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Carlos Drumond de Andrade

2006-10-12 03:09:30 · 2 respostas · perguntado por Iria 1 em Artes e Humanidades Artes Visuais Outras - Artes Visuais

2 respostas

A moça mostrava a coxa

A moça mostrava a coxa,
a moça mostrava a nádega,
só não mostrava aquilo
– concha, berilo, esmeralda –
que se entreabre, quatrifólio,
e encerrra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea,
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
á visão dos seios claros,
qua pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o maximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-d'alva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjoo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quando mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia...
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta...

Pesquise nestes site :
http://cseabra.utopia.com.br/poesia/poesias/0549.html

http://www.releituras.com/mbandeira_cdandrade.asp

2006-10-12 03:13:24 · answer #1 · answered by Direito a Liberdade 1 · 0 0

Poxa me deu trabalho achar este texto: mais vai ai o poema pra vc, ele virou filme, viu!!!

O PADRE, A MOÇA
Carlos Drummond de Andrade
Lição de Coisas. Editora José Olympio, março de 1962



O padre furtou a moça, fugiu
Pedras caem no padre, deslizam
A moça grudou no padre, vira sombra,
aragem matinal soprando no padre.
Ninguém prende aqueles dois,
Aquele um
Negro amor de rendas brancas.
Lá vai o padre,
atravessa o Piauí, lá vai o padre,
bispos correm atrás, lá vai o padre,
lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre,
diabo em forma de gente, sagrado.

Na capela ficou a ausência do padre
E celebra a missa dentro do arcaz.
Longe o padre vai celebrando vai cantando
todo amor é o amor e ninguém sabe
onde Deus acaba e recomeça.


Forças volantes atacam o padre, quem disse
que exércitos vencem o padre? Patrulhas
rendem-se
O helicóptero
desenha no ar o triângulo santíssimo,
o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos
douram a face da moça.
E no alto da serra
O padre
entre as cordas da chuva
o padre
no arcano da moça
o padre.

Vamos cercá-los, gente, em Goiás
Quem sabe se em Pernambuco?
Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas
em pé no caminho da BR 15 com seu rosário
na mão
lá vai
e a moça vai dentro dele, é reza de padre.

Ai que não podemos
contra vossos poderes
guerrear
ai que não ousamos
contra vossos mistérios
debater
ai que de todo não sentimos
contra vosso pecado
o fecundo terror da religião.

Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.


E o padre não perdoa: lá vai
levando o Cristo e o Crime no alforje
e deixa marcas de sola de poeira.
Chagas se fecham, tocando-as,
filhos resultam de ventre estéril
mudos e árvores falam
tudo é testemunho
Só um anjo de asas secas, voando de Crateús,
senta-se à beira-estrada e chora
porque Deus tomou o partido do padre.


Em cem léguas de sertão
é tudo estalar de joelhos
no chão
é tudo implorar ao padre
que não leve outras meninas
para seu negro destino
ou que leve tão leve
que ninguém lhes sinta falta,
amortalhadas, dispersas
na escureza da batina.

Quem tem sua filha moça
padece muito vexame;
contempla-se numa poça
de fel em cerca de arame.

Mas se foi Deus quem mandou?
Anhos imolados

não por sete alvas espadas
mas por um dardo do céu:
que se libere esta presa
à sublime natureza
de Deus com fome de moça.
Padre, levai nossas filhas!

O vosso amor, padre, queima
como fogo de coivara
não saberia queimar.
E o padre, sem se render
ao ofertório das virgens,
lá vai, coisa preta no ar.

Onde pousa o padre
é Amor-de-Padre
onde bebe o padre
é Beijo-de-Padre
onde dorme o padre
é Noite-de-Padre
mil lugares-padre
ungem o Brasil
mapa vela acesa.


Mas o padre entristece. Tudo engoiva
em redor. Não, Deus é astúcia,
e para maior pena, maior pompa.
Deus é espinho. E está fincado
No ponto mais suave deste amor.

Se toda a natureza vem a bodas,
e os homens se prosternam,
e a lei perde o sumo, o padre sabe
o que não sabemos nunca, o padre esgota
o amor humano.

A moça beija a febre do seu rosto.
há um gládio brilhando na alta nuvem
que eram só carneirinhos há um instante.
– Padre, me roubaste a donzelice
ou fui eu que te dei o que era dável?
Não fui eu quem te amei como se ama
Aquilo que é sublime e vem trazer-me,
rendido,
o que eu não merecia mas amava?
Padre, sou teu pecado, tua angústia?
Tua alma se escraviza à tua escrava?
És meu prisioneiro, estás fechado
em meu cofre de gozo e de extermínio,
e queres liberar-te? Padre, fala!
ou antes, cala. Padre, não me digas
que no teu peito amor guerreia amor,
e que não escolheste para sempre.



Que repórteres são esses
entrevistando um silêncio?
O Correio, Globo, Estado
Manchete, France-Presse, telef
otografando o invisível?
Quem alça
cabeça pensa
e nas pupilas rastreia
uma luz fosforescente
responde não?
Quem roga ao padre que pose
e o padre posa e não sente
que está posando
entre secas oliveiras
de um jardim onde não chega
o retintim deste mundo?
E que vale uma entrevista
se o que não alcança a vista
nem a razão apreende
é a verdadeira notícia?



É meia-treva, e o Príncipe baixando
entre cactos
sem mover palavra fita o padre
na menina-dos-olhos ensombrada.
A um breve clarear,
o Príncipe, em toda sua púrpura
como só merecem defrontá-lo
os que ousam um dia. Os dois se medem
na paisagem de couro e ossos
estudando-se.
O que um não diz outro pressente.
Nem desafio nem malícia
nem arrogância ou medo encouraçado:
o surdo entendimento dos poderes.

O padre já não pode ser tentado.

Há um solene torpor no tempo morto,
e, para além do pecado,
uma zona em que o ato é duramente
ato.
Em toda a sua púrpura
o Príncipe desintrega-se no ar.



Quando lhe falta o demônio
e Deus não o socorre;
quando o homem é apenas homem
por si mesmo limitado,
em si mesmo refletido;
e flutua
vazio de julgamento
no espaço sem raízes;
e perde o eco de seu passado,
a campainha de seu presente,
a semente de seu futuro;
quando está propriamente nu:
e o jogo, feito
até a última cartada da última jogada.
Quando. Quando.
Quando.



Ao relento, no sílex da noite,
os corpos entrançados transfundidos
sorvem o mesmo sono de raízes
e é como se de sempre se soubessem
uma unidade errante a convocar-se
e a diluir-se mudamente
Mas de rompante a mão do padre sente
o vazio do ar onde boiava
a confiada morna ondulação
A moça, madrugada, não existe
O padre agarra a ausência e eis que um soluço
humano, desumano e longiperto
trespassa a noitidão a céu aberto

A chama galopante vai cobrindo
um tinido de freios mastigados
e de patas ferreadas,
e em sete freguesias
passa e repassa a grande mula aflita.
Urro
de fera
fúria
de burrinha
grito
de remorso
choro de criança ?

Por que Deus se diverte castigando?
Por que degrada o amor sem destruí-lo?
e a cabeça da mula sem cabeça
ainda é o rosto de amor, onde sem sigilo
a ternura defesa vai flutuando?
Um rosto de besta
entre as ciências do padre
entre as poderosas rezas do padre
nenhuma para resgatá-lo
Resta deitar a febre na pedra
e aguardar
o terceiro canto do galo
No barro vermelho da alva
a mão descobre
o dormir de moça misturado
ao dormir de padre.



E já sem rumo prosseguem
na descrença de pousar,
clandestinos de navio
que deitou âncora no ar

Já não se curvam fiéis
vendo réprobo passar,
mas antes dedos em sustos
implantam a cruz no ar

A moça, o padre se fartam
da própria gula de amar
O amor se vinga, consome-os
laranja cortada no ar.

Ao fim da rota poeirenta
ouve-se a igreja cantar
Mas cerraram-se-lhe as portas
e o sino entristece no ar.

O senhor bispo, chamado
com voz rouca de implorar,
trancou-se na sua Roma
de rocha, castelo de ar.

Entre pecado e pecado
há muito de epilogar.
Que venha o padre sozinho,
o resto se esfume no ar.

Padre e moça de tão juntos
não sabem se separar.
Passa o tempo no destinguo
entre duas nuvens no ar.



E de tanto fugir já fogem não dos outros
mas de sua mesma fuga a distraí-los.
Para mais longe, aonde não chegue
a ambição de chegar:
área vazia
no espaço vazio
sem uma linha
uma coroa
um D.

A gruta é grande
e chama por todos os ecos
organizados.

A gruta nem é negra
de tantos negrumes que se fundem
nos ângulos agudos
a gruta é branca, e chama.

Entram curvos, como numa igreja
feita para fiéis ajoelhados.
Entram baixos
terreais
na posição dos mortos, quase.
A gruta é funda
a gruta é mais extensa do que a gruta
o padre sente a gruta e o padre invade
a moça
a gruta se esparrama
sobre o musgo, o calcário, o úmido medo
à maneira católica do sono.

Primas de luz primeira despertando
de uma dobra qualquer de rocha mansa.
Cantar angélico subindo
em meio a cega fauna cavernícola
e dizendo de céus mais que cristãos
sobre o musgo, o calcário, o úmido medo
da condição vivente
Que perdão mais solene se humaniza
e chega à provação e paira em benção?
Que festiva paixão lança seu carro
de ouro e glória imperial para levá-los
à presença de Deus feita sorriso?
Que fumo de suave sacrifício
lhes afaga as narinas?
Que santidade súbita lhes corta
a respiração, com visitá-los?
Que esvair-se de males, que desfal
ecimentos teresinos?
Que sensação de vida triunfante
no empalidecer de humano sopro contingente?

Fora
ao crepitar da lenha pura
e medindo das chamas o declínio,
eis que perseguidores se perseguiam.

2006-10-12 11:33:44 · answer #2 · answered by sabes190023 2 · 1 0

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