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O Pântano, de Lucrecia Martel, na visão de um espectador

O tempo é impreciso. A época não é exata (parecem férias escolares, pois existem recorrentes menções à compra de materiais didáticos). O local é vago: em algum lugar no interior da Argentina, perto da fronteira com a Bolívia. Nesse cenário, a diretora Lucrecia Martel filma “O Pântano”, numa calorenta e angustiante atmosfera. E nada acontece ou flui nesse filme - mas é como se tudo estivesse insustentavelmente ruindo.



Mas essa imprecisão temporal e geográfica é proposital, pois serve para a grande metáfora do filme: a crise aguda vivida pela Argentina. E ademais, sabemos que metáforas são mais eficientes na medida que se abstêm de contextos muito explicativos.



O filme mostra o encontro de duas famílias numa antiga casa de campo. Nada parece fazer muito sentido em seus gestos e atos cotidianos - e parecem inexistir motivos para esse encontro. Apenas sabe-se que estão em férias; e parecem que estão em visita à sorumbática matriarca de uma das famílias. Essa convalesce de um acidente doméstico que lhe cortou a pele, deixando-lhe cicatrizes em todo o corpo. Eis uma aparente metáfora: são as marcas que ficarão no “corpo” da Argentina, após a crise econômica (o tombo?).



Os membros das famílias têm comportamentos excêntricos e ambíguos. É difícil nomeá-los (os membros) e defini-los (os comportamentos). Existe o marido da matriarca, sempre bêbado, em conduta circunspeta e inerte. Ele tivera uma amante em longínquo passado, que agora é amante de seu filho. Essa é sempre anunciada como uma iminente visita - mas isso nunca acontece... Isso, aliás, é recorrente nesse filme: a sensação de que alguma coisa vai acontecer. A menção a essa amante causa desconfortos, mas ninguém ousa dizer nada. É como se todos, sabendo desses amores clandestinos, não conseguissem nada dizer. Aqui se evidencia uma incomunicabilidade familiar. Isso fica claro no telefone da casa: sempre que toca custa a ser atendido. A crise fica insolúvel quando os que sofrem não a discutem, ou não buscam, entre eles, meios de superá-la.



Nas famílias existem muitas crianças e adolescentes, mas não sabemos bem quem são. Eles vivem ziguezagueando pela casa, bagunçando tudo. A casa em ruínas precisa de urgentes reformas, mas não parece existir ânimo para as restaurações necessárias. O calor gera lassidões. Em tudo urge conserto, mas todos ficam parados, como as águas podres e sujas da piscina e do próprio pântano. É a angústia de acompanhar a tragédia acontecendo, sem nada fazer para impedir (como a vaca afundando lentamente no pântano). É a situação da Argentina: atolada (sem trocadilho) em dívidas internacionais, absorta, e em ruína econômica - e nada podendo fazer! Ah! Um lembrete: economia, etimologicamente, significa algo como “administração da casa”. Nada mais apropriado, não?



Os empregados da casa, de fortes traços indígenas, sofrem também com tudo isso, pois ficarão desprovidos de trabalho - além de explicitamente insultados pelos patrões. Eles ficaram na situação de bodes expiatórios. Os argentinos não aceitam que sua situação esteja próxima à dos bolivianos, sempre tidos como inferiores e servis. É muito difícil ser pobre, para quem já foi rico. Pior que a crise é aceitá-la; é confrontar-se com o sentimento de terrível igualdade frente aos tidos como inferiores. E, vergonha máxima: ter de fazer pechincha até para comprar material escolar na Bolívia!



O filme causa mal-estar pelo seu clima tenso. E pelo seu ambiente caótico, escuro e de aparente claustrofobia. E isso num mundo que não mais se sustenta, que afunda devagar no pântano.

2006-08-29 14:26:53 · answer #1 · answered by Cigana 5 · 0 0

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