DE OLHOS BEM FECHADOS
Já no título parece encontrar-se a proposta do último filme de Stanley Kubrick: devemos estar com os olhos bem fechados para podermos percorrer os caminhos sinuosos de nossas fantasias, de nossa imaginação, de nossos sonhos.
O clima do filme é bastante onírico: há vários acontecimentos, várias situações, envolvimentos, mas sem uma "finalização" ou resolução, sempre como se estivéssemos acordando antes do fechamento delas; não há plena realização de desejos! Eles são enunciados, mas não apaziguados...
O filme começa com os preparativos de um casal indo a uma festa: com roupas adequadas, a mulher tira os óculos, o marido reclama do atraso, há a combinação do horário com a babá da filha; enfim, tudo pronto. (Cabe notar a escolha de Kubrick quanto aos atores principais: Tom Cruise e Nicole Kidman também são casados na "vida real".)
Começa (só agora?), então, a alteração do estado de consciência: na festa, tanto um como outro bebem e dançam... Eles não conhecem praticamente ninguém, fora o anfitrião, Victor Ziegler, cliente do Dr. William, mas encaram isso como um acontecimento social do qual fazem parte. Já se delineiam fantasias nesse momento: em determinado instante, por estar sem o marido, ela, Alice Harford, dança com outro homem; e ele, o médico William Harford, por encontrar-se também desacompanhado, é convidado por duas mulheres a ir para um lugar mais interessante...
Mas, essas "traições" não chegam a se concretizar: ambos estão em pleno clima de sedução, porém surgem outros "chamados" da realidade, que acabam obstruindo a realização dessas fantasias: o médico é chamado para ver uma mulher com problema de overdose e Alice opta por não aceitar o convite do homem sedutor para conhecer uma coleção na casa do anfitrião.
No retorno ao lar, o casal, já despido das roupas de festa, pode então satisfazer seu impulso sexual: no reflexo de um espelho aparecem os dois abraçados, sendo que o marido fecha bem os olhos, enquanto a esposa olha com atenção para a imagem refletida.
Assim começa o filme de quase três horas de duração!
Continuando no mesmo clima de alteração de consciência, na noite do dia seguinte, Alice acende um baseado e o fuma com seu marido, conversando sobre a festa. Começam a comentar sobre as situações da noite anterior, sobre as pessoas que chegaram perto de cada um, tanto sobre o homem com quem ela dançou, como sobre as duas mulheres que estavam conversando com ele. As perguntas feitas por ambos têm sentido malicioso, como se esperassem por "confissões", para se saber sobre as "reais traições", mas, ao mesmo tempo, no sentido de confirmar que nada havia se passado concretamente. Ela pergunta, então, o que ele havia feito durante todo o tempo que havia sumido. Ele conta que tinha ido atender a uma mulher que estava com Victor Ziegler, em um banheiro, e por isso ele pedia discrição e segredo. Alice reluta um pouco, procurando por mais detalhes e depois se convence da resposta do marido. Ele, como que surpreso pela dúvida que ela parece ter quanto à sua fidelidade, diz que a havia visto dançando com um estranho, mas que não tinha ficado com ciúmes. Alice, indignada com essa resposta, comenta que ele tinha muita confiança em si próprio. Ele diz que não, que tem confiança nela.
A partir de então o clima muda e Alice começa ter uma crise de risos, até quase perder o fôlego. A princípio, William ri também, mas depois começa a ficar chateado com as insinuações que ela começa a fazer sobre a confiança depositada nela. Ele diz que tal ataque de riso poderia ser devido à maconha, explicando assim a alteração de consciência de sua esposa nesse momento, como que justificando tal situação embaraçosa. Mas, ela explica: em um outro ano, quando viajaram, ela viu um homem no hotel em que estavam e ficou totalmente perturbada com sua presença. Disse que teria largado tudo, o casamento, a filha, sua vida até então, para ficar com aquele homem, caso ele a quisesse. Isso só não aconteceu por ele ter ido embora do hotel no dia em que ela resolvera se aproximar dele. Ela dá ao marido as indicações de quem era o homem e, então, ele se lembrou do mesmo.
A partir dessa "confissão" tudo parece ter se modificado: a fantasia de William sobre seu casamento feliz, sobre ter controle e confiança em sua mulher parece ter se rompido. Nesse momento, instala-se a dúvida: ele teria estado sonhando, de olhos bem fechados até então, para não ter visto (ou por não ter podido ver) as coisas ao seu redor? Ou ele teria, agora, fechado os olhos e entrado num verdadeiro pesadelo, dando-se conta de sua cegueira, de sua total inconsciência até então?
Um chamado telefônico interrompe essa situação: a filha de um de seus clientes avisa que o pai tinha acabado de morrer em casa e pede que ele vá para lá. William sai de sua casa e no trajeto de taxi, começa a fantasiar a relação sexual de sua esposa com aquele outro homem.
Ao chegar na casa de seu cliente, recebe uma inesperada declaração de amor da filha do mesmo que, embora estando para se casar, não consegue mais calar o profundo sentimento que nutre pelo médico.
Novamente, os dois temas se repetem: sedução e traição... William, mais uma vez, não teria enxergado e reconhecido o desejo de outra mulher. Mas, alega e tenta se convencer que isso só está acontecendo por ela estar profundamente abalada pela morte do pai, daí não estar sendo lúcida. A mulher retruca, mas a situação tem que se modificar, novamente, pela aparição de seu noivo na casa. William vai embora, então, ainda confuso, tanto com os desejos de Alice, como com os dessa outra mulher.
Andando a pé, ainda fantasiando a “transa” de Alice com o outro homem, fantasia essa que vai se tornando mais furiosa, uma prostituta o convida para ir ao seu quarto. William a segue e parece querer conversar com ela. Quando tudo aponta para a realização sexual, seu celular toca. Era Alice preocupada, querendo saber a que horas ele deveria voltar, pois iria dormir. Mais uma vez, nada se concretiza e William sai do quarto da mulher, andando sem rumo pela noite, acompanhado por suas fantasias cada vez mais voluptuosas.
Sem ser proposital, ele encontra um bar onde um antigo amigo de faculdade, que havia largado a medicina para se dedicar ao piano, estava tocando. Tal amigo, Nick Nightgale, ele havia reencontrado na festa de Victor Ziegler. Por já ser muito tarde - aí o filme parece jogar com o efeito, talvez, do próprio baseado, sentido como a dilatação do tempo concreto, (pois muito foi vivido intensamente, mas faltava ainda bastante tempo para a noite acabar) - mal ele se senta à mesa, o amigo acaba sua apresentação. Com isso, ele vem se sentar junto a William e conta sobre uma festa muito intrigante, na qual ele era pago para tocar piano, só que obrigado a ficar de olhos vendados, mas o pouco que havia visto indicava que era uma fantástica orgia sexual.
Essa história excita muito a William que quer, de todo o jeito, ir a esse lugar. Porém, a festa era à fantasia, estritamente fechada, tendo que haver uma senha para entrar. Mas William consegue saber a senha (Fidélio) e resolve arriscar tudo para ir a tal lugar.
Apesar de ser muito mais tarde ainda, na mesma noite, ele consegue uma fantasia (máscara e capa) e vai à festa.
Num clima de mistério e expectativa, William assiste, num canto de uma sala enorme, uma cena interessantíssima: fazendo uma grande roda, mulheres também de máscaras e capas, ao som de "mantras", despem-se das capas, ficando de sapatos, calcinhas e máscaras, e "escolhem" homens que estão na sala. Para deleite e medo do médico, ele é um dos escolhidos. Ele acompanha a mulher, passando por salas onde "orgias" estão acontecendo (essa cena foi muito chocante para alguns americanos; no entanto, não há nenhuma cena de sexo explícito). Mas a mulher, em determinado momento, avisa-o para ir embora enquanto pode, pois todos sabiam que ele era um "penetra" (até então, William não penetrou ninguém, fora sua mulher Alice) e o dono não tolerava isso. Mas não há tempo. William é desmascarado na frente do dono da casa e é alertado para não comentar sobre o que vira ali, pois estaria correndo perigo de vida.
Muito assustado, William consegue voltar para a casa, encontrando sua mulher e filha dormindo na estabilidade e segurança de seu lar. O alívio que sente parece indicar que tudo havia sido apenas um enorme pesadelo, tentando, assim, esquecer tudo aquilo que se passara com ele.
Porém, Alice está sonhando e ri muito. William, parecendo estar enciumado e curioso com o sonho da mulher, acorda-a. Ela diz que estava tendo um pesadelo terrível: estava nua, transando com o tal homem que a tinha abalado tanto, na frente de seu marido, com o sentido de magoá-lo.
William não conta nada a ela a respeito do que tinha vivido naquela noite. Os sonhos continuam, assim, a assustar o casal: os desejos dele, percebidos intensamente antes de voltar à sua casa e os desejos dela, durante seu sonho.
No dia seguinte, querendo se defender da estranheza que tinha sido vivida durante à noite, tentando se convencer de que não teria passado de um sonho, William procura explicações, agora sob a luz do sol, sobre o que teria realmente acontecido. Só que não consegue encontrar nenhuma resposta: seu amigo teria voltado para casa, viajado para outro estado; uma mulher é encontrada morta, por overdose, sendo que William a reconhece: ela era quem o "salvou" na noite anterior. William vai até a famosa casa de onde tinha sido expulso, mas não consegue obter nenhuma informação, apenas um bilhete ameaçando-o, caso continuasse a procurar por respostas.
Mais uma vez parece tratar-se do tema onírico onde todos sabem o que está acontecendo, menos o sonhador, totalmente inconsciente e despreparado para as situações que aparecem. William é chamado, então, à casa de Victor Ziegler. Ao chegar lá, jogando bilhar com seu médico, este diz que estava também na tal festa, na noite anterior. Ele não responde a nenhuma pergunta de William quanto aos participantes, nem de que se tratava aquilo. Só diz que tudo tinha sido feito para assustar William, coisa que parecia ter sido conseguida. Quanto à morte da mulher e o sumiço do pianista, estas eram apenas “coincidências”, que não tinham relevância. Ele só avisa que essa história não deveria continuar a ser mexida, pois havia gente muito poderosa envolvida, o que seria muito ruim para William.
Quando a noite chega, William avisa à Alice que voltará a sair, o que ela estranha, mas não chega a perguntar porquê. Ao sair de casa, ele a vê fazendo os deveres com a filha, usando óculos: uma imagem perfeita de boa mãe e esposa.
William tenta ligar para a filha de seu paciente que havia morrido. Porém, quem atende o telefone é o noivo. William desliga e vai, então, procurar pela prostituta da noite anterior. Ao chegar em sua casa, uma amiga o recebe e diz que a mulher tinha recebido a notícia de que estava com AIDS e por isso tinha ido embora. William fica assustado e feliz por não ter se envolvido sexualmente com ela.
Sem ter mais a possibilidade de trair concretamente Alice, portanto, sem ter mais nada para fazer na rua, William volta à sua casa. Quando entra em seu quarto, vê que a mulher está dormindo e a máscara usada na festa proibida "dorme" ao lado dela... Essa imagem é muito forte para ele que, começando a chorar, acorda a mulher dizendo que vai contar tudo!
Depois de feita a confissão, durante o dia, o casal vai a uma loja de brinquedos, junto à filha, para comprar os presentes de Natal. Alice está chocada com o que foi dito por ele e ele arrasado por ter "estremecido" a segurança de seu casamento, sendo que este poderia até se romper então. Mas, tanto o clima natalino, como o comprar Barbies para a filha, não permitem que uma decisão tão importante seja tomada. A proposta é continuar com o casamento. William se justifica dizendo que tudo não tinha passado de um sonho, que não poderia ser tão importante. Alice afirma, contrariamente, que os sonhos são muito importantes e significativos. Mas, como que tentando resolver concretamente os desejos enunciados por eles, propõem que transem realmente.
E, assim, termina o filme.
Numa primeira instância, poderíamos pensar que tal término insistiria em uma mensagem moralista quanto à instituição do casamento, ou seja, que este deve ser mantido apesar de não dar conta de realizar todos os sonhos individuais, sendo que os mesmos devem ser censurados para não abalar a estabilidade da relação. Porém, acredito que o filme revela o contrário: ele ressalta a importância do sonhar, a importância daquilo que desconhecemos em nós, nossas fantasias, nossas máscaras. Censuráveis seriam as tentativas confusas da consciência em colocar ordem e dar explicações para aquilo que ela própria desconhece, tentando controlar as situações, mas sempre de forma equivocada, sempre se perdendo pelos caminhos que ela acredita conhecer.
Todas as situações do filme parecem se dar em estados de consciência alterados. Inclusive o final, cuja a resolução parece coincidir com o modelo exemplar de família, mas que também poderia ser um outro "sonho": o de tranqüilidade e estabilidade. Talvez fosse a grande "viagem" de normalidade do casal: a fantasia de estarem podendo viver aquele momento único em que as coisas pareceriam voltar a se encaixar, pareceriam entrar nos eixos novamente, mas agora de forma alterada - nunca como uma recuperação exata do passado, trazendo um apagamento da história vivida, mas, como se eles tivessem tendo um outro momento de encontro, estando outra vez entregues ao destino, outra vez sonhando (talvez, novamente partilhando de um mesmo sonho), de olhos bem fechados...
2006-10-06 09:09:06
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answer #7
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answered by dannyporto2000 3
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