Ouniverso é surpreendente. Até onde alcançam as lentes do telescópio mais poderoso – o Hubble, que opera em órbita, a 300 quilômetros da Terra – as novidades não param de aparecer. Galáxias incontáveis e seus bilhões de astros (só a Via Láctea, a galáxia onde vivemos, tem 100 bilhões de estrelas). Buracos negros misteriosos, cuja força gravitacional devora até a luz. Corpos celestes situados a distâncias colossais, só vencidas pela luz, em sua viagem a 300 000 quilômetros por segundo, após 11 bilhões de anos. Nuvens de gases, asteróides flutuando a esmo. O universo visível é enorme, mas as equações dos físicos e cosmologistas não deixam dúvidas: o que vemos é só uma pequena amostra do cosmo, cerca de 5% de sua massa. A vastidão dos céus está preenchida fundamentalmente pela chamada matéria escura, espécie de fluido invisível que se esparrama pelo espaço, e pela energia escura, por enquanto só atestada pela matemática dos astrofísicos, com base em certos fenômenos no espaço intergalático.
"O universo é fantástico" diz o astrônomo inglês Martin Rees. "E talvez inexplicável", acrescenta o cientista. Diante de cenário tão grandioso, no entanto, é impossível calar a velha pergunta. De onde veio tudo isso? Em que útero ancestral todas as coisas foram geradas? Se você pensou em responder "do Big Bang", então está na hora de atualizar seus conhecimentos.
A teoria de que o universo teve início numa grande explosão (Big Bang, em inglês) foi formulada no início do século XX e, praticamente, arrefeceu a discussão milenar sobre se o cosmo teve um começo ou se existe desde sempre. Graças à descoberta de que as galáxias estão se afastando umas das outras, feita pelo americano Edwin Hubble em 1922, foi fácil rodar o "filme" ao contrário e deduzir que em algum instante do passado elas estiveram juntas, concentradas em um ponto de extrema densidade e altíssima temperatura, cuja explosão, até hoje, impulsiona os fragmentos em direção ao infinito. Mas esse modelo, aceito por quase 100% dos cientistas, é restrito e imperfeito. "O Big Bang se refere apenas à expansão a partir de um estado inicialmente denso e quente", alega o físico Alan Guth, do Instituto de Tecnologia de Massachussets, o MTI, nos Estados Unidos. "A teoria não diz o que explodiu, por que explodiu e o que acontecia antes dessa explosão".
O Big Bang é, na verdade, um raciocínio sobre o resultado da explosão. O modelo pressupõe que toda a matéria existente no universo já estava lá, no ponto singular do início, apenas muito comprimida e numa forma diferente do estado atual. Mas como e de onde surgiu essa substância primordial? Foi nessa lacuna que o próprio Guth, cientista premiado no ano passado com a medalha Benjamin Franklin em física - honraria que costuma preceder a concessão do Prêmio Nobel -, encontrou terreno para uma teoria revolucionária que pretende esclarecer a origem do que explodiu no bang.
De onde veio universo? A resposta de Guth é: do nada, do zero. As primeiras partículas teriam surgido de uma simples "flutuação de vácuo", processo de alteração de um campo elétrico que a física clássica desconhecia, mas que a mecânica quântica, nascida no século passado, acabou por revelar aos estudiosos da intimidade subatômica. Segundo essa conjetura – conhecida como teoria do universo inflacionário -, as partículas primordiais emergiram do vazio e, à semelhança da subida dos preços quando há inflação monetária, expandiram-se a uma velocidade espantosa em bilionésimos de segundo, formando assim a aglomeração que seria em seguida fragmentada na grande explosão. A teoria não contradiz nem substitui a do Big Bang. Completa-a. Na prática, fornece o início a partir do qual o modelo do bang pode continuar, uma das razões de sua larga aceitação entre físicos e cosmologistas.
DO VAZIO PARA O ESPAÇO-TEMPO
"A teoria de Guth resolve, de um só golpe, o mecanismo da criação e o balanço de energia no universo", diz o astrofísico Francisco Jablonski, do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais, o Inpe, em São José dos Campos (SP). "Além disso, abre caminho para novas reflexões científicas e filosóficas". Entre dezenas de hipóteses sobre o passado e o futuro do cosmo, em consideração no meio científico, esta é a formulação que melhor explicaria os dados recolhidos por telescópios e sondas espaciais nas últimas décadas.
Quando afirma que o universo nasceu do nada, Guth não quer dizer que a matéria tomou forma a partir de algo sem qualquer conteúdo. Para um físico quântico, o vazio é sempre alguma coisa. Trata-se de uma situação onde não há espaço e nem matéria, apenas energia de alta freqüência. Pelas leis da relatividade e da mecânica quântica, essa energia pode ser convertida em matéria sob condições incertas e incontroláveis, como é o caso da súbita variação de um campo elétrico ou flutuação de vácuo. E foi exatamente isso o que ocorreu, segundo a teoria, na circunstância que antecedeu o surgimento do universo, há cerca de 15 bilhões de anos. Em um mar de energia repleto de partículas virtuais, que precedeu o espaço e o tempo (pelo menos como os conhecemos), as primeiras partículas se materializaram provavelmente por meio de um "tunelamento quântico", processo no qual o colapso da onda energética suscita a formação de partículas, de matéria.
Teoricamente, qualquer coisa – até um elefante ou uma planeta – pode emergir de uma flutuação de vácuo. Os cálculos de probabilidade e os experimentos em aceleradores de partículas sugerem, no entanto, que apenas unidades subatômicas, extremamente pequenas, podem ser efetivamente geradas dessa forma e, ainda assim, por um tempo de vida também infinitesimal, em torno de 10-21 segundo. A situação se altera quando a matéria gerada é de um tipo especial dotado de gravidade negativa, uma força prevista na maioria das teorias da física moderna que, ao contrário da gravitação normal, expulsa em vez de atrair as partículas presentes em seu campo. Neste caso, ensina Guth, bastaria que se formasse um pedaço incrivelmente pequeno, de apenas um bilionésimo do tamanho de um próton (uma das partículas nucleares do átomo), para que a expansão acelerada da matéria tivesse início por conta de sua repulsão gravitacional interna. No cenário do nascimento do universo isso teria ocorrido no brevíssimo período entre 10-37 segundo e 10-34 segundo, tempo suficiente, porém, para que o pedaço inicial e ínfimo alcançasse o tamanho de uma bola de gude. A partir daí, a expansão prosseguiu em outro ritmo.
Este é o ponto zero detectável com os atuais recursos de dedução e experimentação científica, o que não significa, segundo Guth, a última palavra sobre o alfa da criação ou sequer o descarte da hipótese de que o universo não teve começo, sustentada no século passado, entre outros, por Albert Einstein. Mas esta é apenas uma parte da conjetura do cientista. A idéia chave da inflação, apoiada no conceito de gravidade negativa, deu margem a uma nova compreensão do mecanismo de criação de matéria, com impacto sobre todas as demais hipóteses cosmológicas.
A "FÁBRICA" DE MATÉRIA
"A teoria do Big Bang é limitada para justificar a massa estimada do universo e o seu equilíbrio térmico", diz Hugo Carneiro Reis, doutor em física de partículas da Universidade de Campinas (SP) e autor de um estudo sobre a produção de matéria no universo primordial. "Seria necessário um ajuste fino nas equações que demonstram a teoria, a fim de conciliá-la com o que é observado hoje no cosmo". Essa discordância, porém, é superada quando se leva em conta o modelo inflacionário que, segundo Hugo, explica a criação de matéria sem contrariar as leis da física.
A teoria de Guth afirma que, no universo primitivo, o material de gravidade repulsiva se expandiu sem perder densidade, gerando durante a inflação uma massa colossal de quarks, partículas ínfimas de carga elétrica inferior à de um elétron. À primeira vista parece que o fenômeno esbarra no princípio de conservação da energia, que pressupõe o equilíbrio da energia total em todas as transformações no mundo físico, mas não foi isso o que aconteceu. No processo inflacionário, a energia positiva da matéria foi contrabalançada pela energia negativa do campo gravitacional, de modo que a energia total foi sempre zero. Quando, enfim, o material de gravidade negativa começou a decair, diminuindo o ritmo da expansão, formou-se então a "sopa primordial" (gás a altíssima temperatura) apresentada como condição inicial na teoria do Big Bang.
Nesse momento, a 10-6 segundo da concepção do cosmo, ainda não existiam átomos e moléculas, apenas um plasma fervente constituído de elétrons, prótons, pósitrons, neutrinos e toda uma gama de partículas subatômicas polarizadas. A matéria ordinária só apareceria, conforme vários cosmologistas, cerca de 300 000 anos mais tarde, quando o universo já tinha esfriado o suficiente para permitir que elétrons livres se combinassem com núcleos atômicos e formassem o hidrogênio e o hélio que queimam no interior das estrelas. Foi então que, em diversas regiões, círculos de matéria escura ajudaram a comprimir enormes volumes dos dois gases, promovendo a formação dos astros. Mas as estrelas e galáxias que vemos hoje não são as mesmas daquele período remoto, diz o cosmologista Volker Bromm, do Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian em Cambridge (EUA). Os primeiros astros possuíam enorme massa, brilhavam intensamente, mas explodiram antes de completar 3 milhões de anos, o que acabou sendo fundamental para a continuidade da criação. Ao explodirem, as primeiras estrelas puderam impulsionar no espaço o gás condensado no seu entorno, além de espalhar átomos mais pesados que os de hidrogênio e hélio, facilitando assim o nascimento de uma segunda geração estelar. Quanto às primeiras galáxias, com menos astros que as atuais e mais próximas umas das outras, acabaram colidindo e se fundindo na formação dos grandes aglomerados de estrelas que conhecemos.
Martin Rees acha que sem essa interrupção na sequência da criação o cosmo não teria se consolidado da forma atual nem haveria as condições necessárias à vida. Se todo o gás inicial tivesse permanecido no interior das primeiras estrelas, a matéria prima dos corpos celestes teria sido consumida rapidamente e hoje o universo exibiria um conjunto de estrelas vermelhas, em declínio, reunidas em galáxias-anãs. Aglomerações como a Via Láctea, ricas em gás, seria uma exceção e não a regra.
Nas entranhas da natureza, afirma Rees, essa diferença em favor da vida aconteceu com uma surpreendente precisão matemática. Por exemplo: no processo de combustão das estrelas, quando o hidrogênio e o hélio se fundem, apenas 0.007 da massa do hélio é transformada em energia - e é exatamente esse número, segundo Rees, que garante a química da vida. Se ele fosse um pouquinho menor (0.006 em vez de 0.007) os dois prótons e dois neutrons que constituem o núcleo do átomo de hélio não se uniriam e o universo teria apenas hidrogênio. Em compensação, se o número fosse um pouquinho maior (0.008), a fusão seria tão rápida que nenhum átomo de hidrogênio teria sobrevivido a um evento como o Big Bang. Logo, a existência de sistemas solares e de seres vivos seria inviabilizada pela ausência de um ou outro dos dois elementos fundamentais do universo.
CRIAÇÃO PERMANENTE
O modelo inflacionário suscitou ilações que extrapolam o conceito tradicional de cosmo e reforçam teorias nada convencionais elaboradas a partir dos anos 30. Uma delas é a dos universos paralelos ou universos-bolsões, que operariam em outras dimensões de espaço e tempo, sendo, portanto, invisíveis aos nossos olhos e aos atuais sensores eletrônicos. "Tais universos paralelos seriam o resultado de defeitos topológicos devido à diversidade das variações de campo elétrico e níveis de inflação nos primeiros instantes do cosmo", diz Hugo. Seu número seria enorme, mas se torna ainda maior quando se considera a possibilidade de inflação eterna da matéria. Neste caso, segundo Guth, o material de gravidade repulsiva continuaria a crescer sem limite e sem fim, produzindo não apenas mais matéria, mas também uma sucessão infinita de universos. A história do cosmo neste cenário comportaria inúmeras versões, como propõe o físico Richard Feynman, e pode ou não ter começado com o nosso próprio universo. Há mesmo quem admite que o Big Bang pode ter sido provocado pela colisão de dois universos.
A expansão acelerada, enfim, projeta um quadro sombrio para o futuro remoto, quando as galáxias, afastadas umas das outras, se perderem num espaço empoeirado e gélido, com temperatura bem mais baixa que os atuais 273 graus negativos. Dos bilhões de galáxias observáveis atualmente, apenas duas continuarão sendo visíveis da Terra: a nossa Via Láctea e a de Andrômeda, a única que se move em nossa direção.
UMA TEORIA DE TUDO
São dezenas as teorias atuais destinadas a explicar a origem e a dinâmica do cosmo, e a cada descoberta dos observatórios astronômicos muitas ganham uma nova versão. O próprio modelo inflacionário de Guth deriva de deduções anteriores, como as do físico russo-americano Andrei Linde, da Universidade Stanford, que na década de 80 concebeu a existência de diferentes campos quânticos no universo anterior ao Big Bang. A segunda metade do século XX, no entanto, foi marcada pelo esforço de físicos e cosmologistas para chegarem a uma teoria unificada que reunisse elementos válidos dos modelos diversos e esclarecesse, finalmente, os enigmas do universo.
Um dos modelos cosmológicos mais conhecidos é o de Albert Einstein. O físico que elaborou a Teoria da Relatividade achava que o tempo deveria ser infinito em ambas as direções e, por isso, defendeu a hipótese de que o universo existe desde sempre. Segundo o matemático e doutor em cosmologia Stephen Hawking, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Einstein agiu assim por temer tropeçar em questões embaraçosas sobre a criação do universo fora do domínio da ciência, mas cálculos desenvolvidos por Hawking e seu colega Roger Penrose, com base no conceito de relatividade geral do próprio (que pressupõe a curvatura do espaço-tempo), levaram a outra conclusão. "O tempo precisaria ter um início no Big Bang", diz Hawking. "E um fim quando estrelas ou galáxias desmoronassem sob suas próprias gravidades para formar buracos negros."
O modelo de Einstein, ainda não descartado, conduz a um cenário de universo oscilante, que alternaria períodos de expansão, a partir de bangs, e de contração até à singularidade dos buracos negros – pontos em que a matéria retorna à condição de concentração, energia e temperatura infinitas. É algo que lembra a assertiva dos filósofos estóicos, na Grécia antiga, de que o mundo está destinado a ser destruído e reconstruído infinitamente. E também a noção de ciclos de destruição e construção das doutrinas místicas do Oriente, como o taoísmo e o hinduísmo. A questão é que a avaliação atual das radiações das estrelas, que sinalizam o afastamento acelerado das galáxias, sugere um universo de geometria plana, em processo de expansão eterna, o que fortalece outras hipóteses cosmológicas pelo menos por enquanto.
Quando a chamada teoria das supercordas foi elaborada, nos anos 80, imaginou-se que se alcançara, finalmente, uma Teoria de Tudo. O modelo propõe a existência de 11 dimensões (cordas), que envolveriam a existência de universos semelhantes e outros totalmente diversos do nosso, onde poderia haver inclusive mais de uma dimensão de tempo ou nenhuma estrela ou galáxia. A teoria, é bom lembrar, não descarta eventos como o Big Bang, apenas não os considera episódio de uma história única para o cosmo.
Hoje em dia, a esperança de se obter uma teoria unificada está representada, conforme Hawking, na Teoria M (m de matriz), que conecta cinco versões da teoria das cordas. "O que convenceu muita gente de que se deve levar a sério os modelos com dimensões extras é a rede relações inesperadas entre eles", diz Hawking. "Isso mostra que todos os modelos são aspectos diferentes da mesma teoria básica".
NO LIMITE DA CIÊNCIA
A cosmologia não é uma ciência estática e constantemente tem superado idéias que pareciam inabaláveis no passado, fato que se justifica, em parte, pelo próprio objeto de seu estudo – a imensidão do universo – e a limitação para testar em laboratório algumas de suas teorias. É na matemática dos cientistas que os modelos se afirmam, permanecendo à espera de sua confirmação algum dia por novas descobertas astronômicas ou provas experimentais em aceleradores de partículas. No momento, o limite da cosmologia é a flutuação de vácuo, citada nesta reportagem. Para entender o que existia antes dessa etapa, lembra Francisco Jablonski, seria preciso avançar mais no conhecimento da gravidade quântica. "A partir desse ponto só se pode especular fora do domínio da ciência", diz Hugo Reis.
No entanto, alguns físicos teóricos e matemáticos vêm tentando, nas últimas quatro décadas, romper essa barreira com hipóteses audaciosas que aproximam a física e a cosmologia das ilações filosóficas e religiosas (o conceito de formação de matéria por flutuação de vácuo, aliás, lembra o vazio dos budistas, o útero transcendental onde tudo é gerado e para onde tudo retorna). É o caso do físico americano John Archibald Wheeler, colega de Einstein e Niels Bohr e mentor de vários expoentes da moderna física, que cunhou a expressão "buraco negro". Aos 90 anos, Wheeler esforça-se para demonstrar que o universo é real, em parte, porque nós o observamos. Talvez o cosmo não exista quando não estamos olhando para ele.
Seus argumentos se baseiam nas leis (e em experiências de laboratório) da física quântica, as quais demonstram, por exemplo, que o comportamento e a trajetória de um elétron são sempre influenciados pelo observador. Num experimento, o elétron pode comportar-se como partícula ou como uma onda e seguir esse ou aquele caminho em sua viagem de um ponto a outro: o fator decisivo em qualquer das possibilidades será sempre o "olho" do experimentador. Ao contrário da física clássica, que traçou uma fronteira rígida entre objeto e sujeito, na mecânica quântica o universo parece emergir como um lugar extremamente interativo, pelo menos em seus níveis fundamentais.
A conjetura de Wheeler supõe um cosmo onde não apenas o futuro está indeterminado, mas também o passado. Assim, quando mergulhamos no tempo em busca de nossa origem – no Big Bang ou na flutuação primordial – seriam as nossas observações atuais que selecionam uma entre as muitas histórias quânticas possíveis para o universo. Wheeler, na verdade, não está só. Físicos renomados, como Andrei Linde, chegam a considerar que uma teoria de tudo não jamais será estabelecida com sucesso sem levar em conta a interação entre a realidade e o observador e mesmo a presença de uma consciência como fator de construção do universo. A aventura de decifrar o cosmo está longe de acabar e, talvez, nunca tenha fim.
2006-08-20 08:55:46
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