O medo da superpopulação levou o governo a criar regras severas -e quase sempre violentas- para regular o nascimento de crianças no país. Mesmo com o abrandamento provocado pelo corte de verbas da UNPF para a China, casais em áreas urbanas continuam podendo ter apenas um filho, e na maioria das regiões rurais as famílias podem tentar uma segunda criança, se a primeira for mulher.
A preferência por bebês do sexo masculino, especialmente na zona rural, tem uma explicação social. Casais idosos têm no filho homem sua única esperança de sobrevivência, pois quando estão velhos demais para trabalhar precisam ser sustentados pelos filhos. As mulheres, depois de casadas, são consideradas parte da família do marido, e por isso não têm como sustentar seus pais.
Na maior parte do país, aqueles que têm um segundo filho ilegalmente estão sujeitos a multas, esterilização e outras penalidades graves. Há relatos de famílias que tiveram suas casas destruídas ou incendiadas. Para evitar punições, muitos adotam a medida desesperada de abandonar seus filhos ilegais à própria sorte.
A maioria dos chineses reconhece a necessidade de manter a taxa de natalidade baixa, mas os métodos governamentais usados nas últimas duas décadas causaram tormentos e tragédias inenarráveis. "O que aconteceu desde a introdução da política de um único filho foi uma catástrofe nacional", diz Wu Hongli, uma auxiliar em grupos de mulheres em Xangai que executa trabalho de apoio em comunidades rurais. "Muitas famílias perderam os filhos e tiveram suas vidas destruídas."
Apesar de o abandono ser tão comum a ponto de chocar, diz Wu, muitos pais que têm um filho "fora do plano" ficam tão apavorados com o risco de serem pegos que, por desespero, chegam até a matar uma segunda criança. "Um pai jogou sua filha num poço, para que ninguém jamais soubesse de sua existência."
Cada região da China tem uma meta de "cota de nascimentos". Órgãos governamentais municipais e fábricas estatais nomeiam uma equipe feminina para acompanhar o ciclo menstrual de todas as mulheres. Antes de conceber um bebê, as mulheres precisam obter uma "autorização de nascimento"; as que não a obtêm ou as que já tiveram filho têm acompanhamento no uso de anticoncepcionais. Embora camisinhas e pílulas sejam oferecidas, a forma mais comum de controle é o DIU metálico; a colocação é feita em clínicas do governo e ele pode ser detectado por raio-X, garantindo-se assim que não sejam retirados sem autorização.
Oficialmente, o Estado sempre condenou o uso da força ou crueldade para garantir a execução das cotas. Mas, na prática, os funcionários do governo sentem-se pressionadas a atingir metas de baixas taxas de natalidade, e enfrentam vergonha e até a perda do cargo quando não alcançam seus objetivos, o que leva muitos a recorrer a táticas brutais. Funcionários públicos, ou "esquadrões do aborto", realizam ainda batidas na madrugada em casas de mulheres suspeitas de terem engravidado ilegalmente. Esses esquadrões arrastam as infratoras, levando-as presas e mantendo-as detidas até que se submetam a um aborto, mesmo quando já estão no sétimo ou oitavo mês de gravidez. Muitas vezes esse bebês nascem vivos, e há relatos de que foram mortos pelos próprios médicos com injeções letais ou por afogamento. Foram justamente essas as denúncias que chocaram o mundo e levaram o governo norte-americano a pressionar as autoridades chinesas para que isso deixasse de acontecer.
Gao Xiao Duan, uma ex-funcionária pública encarregada de controle populacional, que fugiu para os Estados Unidos há quatro anos, falou abertamente sobre os métodos empregados para acabar com gravidez ilegal. Descrevendo a si própria como um "monstro", relatou para um comitê do congresso norte-americano como ajudara médicos a injetar formaldeído letal em crânios de bebês durante abortos forçados. "O bebê tinha nascido vivo, tanto que sugava com os lábios e gesticulava", disse ela sobre um deles. "O médico injetava a substância letal na cabeça do bebê, a criança morria e era jogada no lixo."
Algumas mulheres grávidas tentam evitar ser pegas, escondendo-se. Mas ao voltarem, depois de darem à luz, podem encontrar suas casas queimadas ou constatar que seus familiares foram espancados. Em 2000, um homem em Changsha, na província de Hunan, morreu após ser torturado por funcionários de alto escalão pelo fato de ter se recusado a revelar o paradeiro da esposa grávida. Se os casais forem bem-sucedidos tendo um filho ilegal, enfrentam punição posteriormente, incluindo multas de aproximadamente 10.000 iuanes (US$ 1.500) -sete vezes mais do que a renda anual média de um camponês-, esterilização compulsória das mulheres e confisco de propriedade. As crianças nascidas desse modo não têm direito à escola, assistência médica e a outros benefícios sociais.
As meninas são de longe as maiores vítimas da pressão para limitar o tamanho da família. Atitudes feudais persistem na China rural, onde vivem 80% da população, e muitos camponeses acreditam que somente filhos homens podem dar continuidade à linhagem familiar. "Eles acreditam estar desonrando seus antepassados se não conseguirem produzir um herdeiro do sexo masculino", diz Wu Hongli, que faz trabalho de apoio em comunidades. "Embora a política de um único filho permita a muitos casais da área rural tentar outro bebê no caso de o primeiro ser menina, ter uma segunda mulher muitas vezes é visto como uma desgraça", diz Wu. Essas meninas indesejáveis são apelidadas de "larvas no arroz". No nordeste da China, um homem ficou tão atormentado ao ter uma segunda menina que asfixiou tanto essa quanto a primeira filha. Logo depois, foi preso. "É um pecado não ter um filho homem. Vou tentar novamente um menino quando sair da prisão", disse ele à polícia.
Nas cidades modernas da China, o desejo tradicional por um menino também existe. Mas, no meio rural, esse desejo aliado à política de um único filho está trazendo conseqüências sociais devastadoras. Segundo a Universidade de Beijing, para que a diferença entre o número de mulheres e o de homens nascidos de 1979 para cá fosse equilibrada, deveriam existir cerca de 17 milhões a mais de meninas na China. Dentro desse número de meninas que "desapareceram" estão computadas as que foram mortas ao nascer, as que foram vítimas do aborto seletivo e as que nunca foram registradas.
O aborto seletivo em relação ao sexo do bebê, apesar de proibido formalmente, é praticado com facilidade mediante uso de ultra-som e uma pequena propina para o médico. De acordo com estatísticas oficiais, 97,5% de todos os fetos abortados na China são femininos. A inexistência de registros de nascimentos de bebês do sexo feminino é um outro fator para o desequilíbrio entre a população masculina e a feminina. Acredita-se que muitos pais escondem suas filhas, ou vendem-nas para casais estéreis, tornando-as assim invisíveis para as autoridades.
O resultado é um desequilíbrio crônico nas populações feminina e masculina. Já acontece de milhões de chineses das áreas rurais não conseguirem encontrar uma esposa. Ouvem-se casos de moças que saem de suas vilas em busca de trabalho e são ludibriadas e drogadas por traficantes, para depois serem vendidas para homens solteiros nas províncias mais afastadas, onde nem sequer falam o mesmo dialeto. Esse desequilíbrio parece também caminhar para uma piora. Há dez anos, os registros de nascimento de meninos em relação ao de meninas era, em algumas regiões, de dois para um. Hoje, a taxa chega muitas vezes a seis homens para uma mulher.
Mesmo assim, o governo chinês continua comprometido com sua política do filho único. Wu Hongli desespera-se com essa situação. "É claro que população é um assunto sério", diz ela, "mas os direitos humanos também são". Ela também lamenta a apatia oficial no sentido de ensinar à população a igualdade de valor dos bebês do sexo feminino. "Programas educacionais tiveram grande sucesso em áreas rurais, mas ainda resta muito a fazer. Tantas tragédias são ignoradas todos os dias que me dá vontade de chorar".
Olhando a garotinha anônima, cuja breve vida terminou em uma calçada, é impossível não se sentir do mesmo jeito.
Tradução: Cláudia Strauch
2006-09-18 01:10:17
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answered by Klebao 4
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