Um talento brasileiro conquistando o mundo
Júlio Emílio Braz, 38, mineiro no registro, mas carioca no coração, tornou-se um autor cosmopolita. Tem livros publicados em vários países da Europa, EUA e até em Cuba. Em 1989, ganhou o prêmio Jabuti com o livro Saguairu. A seguir, mais emoções - e informações - sobre a carreira, a personalidade e, por que não dizer, os sucessivos êxitos desse brasileiríssimo escritor.
IM - Como aconteceu a tradução do livro Crianças na escuridão para o idioma alemão? Quem foi o pai (ou a mãe) dessa feliz idéia?
JB - A tradução de Crianças na escuridão começou a partir de uma senhora chamada Helene Schär, diretora geral da Fundação Baobab, com sede em Basel, Suíça, e que se dedica a viabilizar a publicação de livros de autores das Américas, Ásia e África no continente europeu. Ela encontrou meu livro na Feira de Bologna, Itália, há três ou quatro anos atrás, gostou e fez contatos junto a outras instituições na Suíça para a tradução e publicação de meu livro, o que acabou acontecendo através de uma co-edição entre as editoras Nagel & Kimche, da Suíça, e St. Gabriel, da Áustria.
Com o livro Crianças na Escuridão, acaba de receber o Austrian Children´s Books Award, prêmio concedido pelo Ministério da Cultura da Áustria, onde já foi lançado e é sucesso literário. Crianças na Escuridão já está em sua 10ª edição pela Editora Moderna e é também sucesso no Brasil. Segundo o autor, há planos para que o livro vire filme pela TV alemã em breve.
IM - Como você sentiu a receptividade dos europeus às suas obras?
JB- Confesso que ao chegar na Suíça para uma série de palestras, esperava que o exotismo fosse o principal interesse entre meus ouvintes. Surpreendeu-me descobrir um interesse muito grande pelo Brasil que as agências de viagens não vendem para eles. Um Brasil além do samba, da natureza exuberante, do futebol. Um Brasil triste, mas para o qual eles olham com muito interesse - ao ponto de eu ter encontrado muitos suíços estudando e falando o nosso português e não o de Portugal. Outra coisa que me surpreendeu foi o grande número de instituições, ONGs, que trabalham na ajuda e recuperação dos menores abandonados no Brasil. O momento mais emocionante dessa série de palestras foi quando fui conversar com estudantes de 10, 11 anos na cidadezinha de Arbon e, ao final da conversa, depois de ganhar a inevitável barra de chocolate de presente e uma cartinha de agradecimentos, recebi um segundo envelope das crianças: eram cinqüenta francos suíços reunidos por eles numa vaquinha para que eu desse para as crianças de rua do Brasil. Não foi nada premeditado nem "caridade" incentivada por adultos (até os professores ficaram surpreendidos), mas uma solidariedade boa, genuína e gostosa, daquelas que faz com que a gente ainda tenha esperanças na raça humana e descreia que os jovens são como aquelas cinco criaturas abjetas que incendiaram um índio em Brasília. Quase chorei e estou procurando uma instituição a quem eu possa dar os cinqüenta francos e queria também estimular as crianças a escreverem para as crianças de Arbon, para que elas troquem experiências sobre suas vivências.
"A criança européia, como o menor abandonado do Brasil, também quer ser amada. Nisso, elas se parecem demais. São iguais."
IM - Você acha que a criança européia consegue entender a dimensão do nosso problema com menores abandonados? Como elas reagem a isso?
JB- A criança européia, como o menor abandonado do Brasil, também quer ser amada. Nisso, elas se parecem demais. São iguais. O problema em si talvez escape à compreensão delas, pois não se vê isso no seu país. As reações vão de incredulidade a muita tristeza (adultos choraram durante a leitura de trechos de meus livros nas palestras).
IM - Quais são os seus temas preferidos para escrever? Existe uma tendência natural para determinados assuntos ou eles "pintam" de acordo com o momento e o ambiente?
JB - Sou apaixonado pela temática social. Acho que os jovens do meu país têm direito de saber como ele realmente é, até para mudá-lo no que ele tem de ruim e aprimorá-lo no que ele certamente tem de bom. Por isso, gosto tanto de abordar tal temática em meus livros. A garotada compreende não se choca como seus pais e alguns editores. A vida não choca. O que choca realmente é a covardia de certas pessoas diante dela. Vida é para ser vivida, com cuidado, mas sem medo. Acho que a literatura tem tudo a ver com esse viver a vida na medida em que ela traz o mundo para nós quando teimamos em não vê-lo, mas principalmente porque ler é pensar. O ato de ler é um gesto de envolvimento e consciência. O homem não lê impunemente. Consciente ou inconscientemente, o homem se envolve com o mundo que o cerca depois de cada parágrafo lido. Como surgem os temas? Através das cartas que recebo, principalmente de estudantes. Tenho correspondentes no Brasil inteiro. Sou também alegria de livreiros e editores, pois assino mais revistas e jornais do que efetivamente leio, compro livros que se amontoam à espera de uma leitura generosa e, principalmente, copiando um dos autores que mais gosto e respeito, Jack London, anoto tudo. Não gosto de temas da moda e, por isso, mesmo quando os abordo, procuro dar um quê de universalidade e atemporalidade ao tema e à abordagem no livro.
"O ato de ler é um gesto de envolvimento e consciência. O homem não lê impunemente. Consciente ou inconscientemente, o homem se envolve com o mundo que o cerca depois de cada parágrafo lido."
IM - Você já publicou mais de 75 livros infanto-juvenis e deve ter mais um tanto guardado na gaveta. De onde vem essa energia toda? Você mantém uma metodologia para trabalhar?
JB- Nem eu sei de onde sai tanta idéia. Eu simplesmente adoro contar e perseguir novas e novas histórias. Parafraseando Stephen King, posso não ser um grande escritor, mas simplesmente sinto-me compelido a escrever. Ultimamente, com tantos compromissos, minha rotina de trabalho tem sofrido um pouco, mas geralmente escrevo das 8 h às 17 h, de segunda a sexta. Só excepcionalmente escrevo à noite e, antes de começar um livro, gosto de fazer o que eu chamo de "esqueleto", que é rascunhar um livro. Sucintamente, é assim: primeiro eu escolho um título (que pode ser provisório), depois faço uma sinopse com o principal da história. Em seguida, nomeio e defino física e psicologicamente os personagens principais e estipulo um número aleatório de capítulos (sempre muda para mais ou para menos, mas serve de norte para o trabalho narrativo). Em cada um deles, digo o que vai acontecer de mais importante e aí sento na máquina e começo a escrever. Não significa que eu siga fielmente o que tem no "esqueleto" (livros importantes já mudaram inteiramente do "esqueleto" para o texto final. Exemplo: Felicidade não tem cor )
"Parafraseando Stephen King, posso não ser um grande escritor, mas simplesmente sinto-me compelido a escrever."
IM - Durante a sua recente viagem à Europa, algum fato pitoresco chamou sua atenção?
JB- Existem muitos, tais como o fato de eu ter encontrado dois cidadãos de Manhumirim, minha cidade natal, na palestra em Berna. Também houve a inquietação geral de todos com o fato de eu não usar casaco e andar de mangas curtas ou arregaçadas no frio suíço. Como se todo brasileiro tivesse de virar picolé diante de um friozinho à-toa... Além, é claro, de meu nome ser pronunciado em muitos lugares como se eu fosse um toureiro espanhol.
"Talvez um dos fatores mais decisivos para o brasileiro ler menos em relação a outros povos é que até pouco tempo, ler nem era considerado lazer e até a mídia (telenovelas, por exemplo) consagrava o estereótipo do(a) louco(a), excêntrico, tímido e ruim de arranjar namorado(a) para o jovem ou adulto que lesse muito ou que fosse um tipo intelectualizado"
IM - Você também tem obras traduzidas e publicadas na América Latina. Conhecendo bem todos esses públicos, daria para estabelecer um parâmetro entre os leitores brasileiros, os europeus e os latino-americanos?
JB- Sem sombra de dúvida, o europeu lê mais e por várias razões, entre elas dinheiro, tempo, interesse. Só para ilustrar essa afirmação, eu levei 190 livros editados no Brasil (portanto, em português) e foi tudo vendido. Pelo menos em 50% dos casos, por suíços que liam e falavam português. Infelizmente, dos três, quem ainda lê menos é o brasileiro. Mexicanos e argentinos, só para citar alguns latino-americanos, lêem bastante. Talvez um dos fatores mais decisivos para o brasileiro ler menos em relação a outros povos é que até pouco tempo, ler nem era considerado lazer e até a mídia (telenovelas, por exemplo) consagrava o estereótipo do(a) louco(a), excêntrico, tímido e ruim de arranjar namorado(a) para o jovem ou adulto que lesse muito ou que fosse um tipo intelectualizado. E, finalmente, tem o problema da grana. Quem ganha 120 reais por mês só tem a alternativa de caçar uma biblioteca pública (nunca muito próxima) ou ler jornais e revistas.
IM - Quais os seus planos imediatos, além de se preparar para ser pai de primeira viagem?
JB- Estou com um monte de sinopses amontoadas na cadeira da esquerda (provisoriamente meu escritório se apossou de metade da mesa da copa e meus projetos imediatos - 25, para ser mais exato - são tantos que me deixam louco). Tem coisas realmente inéditas e originais. Além do filho que está chegando, há a possibilidade de outro livro meu, Um conto de fim de mundo , sobre prostituição infantil na Amazônia, ser lançado em alemão.
"Não acredito no grito e na agressão como pedagogias eficientes para se manter uma criança quieta ou obediente, até porque a obediência conseguida a tapas e gritos é mais subserviência e temor."
IM - Como profundo conhecedor da realidade das crianças brasileiras, que tipo de formação você pretende dar a seu filho? A violência das ruas e as neuroses dos moradores de grandes centros urbanos, como o Rio, o preocupam?
JB- Não vou colorir o mundo em que ele vai viver. Vou ensiná-lo a se emocionar com as belas coisas desse mundo, mas também a se indignar com as coisas ruins que há nele. Vou tentar ajudá-lo a usar a cabeça e a pensar por si mesmo, mesmo que seus pensamentos sejam diferentes dos meus. Vou brigar com a mãe dele, que já me avisou que serei eu que ficarei de castigo, pois ela já me considera um tio-bobão e seguramente serei um pai-bobão.
Não acredito no grito e na agressão como pedagogias eficientes para se manter uma criança quieta ou obediente, até porque a obediência conseguida a tapas e gritos é mais subserviência e temor. Não quero que meu filho tenha medo de mim, mas vou ver o que posso fazer para ter o respeito dele. Não tenho fórmula pronta, mas acho que não vou me dar tão mal assim. Lembro-me das cinco surras que levei de meus pais. Se eu posso me lembrar de cinco é sinal de que não foram muitas e nem tão violentas assim, né? O que sou aprendi com meus pais, principalmente com minha mãe, e ela nunca me disse nada sobre honestidade, boa vontade e solidariedade. O seu exemplo disse tudo. Se eu conseguir ser um quinto de tudo o que minha mãe e meu pai foram para mim, serei um pai e tanto. O mundo não me assusta e eu vou tentar ensinar meu filho a não ter medo dele.
Ah, e quanto ao Rio... ele continua lindo demais. A violência, mal comparando, é como as rugas que aparecem de vez em quando no rosto da Vera Fischer: só servem para nos lembrar que, mesmo coroa, ela ainda é uma gata pra lá de interessante.
"Eu considero cada livro escrito, uma vitória sobre a impossibilidade, sobre o branco angustiante do papel, e por isso mesmo, um sucesso."
IM - Qual é, hoje, o seu grande sonho ainda não realizado?
JB- Viver numa terra onde o cidadão, independentemente de sua cor, fé ou condição social, seja respeitado em suas opiniões e em sua própria existência, onde meu presidente fale a mesma língua que eu - não me agrada homens que falam muitas línguas e que não saibam compreender os sentimentos de um simples cidadão. Um lugar onde eu possa ser feliz e ninguém é inteiramente feliz se sabe que a infelicidade de outros está tão próxima de si. Bom, como disse um velho corsário francês há muito tempo atrás, cada um luta pelo que mais lhe faz falta e o que mais me faz falta é isso, apenas isso. Sucesso ou fracasso são apenas duas palavras sem muita importância para mim. Egocêntrico ou não, eu considero cada livro escrito, uma vitória sobre a impossibilidade, sobre o branco angustiante do papel, e por isso mesmo, um sucesso. Além do mais, escrever para mim é puro prazer e a gente não mensura ou não deveria mensurar prazer, não é mesmo? Feliz é o homem que consegue transformar o seu prazer em sua profissão. Portanto, amigos, eu sou um homem feliz.
Entrevista realizada por Hebe Ester Lucas
para o jornal Imagem Moderna
fonte: www.moderna.com.br
2006-10-18 10:22:23
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answer #3
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answered by John - Se chamarem digam que saí 7
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