Fábrica de fraudes: Em meio a saques, malas e carros-fortes, tudo parece casual. Mas nada é por acaso no laboratório do PT
A máquina de fazer dinheiro do doutor Valério pode parecer uma geringonça montada com peças coletadas ao acaso: pega-se um empréstimo no BMG, descobre-se uma agência discreta do Rural e junta-se um projeto de poder ambicioso como o do PT e um tesoureiro amador como Delúbio Soares - e estamos conversados. Nada, no entanto, é casual no esquema. Está cada vez mais evidente que Marcos Valério não foi uma invenção do PT de Delúbio. Com suas agências de publicidade, que fazem publicidade e outras coisas muito menos públicas, Valério passou a operar para os petistas depois de já ter se testado no ramo trabalhando para políticos de outros partidos, como o PSDB e o PFL.
Mas foi com o PT que Valério ocupou posição de destaque na montagem de um esquema que começava com os negócios em estatais como os Correios ou a Eletronorte, desembocava em suas agências de publicidade, passava pelo Rural e pelo BMG e terminava no mensalão, para os aliados, e no mesadão, para os próprios petistas. Tudo clandestinamente.
A escolha do BMG e do Rural para servirem de escala e biombo foi uma decisão meticulosa. No início de 2003, quando começaram a repassar dinheiro ao PT por meio das empresas de Marcos Valério, os dois bancos tinham interesses milionários no governo. O BMG era um banco pequeno, que nem sequer aparecia na lista das cinqüenta maiores instituições bancárias do país. Controlado pelo clã Pentagna Guimarães, uma das mais tradicionais famílias mineiras, o BMG pretendia decolar emprestando dinheiro a aposentados e pensionistas do INSS com desconto direto na folha de pagamento, o chamado crédito consignado. Seu projeto, porém, esbarrava na lei brasileira, que não permitia esse tipo de operação. Já o Rural era um banco acuado. Alvo de uma CPI comandada pelo PT, a CPI do Banestado, o Rural caminhava no fio da navalha. A CPI detectara operações ilegais do Rural de 700 milhões de dólares feitas por meio de uma offshore, o Trade Link Bank (veja reportagem). Além da CPI, o banco também era investigado pela Polícia Federal, pelo Banco Central e pela Receita Federal.
Com o Rural acuado e o BMG de olho no dinheiro dos velhinhos do INSS, o PT vislumbrou a possibilidade de arrancar dinheiro fácil em Minas Gerais. Estava certíssimo. Contabilizando os dois empréstimos ao PT e os outros seis concedidos às empresas de Valério, Rural e BMG entregaram ao PT exatamente 74,7 milhões de reais entre 2003 e 2004. Entregaram, porque esse valor nunca foi pago - e ninguém jamais se mexeu para cobrá-lo, postura raríssima em instituições bancárias. No caso do BMG, que entregou a Valério 41,1 milhões de reais, chama atenção a fragilidade das garantias. O banco chegou a aceitar, como garantia, o contrato de uma das empresas de Valério com os Correios. O contrato era vistoso, de 29 milhões de reais, mas o BMG nem se preocupou com o fato de que a menor parte desse contrato, apenas 3,6 milhões de reais, pertencia à empresa de Valério. O grosso do dinheiro era destinado a outras empresas e fornecedores. Onde se viu um banco aceitar tamanha ficção como se fosse "garantia real"?
Há muitos indícios de que os contratos eram apenas simulações para justificar as transferências de dinheiro ao PT. Dos oito empréstimos que Delúbio e Valério arrancaram dos dois bancos, apenas um foi pago. É um empréstimo de 12 milhões de reais, tomado pela agência SMPB junto ao BMG em 25 de fevereiro de 2003. A dívida foi quitada um ano depois de contraída, por quase 15 milhões de reais. Mas mesmo esse pagamento soa como farsa. A quitação só foi possível porque a Graffiti, outra empresa de Valério, recebeu, no mesmo dia, outro empréstimo do BMG, no valor de quase 16 milhões de reais. Eis como funciona a ciranda financeira, trocando em miúdos: Valério pega dinheiro no BMG, fica um tempo sem pagar, o BMG libera mais dinheiro, e ele paga a conta inicial cravando já uma nova conta. Ou seja: dos oito empréstimos feitos pela dupla Valério e Delúbio, a única dívida que chegou a ser saldada teve como lastro o dinheiro do próprio banco credor...
O Banco Rural, que concedeu três empréstimos num total de 31,2 milhões de reais, não chegou a receber nada. Nem o principal nem os juros. A dívida original, se fossem levados em conta os mecanismos de mercado das operações verdadeiras, estaria hoje cotada em 58,8 milhões de reais. "É muito dinheiro para não cobrar na Justiça, especialmente para um banco de médio porte, como o Rural. Tudo indica que houve um acordo", diz Miguel de Oliveira, presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). Por que o Rural e o BMG, então, toparam entrar num esquema em que dão empréstimos e nunca recebem um tostão de pagamento? Examinando-se o caso de cada um, descobre-se que pode ter havido vantagens extraordinárias - maiores até do que a quitação de uma dívida.
No início de 2003, bem no começo do governo Lula, aconteceu uma reunião discretíssima em Brasília, na qual Valério e Delúbio apresentaram José Dirceu, então ministro da Casa Civil, ao presidente do BMG, Ricardo Pentagna Guimarães. Ali, acertou-se que o governo editaria uma medida provisória permitindo o tal "crédito consignado" pelo qual aposentados e pensionistas do INSS poderiam tomar empréstimo com desconto em folha. Em setembro de 2003, o governo cumpriu a promessa. Editou a MP 130, e o BMG foi o primeiro banco autorizado a operar a nova modalidade de empréstimo. Durante três preciosos meses, o BMG reinou sozinho no mercado. Só depois de três meses é que outros bancos conseguiram credenciar-se no INSS para fazer o mesmo. Já era tarde demais. O BMG já era líder disparado no mercado. Graças ao crédito consignado aos velhinhos do INSS, que hoje representa 90% de seus negócios, o BMG virou fenômeno. Seu lucro líquido, que em 2002 foi de 85 milhões de reais, saltou para 275 milhões de reais em 2004 - um espantoso crescimento de 223%.
A relação com o PT também teve dividendos inestimáveis para o Rural. O deputado José Mentor, do PT paulista, que trabalhava como relator da CPI do Banestado, preparou um documento final em que simplesmente não há menção ao Rural. Mentor excluiu o banco da lista de indiciados. Mentor, que chegou a viajar a Belo Horizonte para tomar os depoimentos dos executivos do Rural, apresentou duas versões de suas conclusões. A primeira, concluída em dezembro de 2004, tinha oito capítulos apenas no índice. No corpo do documento, havia capítulos a menos. Um assessor legislativo que trabalhou na CPI disse a VEJA que Mentor mandou retirar 100 páginas do relatório, justamente as que incriminavam o Rural. "O relatório é meu. Só entra o que eu quero", diz Mentor. Na segunda versão de seu relatório, apresentada em fevereiro deste ano, o indiscreto descompasso entre o índice e o corpo do documento foi corrigido - e o Rural safou-se de qualquer problema na CPI.
De acordo com Fernanda Karina Somaggio, a ex-secretária de Valério, Mentor e Valério se encontraram várias vezes. A agenda de Fernanda registra cinco encontros. Num deles, está anotado: "J. Mentor - transferir a reunião de amanhã para segunda e ver quando é o assunto Rural". Valério já admitiu ser lobista do Rural junto ao governo federal. Na semana passada, descobriu-se que Valério, o lobista, pagou 120 000 reais ao escritório de advocacia do deputado, o mentor do fiasco que salvou a pele do Rural na CPI. "Prestei um serviço a um advogado de Minas Gerais. Não sabia que o cheque era do Marcos Valério", diz.
A mesma documentação que Mentor desprezou, por inútil, motivou a abertura de um inquérito pela Polícia Federal, em 2002. O juiz federal Marcelo Cardozo da Silva, da 2ª Vara Criminal de Foz do Iguaçu, enviou a movimentação da offshore do Rural à Receita Federal e ao Banco Central. O juiz exigia que se tomassem providências diante do que chamou de "fundados elementos que apontam para a prática de crimes de sonegação fiscal e de crimes contra o sistema financeiro". O inquérito da PF foi então aberto. Mas - esse Rural é danado de sortudo - nunca andou. Há um ano, diante da letargia policial, a procuradora da República Paula Conti Tha, de Curitiba, pediu à PF que interrogasse a cúpula do Rural sobre a movimentação não declarada de 700 milhões de dólares nos Estados Unidos. Até agora, porém, a PF não cumpriu o pedido. Também não se tem notícia de nenhuma autuação da Receita Federal contra o Rural. No Banco Central, dois processos administrativos, nos quais diretores do banco eram acusados de gestão fraudulenta, foram arquivados graças a pareceres do procurador da Fazenda Glênio Guedes - aquele mesmo procurador que recebeu 902.000 reais de Valério dias antes de assinar um documento inocentando os dirigentes do Rural.
Dos bancos mineiros, o esquema clandestino do PT tem sólidas ramificações na máquina pública, conexão que não pára de produzir vítimas fatais. Na semana passada, o ex-secretário-geral do PT Silvio Pereira enviou uma carta à direção do partido pedindo sua desfiliação. Silvinho, como era chamado pelos agora ex-companheiros, é aquele que Dirceu disse que uma CPI "minimamente séria" pegaria. Pegou. Uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, revelou que Pereira ganhou um jipão de mais de 70.000 reais de presente da empresa baiana GDK, que venceu cinco licitações para prestar serviço à Petrobras. Outra vítima estrelada que também tombou por engordar o próprio patrimônio é o ex-diretor de marketing do Banco do Brasil Henrique Pizzolato. Pizzolato contratou a agência DNA, de Marcos Valério, para prestar serviços de propaganda ao BB em setembro de 2003. E embolsou 326.000 reais, em dinheiro vivo, sacados das contas de Valério no Rural. E assim, em meio a pacotes de dinheiro e carrões de luxo, o PT vai produzindo seu crepúsculo moral.
2006-10-17 13:18:00
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answer #7
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answered by Zack Doppler 4
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