Olha a pesquisa que eu achei a respeito do assunto, que aliás muito me interessou: Obrigado pela questão.
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"Quem viveu e viu, ou mesmo, quem leu ou escutou a história da América Latina, depois da II Guerra Mundial, sabe que neste início do século XXI está acontecendo algo extraordinário neste continente: talvez uma ruptura revolucionária". (José Luís Fiori)
A citação acima, deste que é um dos mais respeitados intelectuais brasileiros, transborda um otimismo até exagerado com as recentes vitórias eleitorais das esquerdas em nossa região. Ela reforça a tese de que está em curso no continente um intenso e alentador processo de mudanças, que inquieta as elites dominantes e atordoa os setores de esquerda mais sectários. Com todas suas dubiedades, limitações e equívocos, nossa região vive uma experiência sui generis que pode contribuir para alterar a correlação de forças no mundo, evitando que o capitalismo conduza de vez a humanidade à barbárie ou, como já alertou o filósofo István Mészáros, ao seu próprio extermínio com a devastação do planeta, que "abrigaria somente as baratas".
Nas "veias abertas da América Latina", o escritor Eduardo Galeano retrata como as nossas nações sempre foram saqueadas e nossos povos, explorados e oprimidos. A razão da nossa miséria estrutural é histórica, decorrente da colonização espoliadora da Espanha e de Portugal, da expansão capitalista da Inglaterra e da hegemonia imperialista dos EUA. Já em meados do século XIX, com a racista Doutrina Monroe, o presidente ianque proclamou: "A América para os americanos". E seu assessor, Willian Evarts, adendou:
"Para os americanos, sim senhor, mas bem entendido, para os americanos do norte. Comecemos pelo nosso vizinho, o México, de quem já comemos um bocado em 1848. Tomemo-lo. A América Central virá depois, abrindo nosso apetite para quando chegar a vez da América do Sul. Olhando para o mapa, vemos que aquele continente tem a forma de um presunto. O Tio Sam é bom de garfo e há de devorar o presunto. Isto é fatal, é apenas uma questão de tempo". Pouco depois, outro presidente ianque, Robert Talf (1909-1913), voltaria a explicitar essa ambição expansionista: "Não está muito longe o dia em que o hemisfério será nosso em sua totalidade, como de direito já o é em virtude da superioridade da nossa raça".
Vários governos burgueses nacionalistas, que tentaram promover o desenvolvimento interno no rastro das idéias keyneisianas e nas brechas da bipolaridade, foram sabotados pela ação intervencionista dos EUA. Vargas no Brasil, Perón no Argentina, Cárdenas no México, entre outros. Após a II Guerra, o imperialismo orquestrou golpes para derrubar governos eleitos democraticamente - Guatemala, Brasil, Chile, Uruguai, Argentina. A intervenção direta na Guatemala resultou no assassinato de 200 mil pessoas; na Argentina, foram mortos ou desapareceram 35 mil patriotas; no Chile, há estimativas de 20 mil mortos. Ainda na fase da guerra fria, nos anos 80, Ronald Reagan financiou os esquadrões da morte em El Salvador, que assassinaram 75 mil pessoas, e os contra na Nicarágua, que bloquearam a jovem experiência sandinista.
Com o fim da guerra fria, a violência ficou por conta das políticas econômicas. Com os países da região estrangulados economicamente, o imperialismo impôs o seu Consenso de Washington. "Como parte da renegociação de suas dívidas externas, quase todos os estados adotaram um programa comum de políticas e reformas neoliberais que abriu, desregulou e privatizou as suas economias nacionais, ‘clonificando’ os governos neoliberais de Salinas, Andrés Perez, Menem, Cardoso e Fujimori", explica Fiori. Um tsunami arrasou o continente. Após a "década perdida" veio a "década maldita", nos anos 90, com as suas taxas declinantes de crescimento econômico e a explosão do desemprego e da informalidade. As nações foram escancaradas para os capitais estrangeiros, os estados foram privatizados e a vida foi mercantilizada.
A outrora orgulhosa Argentina sentiu as dores das "relações carnais" mantidas por Menem com os EUA, com o brutal aumento da miséria e da indigência nos principais centros urbanos. O Chile, o primeiro país a adotar o receituário neoliberal ainda na ditadura de Pinochet, foi brutalmente privatizado - hoje não há universidades públicas e a previdência privada exclui mais de 60% dos aposentados. A Bolívia teve suas riquezas minerais saqueadas. O petróleo da Venezuela foi apropriado por uma minoria consumista, parte dela residente em Miami. O Brasil, no fatídico reinado de FHC, regrediu em todos os terrenos - decaindo no ranking da economia mundial e tornando-se um dos recordistas em desemprego.
AVANÇO DA RESISTÊNCIA
Mas ao contrário do senso-comum, que alardeia a falsa imagem da índole pacífica, os latino-americanos nunca deixaram de lutar. No continente de Simón Bolívar, José Martí, Sandino, Tiradentes e tantos outros heróis nacionais e das revoluções no México, Bolívia e Cuba, o povo forjou as suas vias para lutar contra a ofensiva neoliberal e o "império do mal". Após um período de hegemonia deste "pensamento único", que atraiu inclusive parcelas da camada média e dos próprios trabalhadores e garantiu a reeleição em primeiro turno de vários capachos neoliberais, a resistência ganhou sustância e desbravou caminhos criativos para enfrentar a fase mais destrutiva e regressiva do capitalismo. As vitórias eleitorais da esquerda na atualidade são frutos deste acúmulo de forças, com suas virtudes e defeitos. Decorrem desta resistência popular!
Várias formas de luta foram usadas neste período. A luta armada, que espalhou guerrilhas rurais por quase todos os países no passado, hoje ainda persiste na Colômbia, onde as Farc dominam 40% do território. A ação militar, que produziu alguns feitos heróicos, já não é mais predominante na região. Há poucos dias, o próprio exército zapatista anunciou em Chiapas (México) a sua opção pela intervenção política. Diante da fúria neoliberal, os levantes populares ganharam destaque por seu caráter massivo e combativo - alguns inclusive com traços insurrecionais. Nos últimos seis anos, onze presidentes foram depostos na região em rebeliões na Bolívia, Peru, Equador, Argentina. Em decorrência da desestruturação do trabalho, que acuou o sindicalismo, novos movimentos sociais despertaram e adquiriram capacidade de mobilização popular.
Boa parte destas lutas acabou desaguando em disputas do terreno institucional-eleitoral, para desencanto de certas ONGs que pregam o distanciamento da ação política e mesmo para os apologistas do quimérico "mudar o mundo sem tomar o poder". Até os que negam a importância da luta institucional torceram, no íntimo, pela vitória de um líder camponês e indígena na Bolívia, como antes tinham se deslumbrado com o êxito de um líder operário no Brasil. O brutal desgaste do neoliberalismo produziu resultados eleitorais inéditos na região, com a vitória de forças oriundas dos movimentos sociais e da luta patriótica. A luta por soberania nacional, democracia e justiça social passou a ser hegemonizada por correntes mais à esquerda.
Este ciclo de vitórias teve início com Hugo Chávez, um militar rebelde que derrotou a oligarquia em 1998 e passou a estimular os processos eleitorais para consolidar a sua revolução bolivariana. Lula, o retirante nordestino e líder grevista preso na ditadura, foi eleito em 2002 num país estratégico para a região. Néstor Kirchner chegou à presidência em 2003, após o desastre neoliberal que radicalizou as demandas sociais. Na abertura da IV Cúpula das Américas, em dezembro, ele desabafou na cara do terrorista George Bush: "As políticas aplicadas na América Latina, sob liderança dos EUA, não só provocaram miséria e pobreza, mas também a instabilidade institucional na região". Na seqüência, em 2004, Tabaré Vásquez (Uruguai) derrotou o capacho ianque Jorge Batlle e desbancou o bipartidarismo que dominava o país há 174 anos.
Agora, no final de 2005, ocorreu a emblemática vitória do camponês Evo Morales. Ele venceu as eleições em primeiro turno; seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), fez maioria no Congresso; o seu ministério é composto por várias lideranças populares; e suas primeiras ações foram de crítica à ingerência dos EUA na Bolívia e de acordos com a Venezuela e Cuba. Mesmo a recente vitória de Michelle Bachelet, filha de um militar assassinado pelo ditador Pinochet, pode ser computada nesta guinada à esquerda na região. Apesar do seu partido, que se rotula de socialista, ser de centro e ter aplicado o receituário neoliberal no Chile, a exclusão social e a manutenção de resquícios do autoritarismo já forçaram a nova presidenta a defender a reversão das prioridades do Estado e uma reforma política democratizante.
Em 2006, essa tendência eleitoral progressista pode se fortalecer ainda mais na América Latina. No Peru, o militar nacionalista Ollanta Humala, que se proclama um seguidor de Chávez, já desponta com 25% das intenções de voto para o pleito de abril. No México, López Obrador, ex-prefeito da capital e dirigente da centro-esquerda, mantém folgada vantagem para a eleição de junho. Na Nicarágua, os sandinistas podem retornar ao poder, desta vez pela via eleitoral. No Equador, o movimento indígena, que sofreu duro baque com a traição de Lúcio Gutierrez, recobrou forças e pode surpreender outra vez. Na Venezuela, a direita oligárquica está fragilizada e dividida e tudo indica uma nova vitória arrasadora de Chávez em dezembro.
Nos dez pleitos presidenciais do ano, o maior enigma se dá no Brasil, onde a direita liberal-conservadora ganhou fôlego e a disputa promete ser das mais duras. Não é para menos que FHC e a diplomata ianque Carla Hills, integrantes de um grupo de consultoria nos EUA, já alertaram o presidente George W. Bush sobre os perigos da "esquerdização" do continente. Segundo recente artigo da BBC britânica, a eleição brasileira é a que gera maiores expectativas em Wall Street. "Em conversas com investidores, percebe-se a preferência por Geraldo Alckmin", o candidato do PSDB, informou uma agente do capital financeira. Os avanços no continente são visíveis, mas não devem nos embriagar; os obstáculos ainda são enormes!
REAÇÃO E ALTERNATIVA
O cenário ainda é muito pantanoso. Por um lado, porque o império não está parado. Num mundo unipolar, os EUA ainda contam com muito poder e dinheiro. Atolado no Iraque, hoje o seu calcanhar de Aquiles, o governo Bush não abandonou a ambição imperial no seu "quintal". Diante dos avanços da resistência, das vitórias das esquerdas e de algumas derrotas parciais, o imperialismo muda a sua tática. Com a "morte da Alca", decretada por Hugo Chávez na IV Cúpula das Américas em Mar Del Prata, os EUA investem hoje na assinatura de tratados bilaterais de "livre comércio" (TLCs), procurando isolar e asfixiar as nações rebeldes para, então, viabilizar o seu projeto de neocolonização totalizante da região.
Em julho passado, o governo ianque firmou o TLC com os cinco paises da América Central e a República Dominicana - o nefasto Cafta, na sigla em inglês. Antes, em 2003, já havia firmado o tratado com o Chile e agora ultimava as negociatas para um acordo bilateral com Uruguai, que o presidente Tabaré Vásquez prometeu anular, e com os países andinos - que também deve sofrer um baque com a vitória de Morales na Bolívia e a proximidade das eleições no Equador e no Peru. Além disso, os EUA têm feito de tudo para sabotar o Mercosul, estimulando as fissuras e a concorrência entre seus países membros. O recente veto à venda de aviões da Embraer para a Venezuela e o Irã evidencia o poder do imperialismo na região.
Além da mudança da tática econômico-comercial, os EUA também alteraram a sua estratégia militar. Sem contar com o sólido apoio das forças armadas locais, que no passado da "guerra fria" se compuseram com os EUA contra o bloco soviético, o governo ianque investe na instalação das suas próprias bases militares. Teme fenômenos como os de Chávez, Humala ou dos oficiais nacionalistas do Brasil - que chegaram até a propor um comunista para o Ministério da Defesa. Somente na nevrálgica região amazônica, já são mais de 20 bases, com tecnologia de ponta e milhares de soldados e consultores na Colômbia, Equador, Aruba. Agora, os EUA estenderam seus tentáculos militares no Paraguai, com o desembarque de 400 soldados na Tríplice Fronteira, região rica em água doce (Aqüífero Guarani) e estratégica para o controle do Cone Sul.
O cenário também é nebuloso porque as esquerdas políticas e sociais avançaram e obtiveram vitórias, mas não consolidaram seu poder. Não forjaram uma alternativa consistente ao modelo neoliberal e ainda não conseguiram transitar com solidez do neoliberalismo para um novo projeto de desenvolvimento que abra caminho ao socialismo. A atual fase do capitalismo devastou as economias locais, fragilizou os estados nacionais, desestruturou o proletariado e debilitou suas organizações. No reinado da "ditadura financeira", os governos ainda são reféns do capital e esbarram em obstáculos para garantir a sua soberania nacional, a integração regional, a ampliação da democracia e o enfrentamento da cruel dívida social. O caso do Brasil é emblemático, com a manutenção da política macroeconômica neoliberal que, inclusive, ofusca avanços em outros terrenos. Mesmo na Venezuela, experiência mais avançada da região, os percalços são visíveis.
Na busca da superação destes obstáculos, os governos progressistas da região têm apostado na integração latino-americana, com a constituição de um novo bloco de poder regional que ajude a peitar o "império do mal" e a alavancar o desenvolvimento. A mídia pouco fala deste esforço. No final de 2005, os países do Mercosul, já com o ingresso da Venezuela, aprovaram a criação do parlamento regional, a montagem do sistema energético integrado e a constituição de um banco de desenvolvimento. São passos significativos no rumo da integração política, e não apenas comercial, mas que devem aguçar a ira do imperialismo. Os avanços das esquerdas na região são alentadores, mas há ainda muitos entraves no seu caminho.
O futuro deste projeto libertador não está decidido. O Brasil, por seu peso geopolítico no continente e por sua política externa altiva, é estratégico no fortalecimento desta perspectiva. Um retorno da direita liberal-conversadora seria um desastre, não apenas para os brasileiros, mas para todos os latino-americanos. Não é para menos que Hugo Chávez tem enfatizado, pouco se importando com os rituais diplomáticos, que "se fosse brasileiro, eu votaria em Lula"; que Evo Morales veio ao Brasil após a confirmação da sua eleição e declarou que "Lula é meu irmão mais velho, é meu conselheiro"; e de que o próprio Kirchner, superando antigos preconceitos, tem aparecido tão sorridente com o presidente brasileiro. Eles têm mais dimensão da importância estratégica do governo Lula do que muitos setores principistas da esquerda brasileira.
* Exposição apresentada no 18º Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina, realizado em Niterói (RJ), em 15 de janeiro de 2006, e no curso nacional da União da Juventude Socialista, em 18 de janeiro.
* Jornalista, editor da revista Debate Sindical
2006-08-28 01:11:03
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answer #1
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answered by Anonymous
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