Ao contrário do que a maioria dos brasileiros pensa, nem todo argentino acha que Maradona foi o melhor jogador de todos os tempos. Muitos têm certeza que foi Di Stéfano, e Maradona, o segundo.
Também ao contrário do que a maioria dos brasileiros pensa, nem sempre a rivalidade foi a principal característica das relações entre Brasil e Argentina. Mesmo que atualmente os jornais estampem embates dos dois países em torno de tarifas alfandegárias e de partidas de futebol, Argentina e Brasil vivem, há décadas, um período em que a aproximação prevalece sobre a rivalidade.
Esse duplo - rivalidade e aproximação - é antigo: precisamos enxergar sua história, suas oscilações e mudanças. De saída, não custa lembrar que a colonização diferente (pelas metrópoles, pela forma, pelo tipo de economia) projetou rumos distintos para os dois países.
A Argentina, ao se tornar independente, era um país relativamente vazio, concentrado na pecuária e na produção de grãos. O Brasil passou a ser livre mantendo sua vocação agrária, com populações mais concentradas no nordeste e sudeste. Logo depois da Independência do Brasil em 1822, nosso país iniciou gradativa aproximação com os Estados Unidos, o que a médio prazo o colocou na esfera de influência norte-americana. Já a Argentina, após a independência e os conflitos de formação, estabeleceu vínculos profundos com a Inglaterra, que persistiram até a segunda metade do século XX.
Tantas diferenças poderiam apontar mais para o rumo da aproximação e da complementação econômica e política do que para as disputas. Por que então a rivalidade?
A primeira resposta vem do próprio processo de formação nacional do pós-independência. Enquanto a Argentina viveu a fragmentação territorial e política que caracterizou quase toda a América hispânica, o Brasil se manteve unido e emergiu como Estado com incrível rapidez. Claro que isso não significou a superação dos interesses locais ou de projetos nacionais contrapostos. Mas a construção do Império manteve abafadas as manifestações localistas, que só puderam se expressar, e de forma limitada, no fragilizado cenário do Período Regencial.
Ao contrário do Brasil, o Vice-Reino do Prata - principalmente na região que hoje corresponde à Argentina - se dividiu nas lutas de independência e permitiu o surgimento de chefes locais, os caudilhos, que a partir de 1816 dificultaram e retardaram a unificação nacional. O gigantesco Império brasileiro evidentemente assustava uma América hispânica dividida e instável. Simón Bolívar já notara o risco e propôs, como um dos objetivos da unidade americana, ter condições de impedir iniciativas expansionistas "do Império", que, no caso, era o Brasil.
E a disposição brasileira de alastrar seus domínios não era apenas uma fantasia terrível dos vizinhos. Basta lembrar que, no próprio 1816, o então Vice-Reino do Brasil aproveitou-se da desestruturação no Prata e ocupou a Banda Oriental, anexando-a ao território brasileiro como Província Cisplatina. O futuro Uruguai demoraria 12 anos para se libertar. E também não custa recordar: a autonomia uruguaia veio numa negociação que envolvia, além dos orientais e dos brasileiros, os interesses igualmente anexionistas de Buenos Aires.
No transcorrer do século XIX, as diferenças entre Brasil e Argentina se mantiveram. Enquanto no Prata argentino as lutas entre federalistas e unitários se prolongavam até o último quarto do século, o Segundo Império brasileiro interveio mais de uma vez na região, atacando o Uruguai ou contribuindo, em 1852, para a queda de Juan Manuel Rosas, caudilho de Buenos Aires. O auge das ações militares brasileiras na região, porém, aconteceu na Guerra do Paraguai (1864-1870). Iniciada pelo empenho bélico paraguaio, a guerra uniu circunstancialmente Brasil e Argentina contra Solano López (o Uruguai, terceiro pólo da Aliança, era à época fortemente influenciado pelo Brasil).
É curioso o saldo da guerra para os dois países. A Argentina, ainda que não estivesse totalmente unificada, foi quem mais se beneficiou. Enquanto o Brasil consumiu muitos recursos na guerra, precisando inclusive tomar empréstimos externos, a Argentina teve seu comércio e sua produção quase intocados pelo conflito, aproveitou as chances de enriquecimento que se abriam e ainda impulsionou sua unidade por meio da centralização militar e da oportunidade de reprimir os focos localistas que restavam.
Mas a guerra e seus frutos acenderam também tensões e cuidados entre os dois países. Domingo Faustino Sarmiento, presidente argentino, achou conveniente aproveitar a ocasião para reiterar o velho sonho de unidade platina, que andava em banho-maria desde 1816. Numa nota, observou ser uma boa hora para tentar levar adiante a fusão entre Argentina, Paraguai e Uruguai e "criar um Estado de língua castelhana, que responda ao Brasil pelos seus atos" (citado por Luiz Alberto Moniz Bandeira, em Conflito e integração na América do Sul, Revan, 2003).
Do lado de cá da fronteira, também não eram poucas as vozes que defendiam maior presença brasileira no Prata: influência política e investimentos na região poderiam compensar perdas da guerra e oferecer boa ocasião de desenvolvimento nacional. Estava montado o cenário da rivalidade. Era secundário, no caso, que as economias pudessem se complementar e tivessem interesse na parceria. O embate político prevalecia e construía o perfil de uma disputa pela hegemonia regional.
A virada do XIX para o XX guardava mais surpresas. Naquilo que Boris Fausto e Fernando Devoto (Brasil e Argentina. Um ensaio de história comparada (1850-2002), Editora 34) chamaram de "ziguezague" de crescimentos e estagnações dos dois países, a Argentina iniciou sua fase de alta. O mercado internacional se abriu para a carne e os grãos argentinos, ao mesmo tempo que uma burguesia sólida e consciente de seus objetivos moldava o Estado à sua imagem e semelhança e catapultava a economia nacional para que se tornasse uma das seis maiores do mundo. A produção cultural ganhava corpo e se alastrava numa incrível circulação de livros e de idéias, tornando o país predominantemente letrado e dotado de um sistema educacional público incomparável na América Latina. Ao Brasil restava a condição de vizinho com baixo consumo cultural e lento na ampliação da capacidade econômica.
O isolamento lingüístico do Brasil, em geral subestimado nas análises sobre relações e vínculos culturais, também não auxiliava qualquer integração cultural: eram poucos os intelectuais brasileiros que, por esses tempos, olhavam para a produção cultural da América hispânica e eram quase nulos os hispano-americanos, especialmente argentinos, que tinham noção do que ocorria no Brasil. Mesmo a óbvia relação entre as vanguardas lá e cá dos anos 1910-30 foi pouco notada na época. As consonâncias entre aspectos das obras literárias de Mário de Andrade e Jorge Luis Borges ou das pinturas de Ismael Neri e Xul Solar só foram destacadas décadas depois. Brasil e Argentina prosseguiam em seu paralelismo, que reproduzia menos a realidade de seus presentes e as possibilidades de seus futuros, e mais as ultrapassadas tensões políticas e os sonhos de grandeza da metade do XIX.
E foi exatamente no início da década de 1930 que os dois países inverteram as expectativas de crescimento. Após a fase de alta, a Argentina entrava numa longa fase de estagnação e declínio. No plano político, as instituições - que antes pareciam consolidadas - mostravam suas fissuras. Veio o golpe militar de 1930, que rompeu a ordem democrática e auxiliou a derrocada econômica, inclusive pela retomada do controle pelos setores conservadores. O Brasil, ao contrário, lançava-se com mais consistência à industrialização de base e iniciava um crescimento econômico que o levaria a suplantar a Argentina em alguns anos.
O processo político que as duas décadas seguintes imporiam, porém, provocaria o primeiro momento efetivo de articulação e integração entre os países. A despeito de suas diferenças, o varguismo e o peronismo inauguraram uma fase de aproximação entre Brasil e Argentina que praticamente não pararia mais. Finalmente, a rivalidade cedia lugar às iniciativas que percebiam a capacidade complementar das economias e a perspectiva de entrosamento político num mundo - o do pós-guerra - em que o tema da hegemonia regional ficava à margem. O contexto da Guerra Fria impunha outras prioridades. O conflito local perdia significado quando o eixo da disputa global estava na Europa do leste, no sul e no sudeste da Ásia ou, para usar um exemplo latino-americano, em Cuba. À Argentina e ao Brasil restava se articularem na posição internacionalmente secundária que a retórica nacionalista dos governos tentava desmentir.
Sucederam-se os impulsos desenvolvimentistas e as ditaduras militares. Acordos e auxílio estratégico entre os dois países se tornaram constantes. Mesmo em tempos sombrios, como o dos governos militares, a colaboração ocorreu: basta lembrarmos como os aparatos repressivos se auxiliaram em vários (e tristes) episódios da década de 1970.
O quadro de rivalidade, assim, foi dissolvido aos poucos, desde a década de 1930. E praticamente se encerrou, no plano político ou econômico geral, dos anos 1960 em diante. A colaboração sistemática que o substituiu chegou ao máximo com a criação, em 1991, do Mercosul, uma proposta de integração comercial e diluição de barreiras alfandegárias. Claro que os limites do acordo são claros, assim como a circulação cultural do sul para o norte do Prata, e vice-versa, é ainda insuficiente.
Se a rivalidade deixou, há tempos, de ser a marca central das relações entre os dois países, por que ainda se fala tanto nela? Mesmo pessoas que deveriam perceber a historicidade das relações Brasil-Argentina insistem em tomá-la como eterna e a-histórica. Um dos principais responsáveis pela política externa no atual governo brasileiro, por exemplo, escreveu há pouco tempo que a rivalidade entre os dois países sempre foi e é a principal característica de suas relações.
Talvez seja exatamente esse tipo de discurso oficial, de base nacionalista, que tende a atiçar a rivalidade no senso comum. Afinal, os sucessivos governos argentinos e brasileiros insistem no papel de proeminência que seus países teriam no cenário internacional, mesmo que a história mostre que a importância de ambos é, desde o final da Segunda Guerra Mundial, reduzida. Também a repetição da crença num futuro grandioso, ao sul e ao norte do Prata, faz com que suponhamos que em algum momento o embate decisivo terá de acontecer. O resultado disso é que persiste a idéia de que os dois países são separados por um abismo, que sua rivalidade é mais antiga que o bronze e nunca se encerrará, o que revela, em primeiro lugar, falta de conhecimento histórico de um embate que, na prática, durou menos de um século.
Fora isso, resta o futebol... Até porque esse é o único campo em que Brasil e Argentina são protagonistas e líderes internacionais. Afinal, das dezessete Copas já realizadas, os dois países ganharam sete. E poderiam ser nove, se a Segunda Guerra Mundial não tivesse impedido a realização das Copas de 42 e 46, em que a Argentina de Di Stéfano era a favorita. Aí a rivalidade faz sentido, seja na hora de prever quem será o próximo campeão mundial, seja na escolha do melhor jogador de todos os tempos - que, por sinal, foi Pelé.
2006-07-22 12:40:47
·
answer #2
·
answered by Mestre 2
·
3⤊
0⤋