A GÊNESE DA GEOGRAFIA MODERNA E SUAS
CORRENTES EPISTEMOLÓGICAS
Thiago Alexandre Soares de Lemos¹
Resumo
O presente artigo objetiva descrever e analisar o surgimento da Geografia como ciência, além das suas principais correntes epistemológicas – determinismo, possibilismo, método regional, nova Geografia e Geografia crítica.
1. Introdução
O caráter científico da Geografia provém de sua origem alemã, na primeira metade do século XIX, através dos trabalhos pioneiros do naturalista e viajante Alexander von Humboldt, e do filósofo e historiador Karl Ritter. Contudo a Geografia, “considerada no seu sentido mais lato, como ciência da Terra, é um dos mais antigos ramos do saber humano” (De Martonne, 1953, p.2).
O horizonte geográfico para os povos primitivos da Europa era muito restrito; a expansão do conhecimento geográfico europeu só se deu após as colonizações greco-fenícias (estabelecendo colônias em todo o Mar Mediterrâneo e Negro, além de organizar expedições – os chamados périplos – para regiões localizadas já em pleno Oceano Atlântico), as explorações de Alexandre (que conquistou regiões como Egito, Arábia, Pérsia e Índia), e as conquistas romanas (império que se estendeu desde o Oriente Médio até a Grã-Bretanha, passando pela África do Norte).
As primeiras viagens e explorações dos antigos gregos já produziam como resultado trabalhos geográficos, mesmo que meramente descritivos. O nome que se destaca nessas expedições é Heródoto, dando início ao que é chamado de Geografia Regional – isto é, estudos
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¹ Acadêmico da segunda fase do curso de Geografia da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.
de regiões: seus povos, suas culturas, aspectos naturais, etc. No mesmo período surge uma outra face da Geografia, a Geografia Geral, que encara o planeta com uma visão mais holística; esses estudos eram direcionados para medições de distâncias, cálculos de dimensões terrestres, entre outros. São notáveis, nos trabalhos de Geografia Geral, nomes como Tales de Mileto e Erastótenes.
O período medieval representou uma época de obscuridade para a Geografia na Europa; “é devido aos árabes que o fogo se mantém e que a actividade geográfica ainda se manifesta” (De Martonne, 1953, p. 5). Os geógrafos árabes foram grandes viajantes, que continuaram a produzir estudos importantes, ainda que descritivos.
A Idade Moderna caracterizou-se por ser o período dos grandes descobrimentos, realizados especialmente pelos navegadores portugueses e espanhóis. “Em trinta anos o horizonte geográfico, que não ultrapassava 60º de latitude por 100º de longitude, alargou-se até abranger quase toda a Terra” (De Martonne, 1953, p. 7). Nessa época, os estudos de Geografia Regional (mais ligados à Etnografia) e Geografia Geral (voltados para a Astronomia e Cartografia) tornam-se mais intensos, em razão do rápido conhecimento do planeta por parte dos desbravadores europeus, que demandavam mais estudos sobre os lugares descobertos, além de instrumentos de navegação e localização mais precisos.
O dualismo entre Geografia Geral e Regional é verificado durante toda a Antigüidade, Idade Média e Idade Moderna. A primeira grande tentativa de aproximar esses dois ramos ocorreu somente no princípio do século XIX, com Humboldt e Ritter. Somente após os estudos desses dois sábios a Geografia deixa de ser um mero “saber” para se tornar uma verdadeira ciência.
Nascendo na Alemanha, a Geografia moderna teve seus primeiros grandes mestres nesse país; a escola alemã de Geografia notou-se por seu caráter determinista, cujo principal nome é Frederic Ratzel. Em oposição ao determinismo alemão surgiu, na França, o possibilismo, corrente que teve em Vidal de la Blache seu maior expoente, consolidando a escola francesa de Geografia. Foram essas duas escolas que exerceram a maior influência no estabelecimento da Geografia brasileira, durante as primeiras décadas do século XX: o pensamento alemão presente sobretudo nos órgãos do Governo, e o francês principalmente nas recém-criadas faculdades, cujos professores vieram da França.
O método regional foi uma corrente que esteve em voga em fins do século XIX e princípios do século XX, especialmente na França e na Inglaterra, devido ao grande império colonial pertencentes a esses dois países. Após a década de 50, novos paradigmas surgiram na Geografia, afetando também a produção geográfica brasileira; primeiro, a chamada Nova Geografia ou Geografia Quantitativa, ligada à Estatística e à Matemática; esta foi, posteriormente, cedendo espaço para a Geografia Crítica, a partir do final dos anos 70, que utilizava a teoria marxista como base ideológica. Esta é, atualmente, a corrente mais difundida no Brasil, sobretudo através da obra de Milton Santos.
2. A gênese da Geografia moderna
Os estudiosos, a partir do século XVIII, procuraram dividir a ciência em vários ramos; porém, “[…] o conhecimento científico não pode ser compartimentado, ele é um só, e a divisão das ciências é apenas uma tentativa de compatibilizar a vastidão deste conhecimento com a capacidade de acumulação de conhecimentos pelo homem” (Andrade, 1989, p. 11). Intelectuais como Kant e Comte são notados pelas suas classificações científicas; contudo, as ciências humanas (com exceção da Sociologia) foram excluídas das suas classificações, inclusive a Geografia, que “só conquistaria a posição de ciência autônoma nas últimas décadas do século XIX”. (Andrade, 1989, p. 11). Meramente prático, empírico e descritivo até o final do século XVIII, o conhecimento geográfico somente adquire seu caráter científico a partir dos estudos de Alexander von Humboldt e Karl Ritter, no século XIX.
Humboldt, como naturalista e grande viajante, percorreu a Europa, a Rússia asiática, o México, a América Central, a Colômbia e a Venezuela, observando os grandes fenômenos físicos e biológicos; seus trabalhos são todos de natureza científica, sem qualquer finalidade pedagógica. Humboldt também foi animador das chamadas Sociedades de Geografia, que organizavam expedições e pesquisas em diversas partes do mundo, especialmente nas regiões dominadas pelos grandes impérios coloniais europeus. “Foi assim que os ingleses, os franceses, os belgas e em seguida os alemães fizeram o levantamento de amplos territórios na Ásia e na África, e organizaram suas colônias” (Andrade, 1989, p. 13).
Seus méritos são altamente reconhecidos: fundou os métodos de observação de quase todas as áreas dentro da Geografia Física, além de haver aplicado os princípios fundamentais da Geografia, que a fizeram definitivamente uma ciência independente e original. Humboldt possuía uma visão holística, não analisando apenas um fator isolado, e sim estabelecendo relações de causa e conseqüência entre eles – surgindo daí o princípio de causalidade; “ninguém mostrou de modo mais preciso como o homem depende do solo, do clima, da vegetação, como a vegetação é função dos fenômenos físicos, como estes mesmo dependem uns dos outros” (De Martonne, 1953, p. 13).
Além do princípio de causalidade, Humboldt também aplicou o chamado princípio de geografia geral, ou seja, nenhum lugar da Terra pode ser estudado sem o conhecimento do seu conjunto, sendo que um fenômeno verificado em determinada região pode ser generalizado para todas as outras áreas do globo com características semelhantes.
A aplicação deste princípio é o desmoronamento definitivo da barreira que separa a Geografia Regional da Geografia Geral, a aproximação destes dois ramos duma mesma ciência e a sua recíproca fecundação. No dia em que foi compreendida a significação de tudo isso nasceu a Geografia moderna. (De Martonne, 1953, p. 13).
Convém não esquecer que, “[…] apesar de naturalista, Humboldt mostra também grande curiosidade pelo homem e pela organização social e política dos territórios […], achando que há uma grande relação entre estas e as condições naturais” (Pereira, 1993, p. 117); sua obra Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha, que por alguns é considerada a primeira verdadeiramente geográfica no sentido moderno, comprova seu interesse em relacionar a sociedade e o meio onde ela se estabelece.
Ao contrário de Humboldt, Karl Ritter foi um “geógrafo de gabinete”; suas publicações são resultado de seu trabalho na Universidade de Berlim – portanto, apresentam sempre caráter pedagógico. Concentrou seus estudos nos vários sistemas de organização espacial, comparando povos, culturas, instituições e sistemas de utilização de recursos. Assim, foi o precursor do método comparativo em Geografia.
Humboldt, inicialmente, não gozou de prestígio entre os geógrafos: sua obra foi muito mais difundida entre os naturalistas. Por outro lado, Ritter exerceu uma evidente influência nos geógrafos da Alemanha, e mesmo nos da França. “O grande mérito de Ritter é ter sentido e formulado claramente os princípios que Humboldt aplicara, em vez de os enunciar dogmaticamente” (De Martonne, 1953, p. 13). Em virtude de sua grande influência, sobretudo na Alemanha, suas idéias fundamentais inspiram, até hoje, o atual movimento de delimitação da Geografia.
A influência de Humboldt e Ritter foi, portanto, decisiva para conferir à Geografia o seu verdadeiro caráter científico. “Os dois sábios alemães, de diferentes formações, davam origem a uma nova ciência de cuja existência certamente não suspeitavam ao iniciarem as suas reflexões” (Andrade, 1989, p. 13).
3. O significado da Alemanha
Conforme Mamigonian (1999, p. 169), a Geografia teve uma gênese grega – a primeira civilização a produzir estudos geográficos – e uma segunda, alemã. A segunda gênese, que resultou na institucionalização da Geografia como ciência, não se deu por acaso na Alemanha; “somente a análise da especificidade do desenvolvimento do capitalismo e das idéias neste país pode explicar as razões que fizeram a sociedade alemã valorizar a temática geográfica” (Pereira, 1992).
Duas foram as condições que propiciaram o surgimento da Geografia moderna na Alemanha: primeiro, um território fragmentado em dezenas de pequenos reinos; segundo, o desejo de expansão imperialista – constitutivo do capitalismo industrial.
Da divisão do território alemão em pequenos Estados decorrem várias outras problemáticas: a inexistência de um Estado nacional, diversidades culturais entre as várias unidades políticas germânicas e ausência de relações duradouras entre elas, a falta de um centro econômico forte e organizador do espaço, disputas de fronteiras com países vizinhos não-germânicos, e o atraso econômico dos inúmeros Estados alemães. Então, era necessário o surgimento de uma ciência que buscasse soluções práticas para os problemas colocados para a sociedade alemã da época – a unificação e a superação do atraso econômico.
Todas essas questões foram de extrema relevância, porém não foram suficientes; “se a questão que se colocava fosse meramente a fragmentação do território, a Geografia poderia ter surgido em outras regiões da Europa que viviam idêntica situação” (Pereira, 1992). O desejo de expansão imperialista apresentou-se como decisivo para a consolidação da nova ciência; “o surgimento da Geografia articula-se, pois, com motivações de natureza política. A formação do Estado nacional alemão precisa de estímulos, o que faz com que o discurso geográfico assuma uma centralidade, consolidando o sentimento de pátria através da identidade territorial” (Pereira, 1992).
Portanto, a unificação, liderada sob a égide da Prússia (um pequeno e atrasado reino feudal do Báltico, e que viria a originar a maior potência capitalista da Europa), foi animada sobretudo pelo afã de se construir um Estado alemão rico e desenvolvido, para poder competir de maneira igualitária com as grandes nações européias (França e Inglaterra). É por essa razão que a Geografia surge em território alemão, por incorporar a necessidade política e econômica, nascendo comprometida com a aristocracia prussiana.
4. As escolas nacionais e as correntes do pensamento geográfico
Após a sua institucionalização, surgem as escolas nacionais e, com elas, as correntes de pensamento. Os principais paradigmas geográficos são: determinismo, possibilismo, método regional, nova Geografia e Geografia crítica. Cada um desses paradigmas reflete a situação sócio-político-econômica da época em que se desenvolveram, sendo que, desde o surgimento da ciência geográfica, sempre houve uma ou duas correntes dominantes. Cada uma das principais escolas nacionais também teve seus trabalhos orientados para uma ou duas das correntes de pensamento – sobretudos as pioneiras: determinismo, possibilismo e método regional.
4.1 – Determinismo
A Geografia é instituída como uma disciplina universitária a partir de 1870, e “foi o determinismo ambiental o primeiro paradigma a caracterizar a Geografia que emerge no final do século XIX” (Corrêa, 1991, p. 9). Os teóricos deterministas afirmam que as condições naturais, em especial as climáticas, são determinantes para a evolução do homem; portanto, desenvolver-se-iam os povos ou países que estivessem localizados em áreas climáticas mais favoráveis.
O filósofo inglês Herbert Spencer foi o grande defensor de idéias naturalistas nas ciências sociais, sobretudo as teorias de Lamack (sobre a hereditariedade dos caracteres adquiridos) e Darwin (sobre a adaptação dos indivíduos mais bem preparados para sobreviverem no meio natural). Essas duas teorias serviram como fundamentação para a tese do determinismo ambiental.
A Geografia teve como grande nome da teoria determinista o naturalista e etnógrafo alemão Frederic Ratzel, que viveu no período da unificação alemã, estando, portanto, muito voltado para as aspirações da sociedade alemã da época. Em seu livro Antropogeografia, Ratzel fundamenta toda a sua teoria determinista, sendo por isso apontado como o fundador da escola determinista alemã. Também é considerado um dos precursores da Geopolítica, devido às suas idéias que originaram a política do “espaço vital”² e do direito de conquista dos povos “inferiores” pelos “superiores”. Essa política foi, mais tarde, utilizada por Hitler para justificar sua expansão nazista através da Europa.
A escola estadunidense também nasceu sob a influência determinista. Esse fato também se deu, como na Alemanha, por uma necessidade de afirmação nacional e expansão territorial. Os estadunidenses justificaram sua expansão e domínio de territórios mexicanos e indígenas através da teoria determinista. Ellen Semple, discípula de Ratzel, foi o principal nome do determinismo nos Estados Unidos.
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² A teoria do espaço vital defende que o território representaria “o equilíbrio entre a população ali residente e os recursos disponíveis para as suas necessidades, definindo e relacionando, deste modo, deste modo, as possibilidades de progresso e as demandas territoriais” (Corrêa, 1991, p. 11), isto é, para que uma nação possa desenvolver-se é necessário que ela possua um território suficientemente rico para atender às demandas de sua população, mesmo que essa nação necessite, para tanto, dominar territórios de outras nações.
4.2 – Possibilismo
A corrente possibilista surgiu em reação ao determinismo ambiental, inicialmente na França (final do século XIX), e posteriormente na Alemanha (início do século XX) e Estados Unidos (década de 20).
Não foi por acaso que esta corrente nasceu na França. “O possibilismo, francês em sua origem, opõe-se ao determinismo ambiental germânico. Esta oposição fundamenta-se nas diferenças entre os dois países” (Corrêa, 1991, p. 12). As rivalidades existentes entre França e Alemanha, existentes há muito tempo, aumentaram com a perda da região francesa da Alsácia-Lorena para a Prússia, durante a guerra franco-prussiana. Esse fato impulsionou o crescimento da Geografia na França, visto que a perda da guerra pela França foi atribuída não ao exército alemão, mas sim à sua Geografia.
Sob a égide possibilista, a Geografia francesa se desenvolve, tendo em Vidal de la Blache seu grande mestre. A natureza passou a ser encarada como uma fornecedora de possibilidades para a modificação humana, e não determinando sua evolução, sendo o homem o principal agente geográfico. La Blache também redefine o conceito de gênero de vida, herdado do determinismo: trata-se não mais de uma conseqüência inevitável da natureza, mas de “um acervo de técnicas, hábitos, usos e costumes, que lhe permitiram utilizar os recursos naturais disponíveis” (Corrêa, 1991, p. 13 apud Claval, 1974).
Os gêneros de vida ocorrem em uma paisagem geográfica – aquela que já foi natural e passou a ser modificada pela ação humana –, que possui uma extensão territorial razoavelmente identificável. Assim, uma região “é a expressão espacial da ocorrência de uma mesma paisagem geográfica” (Corrêa, 1991, p. 13); portanto, sendo o objeto da Geografia possibilista a região, ela se confunde com a Geografia Regional.
4.3 – Método regional
A terceira corrente de pensamento geográfico, o método regional, opõe-se às duas anteriores, visto que “a diferenciação de áreas não é vista a partir das relações entre o homem e a natureza, mas sim da integração de fenômenos heterogêneos em uma dada porção da superfície da Terra” (Corrêa, 1991, p. 14). Esse paradigma é voltado, portanto, para o estudo de áreas, regiões.
O método regional tem sido estudado desde o século XVII, por Varenius, passando por Kant e Ritter, nos séculos XVIII e XIX, respectivamente. Contudo, esse método foi esquecido na passagem do século XIX para o XX, em função da disputa vigente entre determinismo e possibilismo. Somente a partir dos anos 40, especialmente nos Estados Unidos, esse paradigma voltou a ser valorizado, tendo no centro dessa valorização o geógrafo estadunidense Richard Hartshorne.
Essa corrente evidencia a necessidade de se produzir uma Geografia regional, isto é, um conhecimento sintético sobre as diferentes áreas do globo. O pensamento de Hartshorne é de que o cerne da Geografia é a regional. Contudo, não considera que a região é o objeto da Geografia: o importante é o método de identificação das diferenciações de áreas, que são resultado de uma integração única de fenômenos heterogêneos.
O objeto da Geografia regional é unicamente o caráter variável da superfície da Terra – uma unidade que só pode ser dividida arbitrariamente em partes, as quais, em qualquer nível da divisão, são como as partes temporais da História, únicas em suas características (Corrêa, 1991, p. 16 apud Hartshorne, 1939, 643-4).
4.4 – Nova Geografia
Essa corrente do pensamento geográfico surgiu em meados do século XX, a partir da 2ª. Guerra Mundial, na Inglaterra, Estados Unidos e Suécia. Foi o período da chamada “Guerra Fria”, da recuperação econômica da Europa, do desmantelamento dos impérios coloniais e do progresso tecnológico.
O momento histórico em que surgiu esse paradigma foi caracterizado pela intensa urbanização, industrialização e expansão de capital, gerando modificações profundas na organização espacial; essas modificações inviabilizaram a aplicação dos três paradigmas tradicionais – determinismo, possibilismo e método regional –, propiciando o surgimento da nova Geografia, na qual utilizaram-se freqüentemente técnicas estatísticas e matemáticas, o emprego da geometria e de modelos normativos. Por essa razão, passou a ser conhecida também como Geografia quantitativa ou teorética.
Esse arsenal de regras e princípios resulta de um compromisso ideológico da Nova Geografia, o de justificar a expansão capitalista e seu poder imperialista; através dessa metodologia, poder-se-ia esconder a situação real, apresentando estudos que nada exprimiam. Essa foi a Geografia oficial do Brasil, durante o período da ditadura militar – regime apoiado pelos grandes Estados capitalistas, sobretudo os Estados Unidos.
4.5 – Geografia crítica
Em oposição ao pensamento da Nova Geografia emerge, a partir da década de 70, a Geografia crítica. Essa corrente é calcada no materialismo histórico e na dialética marxista.
Suas origens remontam a fins do século XIX, quando foi proposta pelo francês Elisée Reclus e pelo russo Piotr Kropotkin, ambos anarquistas. Contudo não obteve expressão, submergida pela Geografia “oficial”, ligada aos interesses dominantes.
O agravamento das tensões sociais nos países desenvolvidos, aliado aos movimentos libertários nos países subdesenvolvidos, animou o surgimento da Geografia crítica, criticando severamente a nova Geografia. “Os modelos normativos e as teorias de desenvolvimento foram reduzidos ao que efetivamente são: discursos ideológicos, no melhor dos casos empregados por pesquisadores ingênuos e bem intencionados” (Corrêa, 1991, p. 20).
A corrente crítica não foi apoiada pelo Estado capitalista como a quantitativa, visto que não podia mais desempenhar seu papel de controle, sustentado por informações oriundas de seus serviços de propaganda. Ao contrário da nova Geografia, “a Geografia crítica descobre o Estado e os demais agentes da organização espacial: os proprietários fundiários, os industriais, os incorporadores imobiliários, etc.” (Corrêa, 1991, p. 21).
As relações homem-natureza, refutadas pela nova Geografia, é retomada na corrente crítica, sob a luz do marxismo, assim como o tema da região, sob uma visão dialética.
O 3º Encontro Nacional de Geógrafos, realizado no ano de 1978 em Fortaleza, marca o surgimento da Geografia crítica no Brasil. A contribuição dos geógrafos brasileiros para as discussões da Geografia crítica é muito importante, sendo que o livro Por uma Geografia nova, de Milton Santos, é um dos marcos dessa corrente, não só para o Brasil mas também para a Geografia mundial.
5. Considerações finais
Ainda que a Geografia possua uma gênese grega, e que dela tenham resultado os primeiros estudos geográficos, sua verdadeira gênese como ciência ocorreu na Alemanha do século XIX, à luz dos trabalhos de Alexander von Humboldt e Karl Ritter. Somente após a brilhante contribuição desses grandes mestres, a Geografia pôde estabelecer-se sobre bases científicas verdadeiras, deixando de ser uma simples descrição do planeta para transformar-se em uma ciência, fundamentada na busca pelas relações entre natureza e sociedade, suas causas e conseqüências.
A corrente determinista, nascida na Alemanha, possuía uma visão extremamente ligada aos interesses nacionalistas e expansionistas alemães do século XIX que, não realizando seu desejo de formar um império colonial na África e na Ásia (assim como outros países europeus), foi retomado pelos nazistas a partir das primeiras décadas do século XX, quando os alemães procuraram dominar a Europa, além de exterminar os grupos étnicos que não eram considerados “puros”. Já o possibilismo também estava diretamente relacionado com o poder, visto que foi fundado pelo intelectual escolhido pelo governo francês para instituir a Geografia na França, Paul Vidal de la Blache. Elisée Reclus, até então o maior nome da Geografia francesa, teve sua figura esquecida por muito tempo, justamente por ser anarquista e, portanto, não se adequar aos interesses oficiais. “A Geografia de La Blache […] foi a que expandiu com maior força, porque […] atendia melhor às necessidades da burguesia francesa” (Mamigonian, 2003, p. 16).
O método regional estava voltado para a catalogação de lugares. Essa característica fez com que ele fosse difundido nos países que possuíam grandes impérios coloniais – sobretudo França e Inglaterra –, pois catalogava todas as informações necessárias sobre as regiões dominadas pelas potências imperialistas: riquezas minerais, vegetação, clima, relevo, etc.
Posteriormente, surgiu a Nova Geografia, deslumbrada com o desenvolvimento tecnológico. “Em nome da ‘neutralidade científica’, procuraram despolitizar formalmente a Geografia, procurando torná-la uma matemática espacial” (Andrade, 1992, p. 13) – neutralidade que provou ser falsa, uma vez que os quantitativistas acabaram prestando grandes serviços aos Estados capitalistas desenvolvidos, aos regimes ditatoriais e às grandes corporações empresariais, que buscavam o progresso a qualquer custo, sem nenhuma preocupação com a preservação ambiental. Esse fato ocasionou o agravamento da pobreza, o crescimento da destruição da natureza e uma série de reações populares que atingiram, obviamente, a Geografia, sendo ela uma ciência social.
Foi com esse impulso que nasceu a Geografia crítica, “reunindo em um só bloco todos aqueles que, almejando uma reforma da sociedade e melhor distribuição de renda, batalharam para sensibilizar a Geografia e os geógrafos para os problemas sociais, políticos e econômicos” (Andrade, 1992, p. 14). Essa corrente procura agir de maneira diferente de todas as outras anteriores, justamente por não atender às conveniências governamentais.
Vê-se, portanto, que a Geografia já nasceu profundamente atrelada aos interesses das classes dominantes, sempre procurando atender às necessidades das mesmas; somente a partir da década de 70, com a corrente crítica, a ciência geográfica começa a procurar satisfazer às aspirações da sociedade como um todo, buscando soluções tanto para questões internas da própria Geografia (como a definição do seu objeto e de suas categorias de análise) quanto para os problemas sócio-ambientais que estão hoje colocados de maneira tão evidente.
Referências
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CORRÊA, Roberto Lobato. As correntes do pensamento geográfico. In: ________. Região e organização espacial. São Paulo: Ática, 1991. 93 p., p. 7-21.
DE MARTONNE, Emmanuel. Noções gerais. In: ________. Panorama da Geografia – Geografia Física. Lisboa: Edições Cosmos, 1953. vol. 1, 979 p., p. 1-22.
MAMIGONIAN, Armen. A escola francesa de Geografia e o papel de A. Cholley. Cadernos geográficos, Florianópolis, n. 6, p. 7-45, maio 2003.
MAMIGONIAN, Armen. Gênese e objeto da Geografia: passado e presente. Revista Geosul, Florianópolis, v. 14, n. 28, p. 167-170, jul. 1999.
PEREIRA, Raquel Maria Fontes do Amaral. A Geografia como união entre o geográfico e o histórico. In: ________. Da Geografia que se ensina à gênese da Geografia moderna. 2. ed. Florianópolis: EDUFSC, 1993. 131 p., p. 116-123.
PEREIRA, Raquel Maria Fontes do Amaral. O significado da Alemanha para a gênese da Geografia moderna. In: Seminário de História da Ciência e Epistemologia, 2, 1992, Piracicaba, SP.
2006-10-11 05:58:09
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