermat.
Outra vítima
A falta de cuidado e a arrogância de Cauchy arruinaram a vida de pelo menos mais um outro matemático brilhante. Niels Henrik Abel (1802-1829) era filho do pastor da aldeia de Findö, na Noruega. Quando tinha 16 anos, um professor encorajou-o a ler o famoso livro de Gauss, Disquisitiones. Abel até teve sucesso em preencher alguns buracos nalgumas provas de certos teoremas. Dois anos depois, porém, o pai faleceu e o jovem Abel teve de adiar o estudo da matemática e de concentrar a sua capacidade em suportar a família. Apesar das grandes dificuldades que enfrentava, Abel conseguiu continuar alguns estudos sobre matemática e fez uma descoberta matemática notável com a idade de 19 anos. Publicou em 1824 um trabalho no qual provava que nenhuma fórmula resolvente era possível para equações do 5.o grau. Abel conseguira resolver um dos problemas mais célebres do seu tempo. Apesar disso, ainda ninguém oferecera ao dotado e jovem matemático uma posição académica, de que, com poucos meios, tanto precisava para sustentar a família, pelo que enviou o trabalho a Cauchy para avaliação e uma possível publicação e reconhecimento. O trabalho que Abel enviou a Cauchy era de um poder e de uma generali- dade notáveis. Mas Cauchy perdeu-o. Quando, anos depois, apareceu publicado, era tarde de mais para ajudar Abel. Em 1829 Abel morreu de tuberculose, não alheia à pobreza e ao esforço para sustentar a família em condições terríveis. Dois dias depois da morte chegou uma carta endereçada a Abel informando-o de que tinha sido escolhido para professor na Universidade de Berlim.
O conceito de grupo de Abel (agora associado a uma palavra escrita com um a pequeno, abeliano) é muito importante na álgebra moderna e é um elemento crucial no tratamento do problema de Fermat. Um grupo abeliano é aquele em que a ordem das operações pode ser invertida sem afectar o resultado final. Uma variedade abeliana é uma entidade algébrica ainda mais abstracta, tendo o seu uso sido também importante em aproximações à solução do último teorema de Fermat.
Os ideais de Dedekind
O legado de Carl Friedrich Gauss continuou através dos séculos. Um dos mais notáveis sucessores matemáticos de Gauss foi Richard Dedekind (1831-1916), nascido na mesma cidade que o grande mestre, em Brunswick, na Alemanha. Ao contrário de Gauss, no entanto, em criança, Dedekind não mostrou grande interesse ou capacidades em matemática. Estava mais interessado em física e química e via a matemática como uma auxiliar das ciências. Mas, com a idade de 17 anos, Dedekind entrou na mesma escola onde o grande Gauss fez a sua aprendizagem em matemática — Colégio Carolina — e aí o seu futuro mudou. Dedekind interessou-se pela matemática e continuou esse interesse em Göttin-gen, onde Gauss era professor. Em 1852, com 21 anos de idade, Richard Dedekind recebeu o doutoramento de Gauss. O mestre achou a dissertação do aluno «completamente satisfatória». Não era um grande feito e, na realidade, o grande génio de Dedekind ainda não se havia manifestado.
Em 1824 Dedekind foi contratado como professor universitário em Göttingen. Quando Gauss morreu, em 1855, e Dirichlet saiu de Berlim para ocupar o seu lugar, Dedekind assistiu a todas as suas conferências em Göttingen e editou o último tratado pioneiro em teoria dos números, acrescentando um suplemento baseado no seu próprio trabalho. Este suplemento continha um perfil da teoria de Dedekind desenvolvida para os números algébricos, que são definidos como soluções de equações algébricas. Compreendem raízes múltiplas de números juntamente com números racionais. Os campos de números algébricos são muito importantes no estudo da equação de Fermat, já que provêm da solução de vários tipos de equações. Dedekind também desenvolveu uma área significativa em teoria dos números.
O maior contributo de Dedekind para a aproximação moderna ao último teorema de Fermat foi o aparecimento da teoria dos ideais, abstracções dos números ideais de Kummer. Um século depois do seu desenvolvimento por Dedekind, os ideais haveriam de inspirar Barry Mazur e Andrew Wiles haveria de tirar partido do trabalho de Mazur.
No ano académico de 1857-1858 Richard Dedekind deu o primeiro curso matemático sobre a teoria de Galois. A compreensão de matemática de Dedekind era muito abstracta, e ele elevou a teoria dos grupos ao nível moderno em que é compreendida e ensinada actualmente. As abstracções possibilitaram a aproximação ao teorema de Fermat. O curso de Dedekind sobre as teorias desenvolvidas por Galois foi um grande passo nessa direcção. A este curso assistiram dois estudantes.
Então a carreira de Dedekind tomou um rumo estranho. Deixou Göttingen para aceitar um lugar em Zurique, mas, após cinco anos, em 1862, regressou a Brunswick, onde ensinou, numa escola secundária, durante cinquenta anos. Ninguém conseguiu ainda explicar por que razão um matemático brilhante que elevou a álgebra a um nível incrivelmente alto de abstracção e generalidade deixou de repente um dos cargos mais prestigiados numa universidade europeia para ir ensinar numa escola secundária desconhecida. Dedekind nunca casou e viveu durante muitos anos com a irmã. Morreu em 1916 e manteve uma mente clara e activa até ao último dia.
Fin de siècle
No virar do século xix viveu em França um matemático de grande habilidade numa surpreendentemente ampla variedade de áreas. A grandeza dos conhecimentos de Henri Poincaré (1854- -1912) estendeu-se para além da matemática. Em 1902, e mais tarde, quando já era um matemático de renome, Poincaré escreveu livros populares de matemática. Estas brochuras, lidas por pessoas de todas as idades, eram algo de comum nos cafés e parques de Paris.
Poincaré nasceu numa família de pessoas realizadas. Um primo, Raymond Poincaré, foi eleito presidente da França durante a Primeira Guerra Mundial. Outros membros da família conseguiram cargos públicos e governamentais elevados.
Desde jovem idade, Henri demonstrava uma grande capacidade de memória. Conseguia recitar qualquer página de um livro que lesse. No entanto, os seus esquecimentos eram lendários. Uma vez um finlandês percorreu todo o caminho até Paris para se encontrar com Poincaré e discutir com ele alguns problemas matemáticos. O visitante ficou três horas à espera, fora do escritório de Poincaré, enquanto o distraído matemático passeava de um lado para o outro, como era seu hábito. Finalmente, Poincaré assomou à sala de espera e disse: «Senhor, está a incomodar-me!» A visita saiu e nunca mais foi vista em Paris.
O brilhantismo de Poincaré foi reconhecido ainda ele estava na escola primária. Mas, por ser um universalista — um homem renascentista na sua essência —, a sua aptidão especial para a matemática não se havia manifestado ainda. Distinguiu-se com a sua excelência na escrita ainda numa idade muito jovem. Um professor que reconheceu e encorajou a sua habilidade guardou cuidadosamente os seus papéis da escola. Ao mesmo tempo o professor tinha de criticar o jovem génio: «Não faças tão bem, por favor... tenta ser mais vulgar.» O professor tinha boas razões para fazer esta sugestão. Aparentemente, os educadores franceses haviam aprendido algo da má sorte de Galois meio século antes — os professores descobriram que os estudantes dotados falhavam por vezes às mãos de examinadores pouco inspirados. O professor estava genuinamente preocupado pelo facto de Poincaré ser tão brilhante que talvez falhasse nesses exames. Em criança, Poincaré já era distraído. Por vezes saltava refeições porque se esquecia se tinha ou não comido.
O jovem Poincaré interessava-se pelos clássicos e havia aprendido a escrever bem. Em adolescente interessou-se por ma- temática e rapidamente se notabilizou nela. Conseguia resolver problemas completamente de cabeça enquanto caminhava pela sala — depois sentava-se e escrevia tudo muito rapidamente. Nisto parecia-se com Galois e Euler. Quando Poincaré, finalmente, fez os exames, quase reprovou a matemática, como o professor da primária havia previsto anos antes. Mas passou apenas porque — com 17 anos — o seu nome como matemático já era tão conhecido que os examinadores não se atreveram a chumbá-lo. «Qualquer outro estudante que não fosse Poincaré teria sido reprovado», declarou o examinador principal ao passar o estudante que foi para a Escola Politécnica e se tornou o maior matemático francês do seu tempo.
Poincaré escreveu vários livros de matemática, física-matemática, astronomia e ciência popular. Escreveu trabalhos de investigação de mais de 500 páginas sobre novos tópicos de matemática que desenvolveu. Deu grandes contributos para a topologia, tema iniciado por Euler. Contudo, os resultados de Poincaré foram tão importantes que este ramo da matemática só é considerado como verdadeiramente lançado em 1895, com a publicação do livro de Poincaré Analysis Situs. A topologia — o estudo das formas, das superfícies e das funções contínuas — era importante para compreender o problema de Fermat em finais do século xx. Mas ainda mais importante para a compreensão do último teorema de Fermat era outra área em que Poincaré foi pioneiro.
Formas modulares
Poincaré estudou as funções periódicas, como os senos e co- -senos de Fourier — não na recta numérica, como Fourier havia feito, mas no campo complexo. A função seno, sen x, é a altura vertical num ponto de um círculo com raio 1 quando o ângulo é x. Esta função é periódica: repete-se todas as vezes que o ângulo completa um múltiplo do seu período, 360 graus. Esta periodicidade é uma simetria. Poincaré examinou o plano complexo, que contém números reais no eixo horizontal e números imaginários no vertical, como é mostrado na figura que se segue.
Aqui uma função periódica pode ser concebida como tendo a periodicidade ao longo do eixo real e do eixo imaginário. Poincaré foi ainda mais longe e postulou a existência de funções com um arranjo mais amplo de simetrias. Estas eram funções que permaneciam inalteradas quando a variável compleza z era mudada de acordo com a regra f(z) ® f(az + b/cz + d). Aqui os elementos a, b, c, d, distribuídos como uma matriz, formavam um grupo algébrico. Isto significa que há infinitas variações possíveis, que se combinam umas com as outras e que a função f é invariante para este grupo de transformações. Poincaré designou estas funções esquisitas por formas automórficas.
As formas automórficas eram criaturas muito, muito estranhas, porque satisfaziam muitas simetrias internas. Poincaré não estava totalmente seguro de que existissem. Realmente, Poincaré descreveu a investigação da seguinte maneira: disse que durante quinze dias haveria de acordar de manhã e de se sentar umas horas à secretária a tentar convencer-se de que as formas automórficas que havia inventado não poderiam existir. No décimo-quinto dia apercebeu-se de que estava errado. Estas funções estranhas, difíceis de imaginar visualmente, afinal, existiam. Poincaré usou-as para definir funções ainda mais complicadas, chamadas formas modulares. As formas modulares definem-se na metade superior do plano complexo e têm uma geometria hiperbólica. Isto é, existem num espaço estranho onde reina a geometria não euclidiana de Bolyai e Lobachevsky. Em qualquer ponto deste semiplano existem muitas «rectas» paralelas a qualquer recta dada.
As muito estranhas formas modulares são simétricas em muitos aspectos em relação a este espaço. As simetrias são obtidas acrescentando um número à função e invertendo-o como 1/z. A pavimentação do semiplano complexo, usando estas simetrias, é mostrada na página seguinte.
Poincaré deixou para trás as formas automórficas simétricas e as suas formas modulares ainda mais intrigantes e partiu para outras áreas da matemática. Estava tão ocupado em tantos campos da matemática, por vezes em alguns ao mesmo tempo, que não teve tempo para se sentar e ponderar a beleza de infinitas entidades simétricas, dificilmente imagináveis. Mas, embora não o soubesse, tinha acabado de enterrar outra semente no jardim que haveria eventualmente de trazer a solução do problema de Fermat.
Uma conexão inesperada com um donute
Em 1922 o matemático inglês Louis J. Mordell descobriu o que pensava ser uma conexão estranha entre as soluções de equações algébricas e a topologia. Os elementos da topologia são superfícies e espaços. Estas superfícies podem existir em qualquer dimensão — duas dimensões, como no caso das figuras da antiga geometria grega — ou encontrar-se num espaço tridimensional, ou mais. A topologia é o estudo quer de funções contínuas que actuam nes-ses espaços, quer das propriedades desses próprios espaços.
A parte da topologia que chamou a atenção de Mordell foi a de superfícies num espaço tridimensional. Um exemplo simples de tal superfície é a esfera: é a superfície de uma bola, como uma de basquetebol. A bola é tridimensional, mas a sua superfície (não assumindo a profundidade) é um objecto bidimensional. A superfície da Terra é outro exemplo. A Terra em si é tridimensional: qualquer sítio na Terra ou dentro dela pode ser dado pela sua longitude (uma dimensão), latitude (segunda dimensão) e profundidade (terceira dimensão). Mas a superfície da Terra (sem profundidade) é bidimensional, já que qualquer ponto na superfície da Terra pode ser especificado por dois números: a sua longitude e a sua latitude.
As superfícies de duas dimensões num espaço tridimensional podem ser classificadas de acordo com o seu género. O género é o número de buracos na superfície. O género de uma esfera é 0, visto que não há buracos dentro dela. Um donute tem um buraco. Então o género do donute (matematicamente chamado um toro) é 1. Um buraco aqui é aquele que atravessa completamente a superfície. Uma taça com duas pegas tem dois buracos dentro dela. Por isso é uma superfície de género 2.
Uma superfície de género 1 pode ser transformada por uma função contínua numa superfície do mesmo género. A única maneira de transformar uma superfície de um género noutra de outro género consiste em abrir ou fechar alguns buracos, o que não pode ser feito por uma função contínua, porque vai requerer algum rasgão ou uma colagem, implicando cada uma destas operações uma descontinuidade matemática.
Mordell descobriu uma conexão estranha e totalmente inesperada entre o número de buracos (o género) da superfície formada pelo espaço das soluções de uma equação e o facto de a equação ter um número finito ou infinito de soluções. Se a superfície das soluções, usando números complexos para uma maior generalidade, tivesse dois ou mais buracos (isto é, tivesse género 2 ou mais), então a equação tinha apenas um número finito de soluções inteiras. Mordell não foi capaz de demonstrar a sua descoberta, que ficou a ser conhecida como a conjectura de Mordell.
A demonstração de Faltings
Em 1983 um matemático alemão de 27 anos, Gerd Faltings, nessa altura na Universidade de Wuppertal, conseguiu provar a conjectura de Mordell. Faltings não estava interessado no último teorema de Fermat, considerando-o um problema isolado na teoria dos números. Apesar disso, a sua demonstração, que utilizou um grande engenho, juntamente com uma poderosa maquinaria de geometria algébrica desenvolvida neste século, teve profundas implicações na situação do último teorema de Fermat. Em virtude de o género associado à equação de Fermat para n maior do que 3 ser 2 ou mais, ficou claro que, se existissem soluções inteiras para a equação de Fermat, então elas seriam em número finito (o que era consolador, pois agora o seu número era limitado). Logo depois dois matemáticos, Granville e Heath-Brown, usaram o resultado de Faltings para mostrarem que o número de soluções da equação de Fermat, se existissem, descia à medida que o expoente n aumentasse. Estava, pois, demonstrado que a proporção de expoentes para os quais o último teorema de Fermat era verdadeiro se aproximaria de 100% à medida que n aumentasse.
Por outras palavras, o último teorema de Fermat estaria «quase sempre certo». Se existissem soluções para a equação de Fermat (nesse caso o teorema não seria verdadeiro), então tais soluções seriam poucas e muito distanciadas. Desta forma, o estado do último teorema de Fermat em 1983 era o seguinte: o teorema estava provado para n até 1 milhão (em 1992 o limite foi aumentado para 4 milhões). Além disso, para valores maiores do que n, se existissem soluções, então seriam muito poucas e o seu número diminuiria com n.
O misterioso general grego com um nome engraçado
Há dezenas de excelentes livros de matemática publicados em França, escritos em francês, cujo autor tem o nome de Nicolas Bourbaki. Houve um general grego chamado Bourbaki (1816- -1897). Em 1862 foi oferecido a Bourbaki o trono da Grécia, convite que ele declinou. O general desempenhava um papel importante na guerra franco-prussiana e há uma estátua dele na cidade francesa de Nancy. Mas o general Bourbaki nada sabia de matemática. E nunca escreveu um livro sobre matemática ou sobre qualquer outra coisa. Quem escreveu então tantos volumes de matemática usando o seu nome?
A resposta está nos tempos felizes de Paris entre as duas guerras mundiais. Hemingway, Picasso e Matisse não eram as únicas pessoas que gostavam de se sentar nos cafés e de encontrar os amigos, de ver gente e de serem vistos. Nessa altura, à volta dos mesmos cafés, na margem esquerda, perto da Universidade de Paris, florescia uma comunidade matemática vibrante. Os professores de matemática da universidade também gostavam de estar com os amigos, de beber o café com leite ou um pastis numa boa cervejaria da Avenida St. Michel, perto dos maravilhosos jardins do Luxemburgo, para discutirem... matemática. A Primavera em Paris inspirava escritores, artistas e matemáticos. Qualquer um pode imaginar num dia soalhento, num café agradável, um ruidoso grupo de matemáticos juntos. Os sentimentos de fraternidade surgiam à medida que discutiam animadamente alguns pontos de uma teoria. A sua rebeldia, provavelmente, perturbou Hemingway, que escreve que sempre gostou de trabalhar nalgum café e, provavelmente, teve de procurar alternativa nalgum sítio menos frequentado. Mas os matemáticos não se importavam. Valorizavam a companhia uns dos outros e um café cheio de matemáticos — todos a falarem a mesma linguagem de números e símbolos e espaços e funções — era intoxicante. «Devia ser isto que os pitagóricos sentiam quando falavam de matemática», diria alguém do grupo à medida que fazia uma saúde com um copo. «Sim, mas não bebiam Pernod», diria outro, e todos se riam. «Mas nós podíamos ser como eles», responderia o primeiro. «Por que não formamos a nossa própria sociedade? Uma sociedade secreta, naturalmente.» Havia vozes de concordância por todo o lado. Alguém terá então sugerido que se apro-priassem do nome do velho general Bourbabi. Havia uma razão para essa sugestão. Por aqueles dias o departamento de matemática da Universidade de Paris tinha a tradição anual de convidar um actor profissional que se apresentaria à assembleia da faculdade e aos estudantes graduados como Nicolas Bourbaki. Devia fazer então um espectáculo sozinho, que consistiria num longo monólogo matemático de conversa com duplo sentido. Estas apresentações eram bastantes divertidas devido à grande riqueza de vocabulário da teoria matemática moderna, que é a um tempo descritiva da mesma matemática, mas tem sentidos diferentes na vida quotidiana. Uma dessas palavras é denso. Diz-se que os números racionais são densos por entre os números reais. Isto significa que em qualquer vizinhança dos números racionais há números irracionais. Mas denso significa muitas outras coisas no dia a dia de todos nós.
Os estudantes graduados de hoje gostam de jogar os mesmos jogos de duplo sentido; em inglês, gostam de contar a história da linda «Poly Nomial who meets the smooth operator curly pi»* [polinomial, operador suave pi e curly (em português, rotacional) são termos matemáticos].
E foi assim que os livros que estes matemáticos escreveram juntos ficaram com o nome de Nicolas Bourbaki. Começou a organizar-se um seminário Bourbaki, onde eram discutidas, não pouco frequentemente, ideias e teorias matemáticas. A filiação na sociedade era supostamente para ser anónima, e os resultados matemáticos eram atribuídos à sociedade sob o nome de Bourbaki, em vez de ser no nome de membros individuais.
Mas os membros do Bourbaki não eram os pitagóricos. Enquanto o autor dos compêndios era Nicolas Bourbaki, os resultados de investigações, como os teoremas e respectivas demonstrações — que são muito mais prestigiantes do que os livros —, foram creditados aos matemáticos que chegaram a esses resultados. Um dos primeiros membros do grupo Bourbaki foi André Weil (1906-), que mais tarde foi para os Estados Unidos e para o Instituto de Estudos Avançados de Princeton. O seu nome nunca poderá ser desligado da importante conjectura que conduziu à solução do problema de Fermat.
Outro dos fundadores do grupo Bourbaki foi o matemático francês Jean Dieudonné, que, tal como a maioria dos outros membros da sociedade «franceses de gema», se mudou para os campos relvados das universidades dos Estados Unidos. Dieudonné, que foi o principal autor de muitos livros com o nome colectivo de Nicolas Bourbaki, sintetiza a barreira entre a procura dos bourbakistas para atingirem o anonimato individual e os seus egos individuais. Uma vez Dieudonné publicou um artigo com o nome de Bourbaki. Como foi descoberto um erro no artigo, então Dieudonné publicou uma nota com o título «Sobre um erro de N. Bourbaki» e assinou J. Dieudonné11.
A natureza esquizofrénica da sociedade — os membros eram todos franceses, mas a maioria vivia nos Estados Unidos — manifestava-se na afiliação do senhor Bourbaki. Habitualmente, as publicações de Nicolas Bourbaki referiam sua afiliação como sendo «a Universidade de Nancago», uma fusão do nome da cidade francesa de Nancy com o de Chicago. Mas, embora as publicações de Bourbaki fossem apenas em francês, quando os seus membros se reuniam, normalmente numa cidade de veraneio francesa, as conversas não eram somente em francês, mas também no dialecto dos estudantes parisienses. O chauvinismo estendia-se às vidas separadas desses matemáticos que viviam na América. André Weil, fundador do grupo Bourbaki, publicou muitos artigos importantes em inglês. Mas as suas Collected Works (Obras Escolhidas), que tinham ligação com a conjectura relacionada com o problema de Fermat, foram publicadas em francês com o título Oeuvres12. As acções pouco previsíveis de Weil haveriam de prejudicar um dos principais jogadores no nosso drama e Weil não haveria de recuperar deste desastre.
Deve ser reconhecido aos membros do Bourbaki o seu sen- tido de humor. Há cerca de quarenta anos a Sociedade Matemática Americana recebeu um pedido individual de inscrição do senhor Nicolas Bourbaki. A secretária permaneceu imperturbável. Foi respondido que, se o senhor Bourbaki quisesse entrar para a Sociedade, teria de ser proposto como membro institucional (que era muito mais caro). Bourbaki nunca mais escreveu de volta.
Curvas elípticas
Os problemas diofantinos — isto é, problemas levantados por equações na forma dada por Diofanto no século iii — começaram a ser estudados cada vez mais no século xx usando entidades matemáticas chamadas curvas elípticas. Mas as curvas elípticas nada têm a ver com as elipses. Foram originalmente usadas séculos antes em conexão com as funções elípticas, que, por sua vez, eram usadas para ajudar a calcular o perímetro de uma elipse. Como sucedeu com muitas ideias inovadoras, o pioneiro nesta área não foi outro senão o próprio Gauss.
Estranhamente, as curvas elípticas não são elipses nem funções elípticas — são polinómios cúbicos em duas variáveis. São semelhantes a y2 = ax3 + bx2 + cx, onde a, b e c são inteiros ou números racionais (estamos preocupados com as curvas elípticas sobre os nú-meros racionais). A seguir são apresentados exemplos destas curvas13.
Quando olhamos para os pontos racionais nas curvas elípticas, isto é, olhamos apenas para os pontos na curva que são dados pela razão de dois inteiros (sem números irracionais, como pi ou a raiz quadrada de 2, etc.), estes números formam um grupo, o que significa que têm propriedades engraçadas. Vejamos duas soluções: podem ser «juntas» no sentido de produzirem uma terceira solução na curva. Os especialistas da teoria dos números ficaram fascinados com as curvas elípticas, porque podem responder a muitas questões sobre equações e as respectivas soluções. As curvas elípticas tornaram-se, assim, uma das melhores ferramentas em teoria dos números14.
Está prestes a ser formulada uma estranha conjectura
Era já conhecido há algum tempo dos especialistas em teoria dos números que algumas das curvas elípticas que costumavam estudar eram modulares.
Isto é, estas poucas curvas elípticas podiam ser vistas como li-gadas a formas modulares. Algumas curvas elípticas podiam, assim, de alguma forma, relacionar-se com o plano complexo e aquelas funções no espaço hiperbólico com as suas muitas simetrias. Não era muito claro como e porquê isso acontecia. A matemática era ex-tremamente complicada, mesmo para os peritos, e a estrutura interna — as belas harmonias existentes — era muito pouco compreendida. As funções elípticas que eram de facto modulares tinham propriedades interessantes. Em breve alguém iria fazer uma arrojada conjectura segundo a qual todas as funções elípticas eram modulares.
Para compreender a ideia de modularidade que existe em relação ao espaço não euclidiano da metade superior do plano complexo, onde as simetrias são tão complicadas que dificilmente conseguem ser visualizadas, é útil olhar para um exemplo simples. Este é um exemplo em que a curva que interessa não é uma curva elíptica; em vez de uma equação cúbica com duas variáveis, é apenas uma equação quadrada com duas variáveis. A curva é um simples círculo. A equação de um círculo com raio a cujo centro é a origem dos zeros é dada por x2 + y2 = a2. Agora repare-se nestas funções periódicas simples: x = a cos t e y = a sen t. Estas duas funções descrevem um ponto com as coordenadas x e y na equação do círculo. Esta equação do círculo é modular em certo sentido. A razão para tal é a identidade trigonométrica que diz que sen2 t + cos2 t = 1. E, substituindo esta fórmula na equação do círculo (cada termo multiplicado por a), obtemos uma identidade.
Uma curva modular elíptica é apenas uma extensão desta ideia ao mais complicado plano complexo, com uma geometria especial não euclidiana. Aqui as funções periódicas são simetrias não apenas relativamente a uma variável, t, como sucede com os senos e cosenos na recta — são automórficas, ou formas modulares no plano complexo, que têm simetrias relativamente a transformações mais complicadas f(z) ® f(az + b/cz + d).
Tóquio, Japão, década de 50
No início da década de 50 o Japão era uma nação a emergir da devastação da guerra. As pessoas já não andavam cheias de fome, mas continuavam pobres e a sobrevivência no dia a dia era uma luta constante para a média dos japoneses. Apesar disso, as fábricas continuavam a ser reconstruídas das cinzas, os negócios a ser retomados, e a disposição geral era de espe- rança.
A vida universitária do Japão nessa altura também era muito difícil. A competição entre estudantes era forte: boas notas significavam bons empregos após a graduação. Isto era especial- mente verdade para os estudantes doutorados em matemáticas puras, já que as posições oferecidas nas universidades eram pou-cas, apesar de o ordenado ser baixo. Yutaka Taniyama era um desses estudantes doutorandos em matemática. Nascido em 12 de Novembro de 1927, era o mais novo de oito filhos da família de um médico de província da cidade de Kisai, a cerca de 50 km a norte de Tóquio. Ainda bastante novo, Taniyama começou a estudar a área da matemática que envolvia a multiplicação complexa de variedades abelianas. Não se conhecia muita coisa neste campo e Taniyama passou um tempo difícil. Para tornar as coisas piores, achou inúteis os conselhos dos professores mais velhos da Universidade de Tóquio. Tinha de derivar cada pormenor à sua maneira e costumava descrever as suas tarefas em investigação matemática usando quatro caracteres chineses que significavam «luta dura» e «grande esforço». Nada era fácil na vida do jovem Yutaka Taniyama.
Taniyama vivia num apartamento de um quarto com 27 m2. Havia apenas uma casa de banho em cada piso do prédio, partilhada por todos os habitantes de cada piso. Para tomar banho tinha de ir a um banheiro público a uma certa distância de casa. Ironicamente, o velho edifício de apartamentos chamava-se «Vila Montanhas Tranquilas», já que ficava junto de uma rua bastante frequentada e perto de um caminho de ferro onde os comboios passavam de poucos em poucos minutos. Possivelmente, para poder trabalhar melhor na sua investigação, o jovem Yutaka trabalhava mais à noite, indo, por vezes, para a cama às 6 horas da manhã, quando o dia barulhento estava prestes a começar. Exceptuando no calor do Verão, quase todos os dias usava o mesmo fato azul-esverdeado com o mesmo reflexo metálico. Como explicou ao seu bom amigo Goro Shimura, o pai comprara o material bastante barato a um vendedor ambulante. Mas por causa do aspecto ninguém na família se atrevera a usá-lo. Yutaka, que não se importava com a aparência, finalmente, decidiu-se e fez do material um fato que passou a usar todos os dias.
Taniyama doutorou-se na Universidade de Tóquio em 1953 e ganhou a posição de «estudante especial de investigação» no departamento de matemática da universidade. O seu amigo Shimura doutorou-se um ano antes e obteve uma posição semelhante em matemática no Colégio de Educação Geral. A sua amizade começou depois de um deles ter escrito uma carta ao outro pedindo-lhe para devolver à biblioteca um número de uma revista de matemática que interessava a ambos. Iam com frequência comer a um res-taurante barato que, supostamente, servia comida ao estilo ocidental, tal como carne de vaca, que estava a tornar-se popular no Japão15.
Poucos bons matemáticos ficaram no Japão nessa altura. Quando um matemático alcançava alguma notoriedade, tentava ir para uma universidade na América ou na Europa, onde a comunidade matemática estava mais estabelecida e onde eram possíveis ligações com pessoas que faziam investigação num mesmo campo. Estas ligações eram importantes para conduzir a investigação em áreas esotéricas onde pouco se sabia ainda. Para tentarem reforçar os laços de pesquisa entre pessoas com interesses nos mesmos campos, os dois amigos ajudaram a organizar o Simpósio de Tóquio-Nikko sobre a Teoria Algébrica dos Números em Setembro de 1955. Algumas afirmações feitas nesta pequena conferência, embora viessem a permanecer obscuras durante muito tempo, iriam, finalmente, levar a alguns resultados importantes — e a uma controvérsia selvagem — quase quarenta anos depois.
Um bom começo
Os dois amigos preencheram os documentos administrativos necessários, arranjaram apoios para a conferência e enviaram convites a matemáticos locais e estrangeiros na esperança de que estes fossem à conferência. André Weil, que, entretanto, deixara a França e era professor na Universidade de Chicago, foi um dos convidados a participar. No Congresso Internacional de Matemática, cinco anos antes, Weil chamara a atenção da comunidade matemática para uma conjectura desconhecida de um matemático de nome Hasse «acerca da função zeta de uma variedade sobre um corpo de números». Esse enunciado obscuro suscitou algum interesse entre os investigadores da teoria dos números. Aparentemente, Weil andava a juntar estas ideias conjecturais em teoria dos números e incluiu--as nos seus Collected Papers, dando crédito a Hasse.
O seu interesse por resultados nesta área tornava-o atractivo para Taniyama e Shimura, que ficaram satisfeitos quando ele aceitou o convite para participar na conferência. Outro matemático estrangeiro que deveria vir a Tóquio-Nikko era um jovem matemático francês, Jean-Pierre Serre. Apesar de nessa altura não ser membro do Bourbaki, já que o grupo só aceitava matemáticos bem conhecidos, viria a ser um deles nas décadas que se seguiram. Serre foi descrito por outros matemáticos como ambicioso e fortemente competitivo. Foi a Tóquio-Nikko para aprender o máximo que pudesse. Os Japoneses sabiam alguma coisa de teoria dos números e tinham muitos resultados publicados apenas em japonês, portanto escondidos do resto do mundo. Esta era uma grande oportunidade para ficar a conhecer esses resultados, já que os trabalhos da conferência seriam conduzidos em inglês. Ele devia ser uma das poucas pessoas fora do Japão que conheciam a matemática que aí foi apresentada. Quando as actas do simpósio fossem publicadas, sê-lo-iam apenas em japonês. Vinte anos depois Serre haveria de dirigir as atenções para alguns acontecimentos passados em Tóquio-Nikko e o mundo haveria de ouvir a sua versão — não aquela que havia ficado registada nas actas japonesas.
As actas incluíam 36 problemas. Os problemas 10, 11, 12 e 13 foram escritos por Yutaka Taniyama. Análogos às ideias de Hasse, os problemas de Taniyama constituíam uma conjectura sobre as funções zeta. Ele parecia ligar as funções automórficas de Poincaré definidas no plano complexo à função zeta de uma curva elíptica. Era um mistério que uma curva elíptica pudesse de alguma maneira estar ligada a alguma coisa no plano complexo.
«Está a dizer o quê…?»
A conjectura envolvida nos quatro problemas era pouco clara.
Taniyama não formulou os problemas de uma forma muito clara, possivelmente porque não estava suficientemente seguro do que fosse exactamente aquela conexão. Mas a ideia básica estava lá. Era uma intuição, um pressentimento de que as funções automórficas, com as suas muitas simetrias no plano complexo, tinham de estar de alguma maneira ligadas às equações de Diofanto. Mas isso não era óbvio. Estava a pressupor uma ligação escondida entre dois ramos diferentes da matemática.
André Weil quis saber ao certo o que Taniyama tinha em mente. De acordo com os registos escritos da conferência, as actas publicadas em japonês, verificou-se a seguinte troca de palavras entre Weil e Taniyama16:
Weil: Pensa que todas as funções elípticas são uniformizadas por funções modulares?
Taniyama: As funções modulares apenas não serão suficientes. Penso que serão necessários outros tipos especiais de funções automórficas.
Weil: É claro que algumas delas podem, provavelmente, ser tratadas dessa maneira. Mas, de uma maneira geral, parecem completamente diferentes e misteriosas [...]
Duas coisas resultam evidentes desta conversa. Em primeiro lugar, Taniyama estava a referir-se a «funções automórficas», em vez de «funções modulares apenas», como sendo associadas a curvas elípticas. Em segundo lugar, Weil não acreditava que, em geral, houvesse uma tal ligação. Mais tarde haveria de ser mais preciso acerca desta descrença, o que tornaria inevitável que o seu nome, de entre todas as pessoas, acabasse por ficar associado a uma conjectura que não havia formulado e que nem acreditava ser possível. Mas o destino, por vezes, dá voltas estranhas e improváveis e ocorreriam coisas ainda mais bizarras.
Tudo isto viria a ter interesse décadas depois. Saber exactamente o que Yutaka Taniyama quis dizer, pensou e disse seria uma mercê para os historiadores modernos. Mas, infelizmente, a tragédia bateu à porta de Taniyama, tal como fizera com muitos outros jovens génios matemáticos.
Goro Shimura deixou Tóquio dois anos depois, primeiro, para Paris e, depois, para o Instituto de Estudos Avançados e para a Universidade de Princeton. Os dois amigos continuaram a comunicar-se pelo correio. Em Setembro de 1958 Goro Shimura recebeu a última carta escrita por Yutaka Taniyama. Na manhã de 17 de Novembro de 1958, cinco dias depois do seu 31.o aniversário, Yutaka Taniyama foi encontrado morto no seu apartamento, deixando uma nota suicida na secretária.
A conjectura de Shimura
Decorrida uma década desde a conferência de Tóquio-Nikko, Goro Shimura, agora em Princeton, continuava a sua investigação sobre a teoria dos números, as funções zeta e as curvas elípticas. Como havia compreendido onde o seu defunto amigo errara, a sua investigação e busca de harmonias escondidas no reino da matemática levaram-no a formular uma conjectura diferente, corajosa e mais precisa: qualquer curva elíptica sobre os números racionais é uniformizada por uma forma modular. As formas modulares são elementos mais específicos sobre o plano complexo do que as funções automórficas de Taniyama. E a especificação do domínio dos números racionais e outras modificações eram também correcções importantes.
A conjectura de Shimura pode ser explicada por meio de um desenho:
Se considerarmos o plano complexo como um toro (o do- nute da figura), então a superfície compreenderá todas as solu-ções de equações elípticas sobre números racionais, tendo estas, por sua vez, origem em equações diofantinas. O que havia de ser importante para a solução do último teorema de Fermat consistia em que, se existisse uma solução para a equação de Fermat xn + yn = zn, esta solução também teria de estar representada nesse toro. Ora, Shimura conjecturou que todas as curvas elípticas com coeficientes racionais (isto é, com coeficientes da forma a/b, onde a e b são números inteiros) têm um «companheiro» no semiplano complexo de Poincaré, com a sua geo-metria hiperbólica não euclidiana. O companheiro particular de cada curva elíptica racional era uma função muito específica no semiplano complexo, que era invariante por transformações complicadas do plano, já mencionadas anteriormente — f(z) ® f(az + + b/cz + d) —, cujos coeficientes formam um grupo com muitas simetrias inesperadas. Tudo isto era muito complexo, muito técnico e — como a maioria dos matemáticos viriam a acredi- tar por várias décadas — impossível de provar num futuro próximo.
O que a conjectura de Shimura dizia era que qualquer curva elíptica era a parte do icebergue que estava por cima da linha de água. Abaixo dessa linha está toda uma estrutura intrigante. Para provar a conjectura devia mostrar-se que qualquer icebergue tinha uma parte debaixo de água. Alguns grupos especiais de icebergues eram conhecidos por terem uma parte debaixo de água, mas como havia uma quantidade infinita de icebergues, não era possível ir verificá-lo por baixo de cada um. Era necessária uma demonstração geral para mostrar que um icebergue não podia existir sem que parte dele estivesse debaixo de água. A formulação de tal prova era considerada extremamente difícil.
Intriga e traição
Numa festa no Instituto de Estudos Avançados de Princeton nos primeiros anos da década de 60 Shimura encontrou-se outra vez com Jean-Pierre Serre. De acordo com Shimura, Serre aproximou-se de uma forma arrogante. «Não penso que os seus resultados sobre as curvas modulares sirvam para alguma coisa», disse ele, «porque elas nem se aplicam a uma curva elíptica arbitrária.» Em resposta, Shimura disse a conjectura de forma exacta: «Tal curva deve poder ser sempre uniformizada por uma curva modular17.» Serre foi ter com Weil, que não estava na festa, mas era membro do Instituto e estava num local próximo, e falou-lhe da conversa que havia tido com Shimura. Em resposta, André Weil foi ter com Shimura. «Disse realmente isso?», perguntou-lhe, intrigado. «Sim», respondeu Shimura, «não acha plausível?» Dez anos depois da referida conjectura de Taniyama, André Weil ainda não acreditava em nenhuma das duas conjecturas. Respondeu: «Não vejo qualquer razão contra isso, já que ambos os conjuntos são numeráveis, mas também não encontro um motivo para a validade desta hipótese.» O que Weil disse nessa ocasião seria mais tarde descrito como «estúpido» e «oco» por Serge Lang, da Universidade de Yale, que fez circular estes comentários, juntamente com cópias de duas dúzias de cartas às quais deu o nome colectivo de «O ficheiro Taniyama-Shimura», por entre cerca de cinquenta matemáticos de todo o mundo. O que Weil quis dizer na resposta a Shimura era equivalente ao seguinte: se num quarto houver sete homens e sete mulheres e se conjecturar que se trata de sete casamentos, então não vejo nenhuma razão contra, já que o número de homens é igual ao número de mulheres. Mas tão-pouco vejo uma razão para essa hipótese. Podem ser todos solteiros. O que fez Lang descrever a afirmação como estúpida foi o facto de o argumento não ser aplicável de maneira alguma aqui, porque «numerável» significa infinito e contável (tal como o número de todos os números inteiros positivos: 1, 2, 3, 4, ...) e juntar tais colecções infinitas não é tarefa fácil. Em qualquer caso, é claro que André Weil não acreditava que a teoria de Shimura fosse necessariamente verdadeira. Viria mais tarde a admitir que esta conversa teve lugar e, quer tenha sido estúpida, oca ou outra coisa, viria a citá-la. Mas isto só aconteceria em 1979, quando escreveu18:
Quelques années plus tard, à Princeton, Shimura me demanda si je trouvais plausible que toute courbe elliptique sur Q fut contenue dans la jacobienne d’une courbe definie par un sous-groupe de congruence du groupe modulaire; je lui répondis, il me semble, que je n’y voyais pas d’empêchement, puisque l’un et l’autre ensemble est dénombrable, mais je ne voyais rien non plus qui parlat en faveur de cette hypothèse.
[Alguns anos mais tarde, em Princeton, Shimura perguntou-me se acharia plausível que qualquer curva elíptica sobre Q pudesse estar contida na jacobiana de uma curva definida por um subgrupo de congruência de um grupo modular; respondi-lhe, parece-me, que não via nada contra isso, já que ambos os conjuntos eram numeráveis, mas também não via nada que apoiasse essa hipótese.]
Mas, mesmo assim, Weil escreveria «Shimura perguntou-me» (me demanda), em vez de «Shimura disse-me», quando se referia ao enunciado que é a conjectura de Shimura. Weil publicou alguns dos documentos referidos e, embora não acreditasse na conjectura de Shimura, o seu nome acabou por ficar associado a ela. O erro perpetuava-se sempre que os matemáticos a referiam nos seus artigos, continuando a citação incorrecta até aos nossos dias, quando quem escreve, ignorando a história, se refere à conjectura de Weil--Taniyama, e não à conjectura de Shimura-Taniyama. A Weil pareceu agradar a sua associação a uma teoria importante que — embora não acreditasse nela — a maioria dos matemáticos pensavam que acabaria por ser provada algum dia num futuro distante.
Com o passar das décadas foram aparecendo cada vez mais razões para a conexão existir. Se e quando a conjectura fosse pro-vada, seria uma teoria matemática substancial. Weil trabalhou na conjectura, nunca deixando os resultados matemáticos que obteve muito distantes da possível ligação entre as formas modulares do plano complexo e as curvas elípticas das equações diofantinas. E, à medida que se ia certificando, ia escondendo as referências a Shimura e ao seu papel crucial, até que, passadas quase duas décadas, começou a fazer grandes elogios a Shimura em conversas casuais e acabou por mencioná-lo — de passagem — num artigo que publicou. Entretanto, em França Serre contribuía activamente para a falsa atribuição. Fez todos os esforços para associar o nome de André Weil à conjectura, em vez do de Goro Shimura.
«Um exercício para o leitor atento»
Em 1967 André Weil escreveu um artigo em alemão em que dizia19:
Ob sich diese Dinge immer, d.h für jede über Q definierte Kurve C, so verhalten, scheint im Moment noch problematisch zu sein und mag dem interessierten Leser als Übungsaufgabe empfohlen werden.
[Que isto, ou seja, cada curva C definida sobre Q, se comporta assim, é ainda visto até este momento como problemático e recomenda-se como exercício ao leitor interessado.]
Este parágrafo refere-se a curvas elípticas sobre números racionais (que os matemáticos designam por Q), e «sich so verhalten» refere-se aqui ao facto de ser modular, isto é, à confirmação da conjectura de Shimura. Mas, aqui mais uma vez, Weil não atribui a teoria ao seu criador. Fê-lo apenas doze anos depois, e mesmo então com um «Shimura perguntou-me...», como vimos atrás. Neste artigo em alemão, referido acima, Weil chama-lhe conjectura «problemática.» E então faz uma coisa estranha. Remete simplesmente a conjectura como um exercício para um leitor interessado («und mag dem interessierten Leser als Übungsaufgabe empfohlen werden»). Este exercício para o «leitor interessado» tomaria a um dos melhores matemáticos do mundo sete anos de trabalho em solidão para tentar a sua demonstração. Quando um matemático passa um trabalho de casa (Übungsaufgabe), normalmente, sabe fazer a demonstração e acredita — sabe com certeza — que o teorema é verdadeiro, não «problemático», como Weil o descreveu.
Há uma velha história sobre um professor de matemática que diz à sua turma «isto é óbvio» quando se refere a algum conceito. A turma olha confusa, já que não é de maneira alguma óbvio, mas, finalmente, um estudante corajoso levanta a mão e pergunta «porquê?». O professor começa então a desenhar e a escrever no extremo do quadro com uma mão, tapando o que escreve com a outra mão e apagando ao mesmo tempo tudo o que havia feito. Após dez minutos de rabiscos, o professor apaga o quadro completamente e diz à turma confusa: «Sim, é óbvio.»
A mentira
Nos primeiros anos da década de 70 foi feita uma maior divulgação dos problemas levantados por Taniyama no encontro de Tóquio--Nikko. Entretanto, a partir do momento em que Weil escreveu sobre a conjectura de que duvidava, as curvas elípticas modulares ficaram a ser conhecidas como as «curvas de Weil». Quando os problemas de Taniyama se tornaram mais conhecidos no Ocidente, a conjectura sobre estas curvas veio a ser designada por «conjectura de Taniyama--Weil.» O nome de Shimura ficou completamente esquecido. Contudo, a partir da junção do nome de Taniyama, Weil começou a ata-car todas as conjecturas. Em 1979, uns meros cinco anos antes de ser provada por Gerd Faltings, Weil até dissertou contra «a assim chamada ‘conjectura de Mordell’ para as equações diofantinas». E continuou: «Seria bom que assim fosse, pois apostaria mais provavelmente a seu favor do que contra ela. Mas não é mais do que a expressão de um desejo, porque não há ponta de evidência para tal, tão-pouco contra ela.» Weil, porém, até estava errado. Um bom número de matemáticos russos, entre os quais Shafarevich e Parshin, já tinha obtido resultados que iriam apoiar a conjectura de Mordell logo a partir dos primeiros anos da década de 70. Em 1984, é claro, Gerd Faltings iria provar a conjectura, tornando o último teorema de Fermat «quase sempre verdadeiro.»
Entretanto, Weil virou-se contra todas as conjecturas no momento em que o seu nome deixou de estar exclusivamente associado à con-jectura agora apelidada de Taniyama-Weil por muitos matemáticos, mas Serre, em Paris, continuava a trabalhar para que o nome de Shi-mura fosse dissociado da conjectura. Em 1986, numa festa na Universidade da Califórnia em Berkeley, num raio em que várias pessoas podiam ouvi-lo, Jean-Pierre Serre disse a Serge Lang que André Weil lhe tinha contado uma conversa que havia tido com Shimura. De acordo com Serre, isto é o que Weil lhe disse que sucedera:
Weil: Por que pensava Taniyama que todas as curvas elípticas eram modulares?
Shimura: Você mesmo lho disse e esqueceu-se.
Nesse momento Lang, que, sem se aperceber, usara os termos curva de Weil e conjectura de Taniyama-Weil, começou a suspeitar. Tratou então de procurar a verdade. Escreveu imediatamente a Weil e a Shimura, e depois a Serre. Shimura desmentiu categoricamente que tal conversa alguma vez tivesse tido lugar e deu uma ampla evidência à sua afirmação. Weil não respondeu de imediato. E Serre, em resposta, criticou a tentativa de Lang para saber a verdade. No seminário Bourbaki de Junho de 1995 Serre ainda se referia à conjectura como de «Taniyama-Weil», deixando de fora o nome do verdadeiro criador, que lhe havia confiado a sua conjectura trinta anos antes. Weil respondeu depois de uma segunda tentativa de Lang. A carta dizia o seguinte20:
3 de Dezembro de 1986
Caro Lang:
Não me lembro de quando ou onde me chegou a sua carta de 9 de Agosto. Quando chegou, tinha (e ainda tenho) assuntos mais importantes a tratar.
Não posso fazer mais do que lamentar veementemente qualquer sugestão de que alguma vez tivesse procurado diminuir o crédito devido a Taniyama e a Shimura. Estou contente por ver que os admira. Também eu.
Os excertos de conversas ocorridas há muito tempo originam mal--entendidos. Você preferiu olhar para eles como «história», mas não são. Na melhor das hipóteses, são anedotas. Relativamente à controvérsia que se lembrou de levantar, as cartas de Shimura, parece-me, põem-lhe um fim de uma vez por todas.
Quanto a dar nomes a conceitos, teoremas ou (?) conjecturas, disse várias vezes: (a) que, quando um nome próprio fica ligado (digamos) a um conceito, isso nunca deve ser tomado como um sinal de que o autor em questão tenha alguma coisa a ver com o conceito; na maior parte das vezes é o oposto que é verdadeiro. Pitágoras nada tinha a ver com o «seu» teorema, nem Fuchs com as funções fuchsianas, pelo menos não mais do que Auguste Comte com a Rua Auguste Comte; (b) os nomes próprios tendem, quase sempre, a ser substituídos por outros mais apropriados; a sucessão Leray-Koszul é agora uma sequência espectral (e, como Siegel disse uma vez a Erdös, abeliano escreve-se agora com um a minúsculo).
Por que não haveria de fazer observações «estúpidas», como lhe apraz dizer? Mas, na realidade, «estava por fora» em 1979, quando expressava algum cepticismo acerca da conjectura de Mordell, já que nessa altura era totalmente ignorante acerca do trabalho dos russos (Parshin, etc.) nessa direcção. A minha desculpa, se é que o é, consiste em que tive longas conversas com Shafarevich em 1972 e ele nunca mencionou nada acerca desse trabalho.
Atenciosamente
A. Weil
AW:ig
P. S. Se desejar fazer correr esta carta na sua máquina Xerox, sinta-se livre para o fazer. Pergunto-me o que faria a Xerox Co. sem você e outros como você.
No coração da Floresta Negra, finais de 1984
Enquanto a controvérsia acerca de quem tinha dado origem à conjectura Shimura-Taniyama fazia furor em Berkeley, New Haven, Princeton e, cruzando o Atlântico, em Paris, algo de totalmente inesperado estava a acontecer no meio da Floresta Negra no Sudoeste da Alemanha.
Gerhard Frey recebeu o diploma na Universidade de Tübingen e o doutoramento a Universidade de Heidelberga, onde havia estudado a teoria dos números e fora influenciado pelos trabalhos de Hasse e Weil. Frey estava fascinado com as ligações entre a teoria dos números e a geometria algébrica, uma área da matemática que havia sido desenvolvida nos últimos cinquenta anos. E também estava interessado em geometria aritmética. Foram as conexões entre a teoria dos números e os temas mais recentes da geometria algébrica e aritmética que haviam de levá-lo a um enunciado matemático totalmente inesperado. Na década de 70 Frey fez uma série de trabalhos sobre as curvas elípticas e as equações diofantinas e em 1978 leu o artigo «Curvas modulares e o ideal de Einsentein», de Barry Mazur, da Universidade de Harvard. Frey fora fortemente influenciado pelo artigo, assim como o foram muitos especialistas da teoria dos números, entre eles Kenneth Ribet, em Berkeley, e Andrew Wiles, em Princeton. Frey foi convencido pelo artigo de Mazur de que teria de pensar muito seriamente nas aplicações das curvas modulares e das representações de Galois à teoria das curvas elípticas. Viu que isso o conduzia invariavelmente a questões diofantinas intimamente relacionadas com as equações do tipo da de Fermat. Era uma visão poderosa, que Frey tentou tornar mais precisa.
Em 1981 Gerhard Frey passou algumas semanas na Universidade de Harvard e teve uma série de discussões com Barry Mazur. Estas discussões estavam a pôr as coisas claras na sua mente. O cerrado nevoeiro que envolvia as difíceis conexões que entrevira entre as equações do tipo da de Fermat e a relação entre formas modulares e curvas elípticas começava agora a desvanecer-se lentamente. Frey foi a Berkeley, onde falou com Ken Ribet, um brilhante especialista em teoria dos números que se formara em Harvard e havia trabalhado com Mazur em temas correlacionados. Frey regressou à sua Alemanha nativa. Três anos depois foi convidado a dar uma conferência no centro de Oberwolfach, bem dentro da Floresta Negra.
Oberwolfach, localizado num lindo e silencioso lugar, longe das cidades e das multidões, fora concebido como centro de conferências e encontros de trabalho sobre matemática. O centro subsidia anualmente cerca de cinquenta encontros internacionais sobre diferentes temas matemáticos. Os professores, até mesmo os participantes, são escolhidos exclusivamente por convite. São feitos todos os esforços com a finalidade de permitirem a fácil troca de ideias entre os especialistas de diferentes países. Em 1984 Gerhard Frey proferiu uma conferência sobre a teoria dos números. Fez o que parecia uma afirmação maluca. As folhas mimeografadas, cheias de fórmulas matemáticas, que passou durante a conferência, pareciam implicar que, se a conjectura de Shimura-Taniyama fosse verdadeira, o último teorema de Fermat ficaria provado, o que não fazia qualquer sentido. Quando Ken Ribet ouviu pela primeira vez o enunciado de Frey, pensou que era uma brincadeira. O que poderia a modularidade das curvas elípticas ter a ver com o último teorema de Fermat?, perguntou a si próprio. Não voltou a pen- sar nesta estranha afirmação por mais tempo e regressou ao trabalho habitual. Mas havia muitas pessoas, em Paris e noutros lados, interessadas no enunciado indemonstrado e de algum modo incompleto de Frey. Jean-Pierre Serre escreveu uma carta privada a um matemático cujo nome era J.-F. Mestre. Esta carta tornou-se pública e Serre publicou posteriormente um artigo em que repetia as próprias conjecturas expressas na carta a Mestre21.
O teorema de Ribet
Ken Ribet, que, inicialmente, pensou que este enunciado era uma brincadeira, começou a pensar nas conjecturas de Serre e acabou por reconhecer nelas algo que ele já havia formulado por si próprio quando encontrara tempo para pensar na «brincadeira» de Frey. Tratava-se de certas aclarações dos enunciados de Ger-hard Frey, que, se provados, estabeleceriam a seguinte impli- cação:
Conjectura de Shimura-Taniyama ® último teorema de Fermat
A forma como a ideia de Frey funcionava era genial. Frey raciocionou da seguinte forma: suponhamos que o último teorema de Fermat não era verdadeiro. Então para alguma potência n maior de que 2 haveria uma solução para a equação de Fermat: xn + yn = zn, onde x, y e z são números inteiros. Esta solução particular, a, b e c, daria então origem a uma curva elíptica específica. Frey escreveu seguidamente a equação geral desta curva resultante da solução da equação de Fermat. A sua conjectura apresentada em Oberwolfach estabelecia que esta mesma curva, agora chamada curva de Frey, seria um animal muito estranho. Era mesmo tão estranho que, provavelmente, poderia nem sequer existir. E, mais importante, a curva elíptica que resultaria se o último teorema de Fermat fosse falso era claramente não modular. Todavia, se a conjectura de Shimura-Taniyama fosse mesmo verdadeira, todas as curvas elípticas teriam de ser modulares. Portanto, uma curva elíptica que não fosse modular não podia, com certeza, existir. E seguir-se-ia que a curva de Frey, uma curva elíptica que não era modular (além de uma série de outras estranhas características), não podia existir. Sendo assim, as soluções para a equação de Fermat tão-pouco podiam existir. Sem a existência de soluções para a equação de Fermat, o último teorema de Fermat (que afirma que não há soluções para a equação para nenhum n > 2) estaria demonstrado. Era uma sucessão complicada de implicações, mas correspondia maravilhosamente à lógica matemática. A lógica era: A implica B; portanto, se B não é verdadeiro, então A tão-pouco pode ser verdadeiro. Contudo, o enunciado de Frey era, em si, uma conjectura. Era uma conjectura que dizia que, se outra conjectura (Shimura-Taniyama) fosse verdadeira, então daí decorreria o último teorema de Fermat. O par de conjecturas subsequentes na carta de Serre para Mestre permitiu mais tarde a Ken Ribet pensar na conjectura de Frey em termos claros.
Ken Ribet nunca se havia interessado antes pelo último teorema de Fermat. Começara como químico principal na Universidade de Brown. Sob a influência e tutela de Kenneth F. Ireland, Ribet foi atraído para a matemática e interessou-se pelas funções zeta, pelas somas de exponenciais e pela teoria dos números. Pôs de parte o último teorema de Fermat, «um daqueles problemas sobre os quais nada de verdadeiramente importante poderá dizer-se mais para a frente». Esta era uma perspectiva seguida por muitos matemáticos, porque os problemas da teoria dos números tendem a ser isolados sem qualquer esquema unificador ou princípio geral por trás deles. Contudo, o que é interessante no último teorema de Fermat é o facto de varrer a história da matemática desde os primórdios da civilização até à actualidade. E a solução do teorema por fim alcançada também abrange a matemática a toda a largura, envolvendo campos para além da teoria dos números: álgebra, análise, geometria e topologia — virtualmente toda a matemática.
Ribet continuou até alcançar um doutoramento em matemática na Universidade de Harvard. Aí, primeiro indirectamente, depois mais directamente, através do doutoramento, ficou sob a influência do grande teórico dos números e geómetra Barry Mazur, cuja visão inspirou todos os matemáticos envolvidos mesmo nos mais pequenos esforços a tentarem provar o último teorema de Fermat. O artigo de Mazur sobre o ideal de Eisenstein actuou como uma derivação da teoria dos ideais desenvolvida no século passado por Ernst Kummer para os modernos campos da matemática, a geometria algébrica e as novas aproximações à teoria dos números através da geometria22.
Ken Ribet tornou-se, enfim, professor de matemática na Universidade da Califórnia em Berkeley e fez investigação sobre a teoria dos números. Em 1985 ouviu falar da ideia «louca» de Frey de que, se existisse uma solução da equação de Fermat, isto é, se o último teorema de Fermat fosse falso, então essa solução daria origem a uma curva muito estranha. Esta curva de Frey seria associada a uma curva elíptica que não poderia ser modular. O par de conjecturas na carta de Serre para Mestre motivou-o a tentar provar a conjectura de Frey. Embora não estivesse verdadeiramente interessado no último teorema de Fermat, Ribet reconheceu que se havia tornado um caso quente e logo numa área que ele conhecia bem. Na semana de 18 a 24 de Agosto de 1985, num encontro sobre geometria algébrica aritmética em Arcata, Califórnia, começou a pensar no enunciado de Frey, tendo o problema permanecido na sua cabeça até ao ano seguinte. Quando, no início do Verão de 1986, ficou livre das suas obrigações docentes em Berkeley, Ribet voou para a Alemanha, onde iria fazer investigação num famoso centro mundial de matemática, o Instituto Max Planck. Mal chegou ao instituto, fez a sua grande investida. Era agora quase capaz de provar a conjectura de Frey.
Mas ainda não havia chegado o momento. Quando voltou a Berkeley, Ribet correu até Barry Mazur, que estava de visita a Harvard. «Barry, vamos tomar uma chávena de café», sugeriu Ribet. Os dois retiraram-se para um café popular junto ao campus da Universidade da Califórnia. Enquanto tomava um cappuccino, Ribet confidenciou a Mazur: «Estou a tentar generalizar o que fiz para ser capaz de provar a conjectura de Frey. Só me falta conseguir esta coisa para essa generalização [...]» Mazur olhou para o que ele estava a mostrar-lhe. «Mas tu já fizeste isso, Ken», disse ele, «apenas precisas de acrescentar alguma estrutura extra de gama 0 de N e de aplicar o teu argumento, e já está!» Ribet virou-se para Mazur, de novo para o cappuccino e outra vez para Mazur com incredulidade. «Meu Deus, estás absolutamente certo!», disse. Mais tarde voltou ao seu gabinete para acabar a prova. «A ideia do Ken foi brilhante», exclamou Mazur ao descrever a prova engenhosa de Ken Ribet depois de ser publicada e ficar a ser conhecida no mundo dos matemáticos.
Ribet formulou e demonstrou um teorema que estabelecia que, se a conjectura de Shimura-Taniyama fosse verdadeira, então o último teorema de Fermat decorreria dela como consequência directa. O homem que apenas um ano antes pensara que a sugestão de Frey seria uma brincadeira provava agora que a «brincadeira» era, afinal, uma realidade matemática. A porta para atacar o problema de Fermat, recorrendo aos métodos modernos da geometria algébrica aritmética, estava agora bem aberta. Agora o mundo apenas precisava de alguém que provasse a quase impossível conjectura de Shimura-Taniyama.
Então o último teorema de Fermat seria automaticamente verdadeiro.
Um sonho de criança
A pessoa que queria fazer exactamente isso era Andrew Wiles. Quando tinha 10 anos de idade, Andrew Wiles foi à biblioteca da sua cidade, em Inglaterra, e olhou para um livro de matemática. Esse livro falava do último teorema de Fermat. O teorema, tal como estava descrito no livro, parecia tão simples que qualquer criança podia percebê-lo. Nas próprias palavras de Wiles, «dizia-se que nunca poderão ser encontrados números, x, y e z, tais que x3 + y3 = z3. Por muito que se tente, nunca, nunca serão encontrados tais números. E dizia-se que o mesmo era verdade para x4 + y4 = z4, para x5 + y5 = z5, e assim sucessivamente... Parecia tão simples. E dizia-se também que ninguém conseguira demonstrá-lo nos últimos três séculos. Eu queria fazê-lo [...]»
Nos anos 70 Andrew Wiles foi para a universidade. Quando acabou o curso, foi admitido como estudante de investigação de matemática em Cambridge. O seu orientador era o professor John Coates. Wiles tinha de abandonar o sonho de criança de demonstrar o último teorema de Fermat. A investigação sobre o problema seria tal perda de tempo que nenhum estudante de graduação poderia dar--se a esse luxo. Além disso, que orientador de doutoramento teria aceite um estudante a trabalhar num enigma tão antigo que afastara as mentes mais brilhantes de uma solução durante três séculos? Na década de 70 Fermat não estava em moda. O que estava «a dar» nesse tempo, o tópico realmente quente na teoria dos números, eram as curvas elípticas. Assim, Andrew Wiles passou o tempo a fazer investigação sobre as curvas elípticas e sobre uma área designada por teoria de Iwasawa. Concluída a dissertação de doutoramento, quando lhe foi dado o título, conseguiu uma posição em matemática na Universidade de Princeton e foi para os Estados Unidos. Aí continuou a investigação sobre as curvas elípticas e a teoria de Iwasawa.
Uma velha chama reacendida
Era uma noite quente de Verão e Andrew Wiles estava a beber um chá frio na casa de um amigo. De repente, no meio da conversa, esse amigo disse: «A propósito, já ouviste dizer que o Ken Ribet acabou de provar a conjectura épsilon?» A conjectura épsilon era o nome que os especialistas em teoria dos números davam informalmente à conjectura de Frey, com as modificações introduzidas por Serre, sobre a conexão entre o último teorema de Fermat e a conjectura de Shimura-Taniyama. Wiles estava electrificado. Naquele momento sabia que a sua vida estava a mudar. O sonho de criança de que tinha de provar o último teorema de Fermat — um sonho que tivera de abandonar para pegar em pesquisas mais fiáveis — reapareceu com uma força incrível. Foi para casa e começou a pensar como poderia provar a conjectura de Shimura-Taniyama.
«Nos primeiros anos», confidenciou mais tarde, «sabia que não tinha competidores, já que sabia que ninguém — eu incluído — tinha a mínima ideia por onde começar.» Decidiu trabalhar em secretismo e no isolamento. «Demasiados espectadores prejudicariam a concentração, e descobri bem cedo que uma simples menção de Fermat despertaria logo demasiado interesse.» É claro que há muitos matemáticos dotados e capazes, especialmente num sítio como Princeton, e o perigo de alguém concluir um trabalho — fazendo até melhor — é bem real.
Por uma razão ou outra, Wiles fechou-se no sótão e pôs-se a tra-balhar. Abandonou todos os outros projectos de investigação para se dedicar totalmente a Fermat. Recorreria a todo o poder da maquinaria moderna da álgebra, geometria, análise e outras áreas da matemática. Faria também uso dos resultados matemáticos importantes dos seus contemporâneos e dos seus antecessores históricos; utilizaria os métodos inteligentes de demonstração de Ribet e os seus resultados; servir-se-ia das teorias de Barry Mazur e das ideias de Shimura, Frey, Serre, André Weil e de muitos, muitos outros matemáticos.
A maior grandeza de Wiles, diria Gerhard Frey mais tarde, consistia em que acreditava no que estava a fazer num tempo em que qualquer matemático no mundo estava convencido de que a conjectura de Shimura-Taniyama não poderia ser demonstrada no século xx.
Para provar a conjectura de Shimura-Taniyama, Andrew Wiles sabia que tinha de demonstrar que qualquer curva elíptica é modular. Tinha de mostrar que qualquer curva elíptica cujas soluções figurassem num donute era realmente uma forma modular disfarçada. O donute era, de alguma forma, este espaço de funções intricadamente simétricas no plano complexo designadas por formas modulares. Ninguém tinha qualquer ideia de como mostrar uma ligação tão estranha entre estas duas entidades aparentemente tão diferentes.
Wiles percebeu que a melhor ideia seria tentar contar o número de curvas elípticas, contar o número de curvas elípticas modulares e mostrar então que esse «número» era igual. Esta construção permitiria provar que as curvas elípticas e as curvas modulares elípticas eram uma e a mesma coisa e, portanto, que qualquer curva elíptica seria mesmo modular, como a conjectura de Shimura-Taniyama proclama.
Wiles percebeu duas coisas. Uma era a de que não tinha de provar a conjectura de Shimura-Taniyama inteira, mas apenas um caso especial: as curvas elípticas semiestáveis com números racionais como coeficientes. A demonstração de que a conjectura era verdadeira para este caso restrito de curvas elípticas seria suficiente para estabelecer o último teorema de Fermat. A outra coisa que Wiles sabia era que «contar» não iria servir aqui porque estava a trabalhar com variáveis infinitas. O conjunto das curvas elípticas semiestáveis era infinito. Qualquer número racional a/b, onde a e b são números inteiros, daria outra curva elíptica (diz-se uma curva elíptica sobre os racionais). Já que há infinitos números desses — a e b podem ser qualquer um dos muitos números infinitos 1, 2, 3, 4, …, até ao infinito, há infinitas curvas elípticas. Então, contando como sabemos fazê-lo, não iria resultar.
Dividindo um grande problema em muitos pequenos
Wiles pensou que talvez pudesse tentar trabalhar com pro-blemas mais pequenos, um de cada vez. Talvez pudesse olhar para conjuntos de funções elípticas e ver o que poderia fazer com elas. Era uma boa estratégia, já que dividia o problema de modo que, passo a passo, pudesse perceber cada uma das eta- pas. Antes de mais, algumas curvas elípticas eram já conheci- das como modulares. Eram resultados muito importantes, desenvolvidos por muitos outros especialistas da teoria dos números. Mas cedo Andrew Wiles se apercebeu de que olhar apenas para as curvas elípticas e tentar contá-las por comparação com as for-mas modulares talvez não fosse uma boa forma de abordar a questão — estava a trabalhar com dois conjuntos infinitos. De facto, não estava mais perto de uma solução do que o céptico André Weil quando disse: «Não vejo qualquer razão contra isso, já que ambos os conjuntos são numeráveis [infinitos, mas da ordem de infinidade dos números inteiros e dos números racionais, não da ordem mais alta de infinidade dos números irracionais e do contínuo], mas também não vejo qualquer razão para a validade desta hipótese [...]» Decorridos dois anos sem chegar a lado nenhum, Wiles tentou uma nova aproximação. Pensou que talvez pudesse transformar as curvas elípticas em representações de Galois e então contar essas representações de Galois por correspondência com as formas modulares.
A ideia era excelente, apesar de não muito original. O princípio por trás desta tentativa era interessante. Os especialistas em teoria dos números preocupam-se em encontrar soluções de equações, tais como a equação de Fermat. A teoria matemática dos corpos de números situa este problema no contexto das extensões de corpos. Os corpos são, em geral, grandes colecções infinitas que são difíceis de analisar. O que os teóricos dos números muitas vezes fizeram foi usar as teorias de Évariste Galois, a chamada teoria de Galois, de modo a fazerem uma translação desses problemas relativos a corpos complicados para aquilo a que chamamos grupos. Por vezes, um grupo é gerado por um conjunto finito de elementos (em vez de infinito). Usar a teoria de Galois permite aos teóricos dos números passar de uma colecção infinita para uma representada por um conjunto finito. Esta translação do problema constitui um passo em frente, já que um número finito de conjuntos é muito mais fácil de estudar do que um número infinito. A estratégia parecia resultar para alguns conjuntos de curvas elípticas. Era uma boa investida. Todavia, decorrido um ano, Wiles estava encravado outra vez.
O artigo de Flach
O que Andrew Wiles estava a tentar fazer agora era contar os conjuntos de representações de Galois correspondentes às curvas elípticas (semiestáveis), comparando-os, por sua vez, com as formas modulares, e mostrar que eram idênticos. Ao proceder assim, ele estava a usar a área da sua especialidade, em que havia feito a sua dissertação, a chamada teoria horizontal de Iwasawa. Wiles estava a tentar utilizar esta teoria para conseguir a cha- mada fórmula do número de classes, um resultado de que preci-sava para a «contagem». Mas aqui deparava novamente com uma parede de cimento. Nada que pudesse fazer o aproximaria mais da resposta.
No Verão de 1991 Wiles estava numa conferência em Boston, onde encontrou o seu primeiro orientador de doutoramento em Cambridge, Jonh Coates. O professor Coates disse a Wiles que um dos seus estudantes, Matthias Flach, baseando-se num trabalho já feito por um russo chamado Kolyvagin, imaginara um sistema de Euler (assim chamado em homenagem a Leonhard Euler) numa tentativa para provar a fórmula do número de classes. Era exactamente aquilo de que Wiles precisava para a sua prova da conjectura de Shimura-Taniyama — se realmente pudesse estender os resultados parciais de Flach ao quadro mais amplo da fórmula do número de classes. Wiles estava extasiado ao ouvir Coates falar acerca deste trabalho de Flach. «Era feito à medida» para o seu problema, disse Wiles, como se Matthias Flach tivesse feito todo este trabalho só para ele. E Wiles abandonou imediatamente todo o seu trabalho na teoria horizontal de Iwasawa e embrenhou-se dia e noite no trabalho de Kolyvagin e de Flach. Se o seu «sistema de Euler» realmente resultasse, Wiles iria, provavelmente, conseguir o resultado sobre o número de classes e a conjectura de Shimura-Taniyama seria provada para curvas elípticas semiestáveis — o suficiente para provar o último teorema de Fermat.
Era, contudo, um trabalho duro e estava fora do âmbito das teorias de Iwasawa, que Wiles conhecia tão bem. Wiles sentia cada vez mais necessidade de encontrar alguém com quem pudesse falar. Queria alguém que pudesse verificar os seus progressos nestas águas nunca antes navegadas, mas alguém que nada revelasse a ninguém.
Um bom amigo
Wiles teve, finalmente, de tomar uma decisão: deveria continuar a ter tudo debaixo do maior secretismo, como havia feito até aqui, ou desistir dessa ideia e falar a alguém familiarizado com a teoria dos números? Por fim, decidiu que, provavelmente, não conseguiria grandes progressos se mantivesse o actual secretismo. Como ele próprio disse, era possível trabalhar num problema uma vida inteira e não ver resultados alguns. A necessidade de comparar notas com outras pessoas acabou por prevalecer sobre a necessidade intensa de guardar tudo para ele próprio. Mas agora a questão era: quem? A quem poderia confiar este segredo?
Em Janeiro de 1993, após seis anos em que trabalhou sozinho, Wiles fez esse contacto. Chamou o professor Nick Katz, um dos colegas do departamento de matemática de Princeton. Katz era especialista em muitas das teorias utilizadas para tentar demonstrar a fórmula do número de classes. Mas, mais importante, Katz era de inteira confiança. Nunca revelaria as intenções de Andrew Wiles. A escolha de Wiles veio a revelar-se correcta. Nick Katz manteve--se calado durante os vários meses que viria a durar o projecto. A camaradagem não fez a hermética e ciosa comunidade matemática de Princeton desconfiar de nada, mesmo depois de semanas a verem os dois a passar horas a beber café num canto da sala comum.
Mas Andrew Wiles continuava preocupado, não fosse alguém suspeitar do trabalho. Não podia correr riscos. Então vislumbrou um plano para esconder o facto de estar a trabalhar muito intensamente «nalguma coisa» com Nick Katz. Wiles iria dar um novo curso de licenciatura em matemática na Primavera de 1993, um curso a que Nick Katz iria assistir como um dos seus alunos, o que permitiria que os dois trabalhassem em conjunto sem os outros suspeitarem do que estavam a fazer. Pelo menos foi isto que Wiles disse. Os estudantes de licenciatura nunca poderiam suspeitar de que por trás destas aulas estivesse um caminho para o último teorema de Fermat, e Wiles iria poder penetrar nos seus cérebros para detectar possíveis buracos na sua teoria com a ajuda do seu bom amigo Katz.
O curso foi anunciado. Designado por «Cálculos com curvas elípticas», era suficientemente inocente para que ninguém viesse a suspeitar de alguma coisa. No início do curso o professor Wiles disse que o objectivo do curso era estudar alguns ensaios recentes de Matthias Flach sobre a fórmula do número de classes. Não have-ria qualquer menção a Fermat, nenhuma menção a Shimura ou a Taniyama, e ninguém podia suspeitar de que a fórmula do número de classes que iria ser estudada seria a pedra angular para provar o último teorema de Fermat. E ninguém poderia fazer uma ideia de que o verdadeiro objectivo das aulas não era ensinar estudantes com o nível de uma licenciatura em matemática, mas permitir que Wiles e Katz trabalhassem juntos neste problema sem suspeições dos colegas, enquanto ao mesmo tempo podiam dispor de estudantes graduados insuspeitos para lhes verem e corrigirem o trabalho.
Mas após algumas semanas estes estudantes foram-se embora. Não podiam manter-se num curso que não ia realmente a lugar algum. O único «estudante» que parecia saber alguma coisa e participava na aula era o outro professor de matemática que se sentava ao lado deles. Deste modo, decorrido algum tempo, Nick Katz era o único da aula. Mas Wiles apenas usava a «aula» para escrever a sua longa demonstração do teorema do número de classes no quadro, passando para o passo seguinte em cada aula, com Nick Katz a verificar cada passo.
As lições não revelavam erros. Parecia que a fórmula do número de classes estava a resultar e que Wiles estava no caminho certo para a solução do problema de Fermat. E, desta forma, na parte final da Primavera de 1993, à medida que o curso ia chegando ao fim, Andrew Wiles tinha quase acabado. Mesmo assim, ainda lutava contra um último obstáculo. Era capaz de provar que a maioria das curvas elípticas eram modulares, mas para algumas, poucas, continuava sem prova. Pensou que poderia vencer estas dificuldades e, em geral, estava optimista. Wiles sentia que era altura de falar a mais uma pessoa para tentar ganhar um pouco mais de clareza nas últimas dificuldades que lhe surgiam. Chamou então outro colega do departamento de matemática de Princeton, o professor Peter Sarnak, que também jurou secretismo. «Penso que estou quase a demonstrar o último teorema de Fermat», disse ao petrificado Sarnak.
«Era inacreditável», diria Sarnak mais tarde. «Estava estupefacto, extasiado, perturbado — quero dizer... lembro-me de ter sido difícil dormir nessa noite.» Havia agora, portanto, dois colegas a tentarem ajudar Wiles a terminar a sua prova. Apesar de ninguém suspeitar do que andavam a fazer, as pessoas estavam a notar qualquer coisa. E, apesar de sustentar que jamais alguém descobriu qualquer coisa através dele, Sarnak admitiu mais tarde que talvez tenha deixado cair «algumas pistas...».
A última peça do puzzle
Em Maio de 1993 Andrew estava sentado sozinho à sua secretária. Estava a ficar de alguma forma frustrado. Parecia que as poucas curvas elípticas que lhe escapavam não queriam aproximar-se. Simplesmente não conseguia provar que eram modu-lares. E precisava delas também, se queria provar que todas as curvas elípticas (semiestáveis) eram modulares, daí decorrendo, portanto, o último teorema de Fermat. Fazer isso para a maioria das curvas elípticas semiestáveis era um grande resultado matemático em si, mas não o suficiente para atingir o seu objectivo. Para descansar um pouco da intensa pesquisa que não o levava a lado algum, Wiles pegou num velho artigo do seu grande mestre, Barry Mazur, da Universidade de Harvard. Mazur tinha feito algumas descobertas de fundo em teoria dos números — resultados que inspiraram muitos especialistas neste campo, incluindo Ribet e Frey, cujo trabalho abriu caminho ao esforço de Wiles. O artigo de Mazur que Wiles estava agora a reler era uma extensão da teoria dos ideais, começando por Kummer e Dedekind e continuando ainda com um terceiro matemático do século xix — Ferdinand Gotthold Eisenstein (1823-1852). Apesar de ter morrido novo, Eisenstein fez grandes progressos na teoria dos números. São atribuídas a Gauss estas palavras: «Houve apenas três matemáticos que marcaram a sua época: Arquimedes, Newton e Eisenstein.»
O artigo de Mazur sobre o ideal de Eisenstein23 tinha uma linha que desta vez captou a atenção de Wiles. Mazur dizia que era possível passar de um conjunto de curvas elípticas para outro. A troca tinha a ver com os números primos. O que Mazur dizia era que quem estivesse a lidar com curvas elípticas baseadas no número primo 3 poderia transformá-las usando o número primo 5, por exemplo, para poder estudá-las. Esta troca, 3-para-5, era exactamente aquilo de que Wiles precisava. Estava amarrado por não ser capaz de provar que certas classes de curvas elípticas baseadas no número primo 3 eram modulares. E aqui Mazur dizia que era possível trocá-las para curvas baseadas no número 5. Mas Wiles já tinha provado que estas curvas baseadas em 5 eram modulares. Deste modo, a troca 3-para-5 era o truque final. Pegou nas difíceis curvas elípticas baseadas no 3 e transformou-as nas baseadas no 5, que eram conhecidas por serem modulares. Mais uma vez, uma ideia brilhante de um outro matemático ajudou Wiles a ultrapassar um trabalho aparentemente impossível. Andrew Wiles tinha, finalmente, acabado.
A época era óptima também. No mês seguinte, Junho, o seu orientador inicial, Jonh Coates, iria organizar uma conferência sobre a teoria dos números em Cambridge. E todos os grandes nomes em teoria dos números estariam lá. E Cambridge era a velha cidade natal de Wiles e onde havia ido para se licenciar. Não seria perfeito apresentar lá a sua prova do último teorema de Fermat? Wiles estava agora a correr contra o tempo. Tinha de juntar todos os pedaços da sua demonstração de que a conjectura de Shimura--Taniyama era verdadeira para as curvas elípticas semiestáveis, o que significava que a curva de Frey não podia existir. E, se a curva de Frey não podia existir, isso significava que não podiam existir soluções para a equação de Fermat para n > 2 e, em conclusão, o último teorema de Fermat estava provado. Para a redacção pormenorizada Andrew Wiles necessitou de mais de 200 páginas. Conseguiu acabar mesmo a tempo de apanhar o avião para Inglaterra. E no fim da última conferência emergiu vitorioso, com o público a aplaudir e as câmaras a dispararem flashes.
O depois na matemática
Agora era altura da revisão pelos pares. Normalmente, um resultado matemático — qualquer descoberta académica, para este efeito — é submetido a uma revista com referee. Tais revistas são o veículo mais usado pelos estudiosos para submeterem o seu trabalho a possíveis publicações. A obrigação da revista é então a de enviar o artigo proposto a especialistas nessa área para determinar se está ou não correcto e se contém ou não um contributo que valha a pena publicar. As publicações em revistas com referee são o sustento do mundo académico. A duração num cargo, a promoção e, por vezes, os níveis de salário e os aumentos estão todos dependentes da produção do investigador de artigos publicados em revistas com referee.
Mas Andrew Wiles escolheu uma abordagem diferente. Em vez de submeter a prova a uma revista matemática profissional — como qualquer outro teria feito —, apresentou-a numa conferência. Houve, provavelmente, duas ordens de razões. Durante os anos de trabalho na sua demonstração, Wiles estava obcecado com o secretismo. Se submetesse a demonstração a uma revista, a demonstração seria enviada a um número de peritos escolhidos pela revista e um deles, ou algum editor, talvez passasse alguma coisa para o grande público. Wiles, provavelmente, estava também preocupado com que alguém que lesse a demonstração proposta pudesse de alguma forma roubá--la e enviá-la para publicação com o seu nome. Isto, infelizmente, acontece mesmo no mundo académico. A outra razão, ligada à primeira, é que Wiles queria manter a ânsia do suspense à medida que apresentava a sua demonstração em Cambridge.
Mas, mesmo assim, mesmo tendo apresentado os resultados na conferência, o trabalho continuava a precisar de ser analisado pelos peritos. Os passos tinham de ser revistos pelos seus pares, isto é, outros especialistas na teoria dos números teriam de penetrar na demonstração de Wiles, linha a linha, para se assegurarem de que ele tinha mesmo conseguido provar o que pretendia.
Surge uma lacuna
As 200 páginas do artigo de Wiles foram enviadas a um grande número de especialistas de primeiro plano em teoria dos números. Alguns deles expressaram rapidamente preocupações, mas a generalidade dos matemáticos pensou que a demonstração estava, provavelmente, correcta. Em todo o caso, era preciso esperar pelo veredicto dos especialistas. «Oh, sim!», disse Ken Ribet, quando lhe perguntei se acreditava na demonstração de Wiles. «Não concordei com o que algumas pessoas começaram a dizer depois de lerem a demonstração — nomeadamente que não havia aqui qualquer sistema de Euler.»
Um dos especialistas escolhidos para analisarem a demonstração de Wiles foi o seu amigo de Princeton, Nick Katz. O professor Katz passou dois meses inteiros, Julho e Agosto de 1993, a não fazer mais nada senão estudar a demonstração inteira. Todos os dias se sentava à secretária e, lentamente, lia linha a linha, todos os símbolos matemáticos, todas as implicações lógicas, para se assegurar de que fazia perfeito sentido e seria mesmo aceitável para qualquer matemático que lesse a demonstração. Uma ou duas vezes por dia Katz enviava uma mensagem por correio electrónico para Andrew Wiles, que ficara longe de Princeton nesse Verão, perguntando-lhe «o que queres dizer nesta linha desta página?», ou «não vejo como é que esta implicação resulta da anterior», etc. Wiles respondia de volta por correio electrónico e, se o problema precisasse de mais pormenores, enviava um fax para responder a Katz.
Um dia, quando Katz havia já percorrido cerca de dois terços do longo manuscrito de Wiles, surgiu-lhe um problema. Parecia inocente de início, como um dos muitos a que Wiles respondera para completa satisfação de Katz. Mas não desta vez. Em resposta às questões de Katz, Wiles mandou de volta por correio electrónico uma resposta. Mas Katz teve de recorrer outra vez ao e-mail: «Con-tinuo a não perceber, Andrew.» Então desta vez Wiles enviou um fax, tentando fazer uma ligação lógica. Mas, mais uma vez, Katz não estava satisfeito. Alguma coisa não estava, pura e simplesmente, certa. Tratava-se de um dos argumentos que Wiles e Katz haviam analisado cuidadosamente na Primavera, enquanto Wiles estava a dar o seu «curso». Qualquer dificuldade já devia ter sido limada. Mas, aparentemente, a lacuna na lógica de Wiles escapou a ambos. Possivelmente, se os estudantes de licenciatura tivessem continuado, um deles teria alertado os dois para o problema.
Na altura em que Katz detectou o erro já outros matemáticos por todo o mundo estavam ao corrente exactamente do mesmo problema na demonstração de Wiles. Aqui não havia simplesmente lugar para qualquer sistema de Euler — e nada havia a fazer. E sem o sistema de Euler — supostamente uma generalização do anterior trabalho de Flach e Kolyvagin — não havia fórmula do número de classes. Sem a fórmula do número de classes era impossível «contar» as representações de Galois das curvas elípticas e compará-las com as formas modulares e a conjectura de Shimura-Taniyama não ficava estabelecida. E sem a conjectura de Shimura-Taniyama provada como correcta não havia demonstração do último teorema de Fermat. Resumindo, a lacuna no sistema de Euler fez desmoronar tudo como num castelo de cartas.
A agonia
Andrew Wiles voltou a Princeton em finais de 1993. Estava em-baraçado, aborrecido, zangado, frustrado, humilhado. Prometera ao mundo a demonstração do último teorema de Fermat — mas não podia fornecê-la. Em matemática, como em quase todos os outros campos, não há realmente «segundos prémios» ou prémios para quem «também tentou». O abatido Wiles estava de volta ao sótão, tentando salvar a sua demonstração. «Neste ponto estava a esconder um segredo ao mundo», recordou Nick Katz, «e penso que deve ter-se sentido bastante desconfortável em relação a isso.» Outros colegas tentaram ajudar Wiles, incluindo o seu antigo estudante Richard Taylor, que estava a dar aulas em Cambridge, mas se juntou a Wiles, em Princeton, para tentar ajudá-lo a estabelecer a demonstração.
«Durante os primeiros sete anos em que trabalhei sozinho gozei cada minuto», recordou Wiles, «não interessando quão difíceis ou aparentemente impossíveis de transpor eram as barreiras que enfrentava. Mas agora fazer matemática desta forma tão exposta não era seguramente o meu estilo. Não tenho vontade de voltar a repetir a experiência.» E a má experiência durou e durou. Richard Taylor, acabado o ano sabático, voltou a Cambridge e Wiles continuava a não vislumbrar um fim à vista. Os colegas olhavam-no com uma mistura de expectativa, esperança e pena, mas o seu sofrimento era claro para todos à sua volta. As pessoas queriam saber. Queriam ouvir notícias boas, mas nenhum dos colegas se atreveu a perguntar-lhe como estava a ir a demonstração. Fora do departamento, o resto do mundo estava também curioso. A certa altura, na noite de 4 de Dezembro de 1993, Andrew Wiles dirigiu uma mensagem por correio electrónico ao grupo de notícias em computador Sci.math, ao qual pertenciam vários especialistas em teoria dos números e outros matemáticos:
Devido à especulação acerca do estado do meu trabalho sobre a conjectura de Shimura-Taniyama e o último teorema de Fermat, irei dar um breve resumo da situação. Durante o processo de revisão emergiu um certo número de problemas, a maioria dos quais foram resolvidos, mas ainda não rectifiquei um em particular [...] Acredito que serei capaz de acabar isto num futuro próximo usando as ideias explicadas nas conferências de Cambridge. O facto de ainda faltar muito trabalho no manuscrito torna-o inválido para distribuição em pré-publicação. No meu curso em Princeton, que começa em Fevereiro, irei dar uma informação completa sobre este trabalho.
Andrew Wiles
O passo post morten
Mas Andrew Wiles estava prematuramente optimista. E, fosse qual fosse o curso que estivesse a planear dar em Princeton, não iria trazer qualquer solução. Quando já tinha passado mais de um ano desde aquele efémero triunfo em Cambridge, Andrew Wiles estava a perder a esperança e a esquecer a demonstração falhada.
Numa manhã de segunda-feira de 19 de Setembro de 1994 Wiles estava sentado à secretária na Universidade de Princeton com montes de papéis a rodearem-no. Decidiu que ia dar uma olhada final na demonstração antes de a deitar fora com desprezo e abandonar toda a esperança de provar o último teorema de Fermat. Queria ver exactamente o que o impedia de construir o sistema de Euler. Queria saber — só para satisfação própria — por que tinha falhado. Por que não havia ali nenhum sistema de Euler? — Queria precisar qual o ponto técnico que estava a fazer falhar tudo. Se ia desistir, pelo menos, pensava que merecia uma resposta que lhe dissesse por que estava errado.
Wiles estudou os papéis em frente dele, concentrando-se muito intensamente durante cerca de trinta minutos. E então viu exactamente por que era incapaz de fazer funcionar o sistema. Finalmente, percebeu o que estava mal. «Foi o momento mais importante da minha vida inteira de trabalho», diria mais tarde, exprimindo esse sentimento. «De repente, de uma forma totalmente inesperada, tive uma revelação incrível. Nada que faça outra vez vai [...]» Nesse momento saltaram-lhe as lágrimas e Wiles ficou muito emocionado. O que Wiles percebeu naquele momento marcado pelo destino era «tão indiscritivelmente belo, tão simples e tão elegante... e olhei precisamente com descrença.» Wiles apercebeu-se de que o que fazia exactamente falhar o sistema de Euler era o que faria funcionar a abordagem da teoria horizontal de Iwasawa, que havia abandonado três anos antes. Wiles olhou fixamente para o papel durante muito tempo. Devia estar a sonhar, pensou, era demasiado bom para ser verdade. Mas mais tarde disse que era simplesmente demasiado bom para ser falso. A descoberta era tão poderosa, tão bonita, que tinha de ser verdade.
Wiles andou de um lado para o outro do departamento durante várias horas. Não sabia se estava acordado ou a dormir. De vez em quando voltava à secretária para ver se a sua fantástica descoberta ainda lá estava — e estava. Foi para casa. Tinha de dormir por cima disto — talvez de manhã encontrasse alguma falha neste novo argumento. Um ano de pressão do mundo inteiro, um ano de tentativas umas atrás das outras, tinham abalado a sua confiança. De volta à secretária pela manhã, a incrível pedra preciosa que havia encontrado no dia anterior ainda lá estava à sua espera.
Wiles escreveu a demonstração usando a abordagem corrigida da teoria horizontal de Iwasawa. Finalmente, tudo se encaixava nos devidos lugares. A abordagem que havia feito três anos antes era a correcta. E deu-se conta disso graças ao falhanço do caminho na esteira de Flach e Kolyvagin que havia escolhido em dado momento. O manuscrito estava pronto para ser enviado. Emocionado, Andrew Wiles entrou na sua área do computador. Enviou mensagens por e-mail através da Internet para uma quantidade de matemáticos em todo o mundo. «Aguarde um pacote expresso federal nos próximos dias», dizia a mensagem.
Como havia prometido ao seu amigo Richard Taylor, que havia vindo de Inglaterra especialmente para o ajudar a corrigir a de-monstração, no novo artigo em que corrigia a teoria de Isawasa figuravam ambos os nomes, apesar de Wiles ter obtido o resultado depois da partida de Taylor. Nas semanas seguintes os matemáticos que receberam a correcção de Wiles analisaram todos os pormenores. Não encontraram nada errado. Wiles tinha agora usado a forma convencional para a apresentação de resultados matemáticos. Em vez de fazer o que havia feito em Cambridge um ano e meio antes, enviou os artigos a uma revista profissional, o Annals of Mathematics, onde podiam ser revistos por outros matemáticos24. O processo de revisão levou alguns meses, mas desta vez não foram encontradas falhas. O número de Maio de 1995 daquela revista continha o artigo original de Wiles de Cambridge e a correcção feita por Taylor e Wiles. O último teorema de Fermat foi, finalmente, deixado em descanso.
Teria Fermat demonstrado o teorema?
Andrew Wiles descreveu a sua prova como «uma demonstra-ção do século xx». Realmente Wiles usou o trabalho de muitos matemáticos do século xx, mas também se serviu do trabalho de matemáticos mais antigos. Todos os inúmeros elementos das construções de Wiles eram provenientes do trabalho de outros, de muitos outros. Deste modo, a demonstração do último teorema de Fermat era, na verdade, obra de um grande número de matemáticos do século xx — e de todos os que os precederam desde o tempo do próprio Fermat. De acordo com Wiles, Fermat não podia ter certamente esta demonstração em mente quando escreveu a famosa nota numa margem. Isto é, obviamente, verdade, porque a conjectura de Shimura-Taniyama não existia até ao século xx. Mas poderia Fermat ter outra demonstração em mente?
A resposta é, provavelmente, não. Mas não é uma certeza. Nunca o saberemos. Por outro lado, Fermat viveu ainda vinte e oito anos depois de escrever o seu teorema na margem. E nunca disse mais nada acerca disso. Possivelmente, sabia que não podia provar o teorema. Ou talvez pudesse ter pensado erradamente que o seu método de descida infinita usado para provar o caso simples com n = 3 podia ser utilizado numa solução geral. Ou, simplesmente, talvez se tenha esquecido do teorema e tivesse ido fazer outras coisas.
Demonstrar o teorema da maneira que foi feita nos anos 90 pre-cisou de mais matemáticos do que Fermat poderia imaginar. A na-tureza profunda do teorema reside no facto de a sua história não só varrer a civilização humana, como também a solução final do problema vir prender-se à matemática em toda a sua amplitude — de algum modo unificada. Foi esta unificação do que parecia serem áreas tão díspares da matemática que, finalmente, permitiu chegar ao teorema. E, tirando o facto de ter sido Andrew Wiles quem fez o importante trabalho final, ao provar a conjectura de Shimura- -Taniyama, que era precisa para provar o teorema de Fermat, a empreitada foi trabalho de muitas pessoas. E foram todos os seus contributos, em conjunto, que trouxeram a solução final. Sem o trabalho de Ernst Kummer não haveria teoria dos ideais e sem ideais o trabalho de Barry Mazur não teria existido. Sem Mazur não teria havia a conjectura de Frey e sem a conjectura crucial e a sua sintetização por Serre não haveria a demonstração de Ribet, segundo a qual a conjectura de Shimura-Taniyama iria estabelecer o último teorema de Fermat. E parece que nenhuma demonstração do último teorema de Fermat seria possível sem a conjectura apresentada por Yutaka Taniyama em Tóquio-Nikko em 1955 e depois aperfeiçoada e precisada por Goro Shimura. Ou seria?
Fermat, é claro, não poderia ter formulado uma conjectura tão abrangente que fosse unificar dois ramos muito diferentes da matemática. Ou poderia tê-lo feito? Nada é certo. Apenas sabemos que o teorema foi, finalmente, provado e que a demonstração foi controlada e verificada nos mínimos pormenores por muitos matemáticos em todo o mundo. Mas só pelo facto de a demonstração que existe ser muito complicada e avançada isso não significa que uma mais simples não seja possível. Ribet, de facto, indica num dos seus artigos uma direcção em que a demonstração do teorema de Fermat poderia ser feita sem que a prova da conjectura de Shimura--Taniyama fosse necessária. E talvez Fermat soubesse um conjunto poderoso de matemática «moderna», agora perdida (realmente o exemplar do Diofanto de Bachet em que supostamente escreveu as notas à margem nunca foi encontrado). Sendo assim, se Fermat possuía ou não «uma demonstração verdadeiramente maravilhosa» deste teorema, que não cabia na margem do seu livro, permanecerá para sempre um segredo.
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2006-10-21 00:56:02
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answer #4
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answered by cristal9deluz5 6
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