Pio Lourenço Corrêa nasceu em Araraquara a 12 de maio de 1875 e morreu na mesma cidade a 12 de junho de 1957. Era filho do segundo casamento do comendador Joaquim Lourenço Corrêa (1811-1887) com Rita Maria ***** de Arruda, falecida um ano depois do marido. Órfão aos 12 anos, teve como tutor seu irmão Antonio Lourenço Corrêa, que o mandou para São Paulo a fim de fazer os estudos secundários pelo antigo regime dos *preparatórios*, que todavia não terminou. Em São Paulo foi morar na casa de seu padrinho, o dr. Joaquim de Almeida Leite Moraes, que havia sido advogado em Araraquara, de cuja Câmara Municipal foi presidente (que naquele tempo exercia também as funções executivas, hoje atribuídas aos prefeitos). O dr. Leite Moraes era homem culto, professor da Faculdade de Direito e teve grande influência no afilhado. O desejo deste era bacharelar-se em direito e entrar para a carreira diplomática. Mas a certa altura o tutor avisou que as somas herdadas do pai estavam acabando e ele deveria voltar a fim de cuidar da vida. Voltou então para Araraquara e, uma vez estabelecido, casou em 1898 com sua sobrinha Zulmira de Moraes Rocha, com quem não teve filhos.
Interrompidos a contragosto os estudos, nem por isso Pio Lourenço deixou os livros ou perdeu a paixão pelo saber. Grande leitor, muito dotado para as línguas e para a observação da natureza, tornou-se com os anos um homem de rara informação, senhor de uma bela biblioteca, na qual se destacavam as obras de zoologia e de estudos lingüísticos, inclusive uma extraordinária coleção de dicionários e enciclopédias. Intelectual desviado dos seus pendores pela necessidade de ganhar a vida, ele foi contudo, em toda a extensão do conceito, um homem de cultura.
Em Araraquara foi comerciante e por algum tempo banqueiro, mas sobretudo fazendeiro, dono da Fazenda São Francisco, que administrou com zelo quase científico. Durante certo período, uns anos antes e uns anos depois de 1910, foi sócio de uma casa comissária em Santos, onde passou a residir. Em 1911 fez para tratamento e recreio uma longa viagem à Europa com d. Zulmira, movimentando-se com facilidade graças ao seu notável conhecimento de línguas. Com efeito, falava, lia e escrevia corrente e corretamente espanhol, italiano, francês e inglês, sendo curioso que nesta última se exprimia com o forte sotaque da Escócia, de onde era originário o seu professor em Araraquara, Mister Ruxton.
Depois de sair da firma comissária em Santos viveu exclusivamente da fazenda. Na cidade de Araraquara tinha casa, que depois vendeu, e a chácara Sapucaia, hoje loteada dentro do perímetro urbano, na qual passou a morar exclusivamente. Além disso tinha um pesqueiro nas margens então límpidas do Mogi Guaçu e era também caçador apaixonado. Com o seu espírito metódico e autoritário, fundou e organizou o grupo dos *Conjurados*, constituído por amigos caçadores, que todos os anos passavam muitos dias no sertão, à busca sobretudo de macucos, já raros. O grupo era admiravelmente regulamentado por ele, com previsão meticulosa de tudo, desde a abertura de fossas no acampamento até os turnos de tocaia, a fim de que todos tivessem a sua oportunidade.
Lembro isso para dizer que o amor de Pio Lourenço à caça e à pesca estava ligado à vocação de naturalista. Tinha microscópio, estudava a flora e a fauna da sua região, anotando e chegando a classificar algumas espécies. Nisto foi estimulado por seu amigo dr. Olivério Mário de Oliveira *****, médico do Posto de Saúde local que fez mais tarde uma notável carreira científica como grande ornitologista, destacando-se na direção do Museu de Zoologia de São Paulo. A ele Pio Lourenço legou os seus livros científicos, repassados em parte para o Departamento de Zoologia da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Outro setor dos seus estudos foi a língua portuguesa, da qual se tornou conhecedor profundo, mantendo durante muitos anos nos periódicos de Araraquara, com o pseudônimo de Mota Coqueiro, uma secção de notas gramaticais intitulada *Fichas de linguagem*. A sua coleção de livros sobre a língua era muito boa, devendo-se notar que, pouco a pouco, ele foi passando da preocupação então predominante com a correção gramatical para o interesse de cunho propriamente lingüístico, afastando-se da mentalidade de tipo *consultório do idioma*. Na sua biblioteca entraram desde logo os escritos de tratadistas eminentes, como Meyer-Lübke; depois, muitos outros, como Ogden e Richards, tendo sido ele dos primeiros a sentirem aqui a importância da obra renovadora de Ferdinand de Sassure, que adquiriu assim que ela se tornou accessível no Brasil. A essa altura já bradava, com a energia que punha em todos os seus pronunciamentos: *Eu sou lingüista, não sou gramático!*
O amor pelo estudo da língua esteve sempre ligado à grande obsessão de sua vida: provar que *Araraquara* quer dizer *morada do sol*, não *cova das araras*. Foi o que aprendera em menino com o seu já velho pai, que era dotado de alguns conhecimentos de *língua geral*, ou *nheengatu*, ainda usada por sua mãe e amigas, no começo do século XIX, em Porto Feliz, onde nascera. E para provar que o pai tinha razão, construiu grande parte da sua vida intelectual em torno do nome de sua cidade, o que o levou a ir alargando aos poucos os interesses no rumo da lingüística, da história, da etnologia. A sua produção a respeito começou em 1924 com um artigo que mais tarde desenvolveu no opúsculo intitulado Monografia da palavra Araraquara (1936). Trabalhando sem cessar, elaborando um minucioso fichário, transformou o opúsculo em livro, publicado como 2a. edição em 1937. A 3ª. saiu em 1940 e a 4ª. em 1952.
É uma obra de grande interesse, escrita com linguagem corretíssima, em estilo meio guindado, mas vigoroso e expressivo. No afã de argumentar, Pio Lourenço ampliou a discussão sobre o tema central, refletindo a respeito de diversos problemas das línguas e chegando a dar elementos saborosos para o conhecimento da cultura tradicional paulista.
Além das *Fichas de linguagem* e da monografia, publicou trabalhos em revistas de São Paulo e foi autor do excelente Álbum de Araraquara, de 1915, verdadeiro modelo no gênero. O seu acervo de literatura e lingüística foi doado pela sua viúva à Biblioteca Mário de Andrade de Araraquara, onde se encontra com estatuto de coleção reservada, que tem o seu nome. Lá podem ser vistas algumas preciosidades, como primeiras edições de Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, além da mencionada coleção dos dicionários. Infelizmente, muita coisa interessante se dispersou no momento de sua doença e morte, sobretudo coleções raras de revistas.
Mas talvez a coisa mais relevante em Pio Lourenço Corrêa tenha sido o seu modo de ser, o toque diferente dos seus hábitos, da sua conduta, regidos por uma curiosa mistura de convencionalismo e originalidade. Tendo muito de excêntrico, ele o era sobretudo porque observava de maneira quase maníaca as normas, principalmente as que ele próprio estabelecia, com necessidade imperiosa de conformar o mundo à sua visão, marcada por inflexível coerência. De certo modo, nele a pessoa era superior aos escritos e estudos, porque ele era essa coisa rara: uma grande personalidade. Mas uma personalidade que não se fechava no egocentrismo e sabia aceitar e cumprir tarefas de interesse coletivo, como foram, entre outros casos, a sua atuação durante a febre amarela dos anos de 1890 ou na epidemia da chamada *gripe espanhola*, de 1918, sem esquecer uma atuação constante e desinteressada em instituições de assistência social e hospitalar, geralmente ao lado de seu irmão Antonio Lourenço. Ele foi desses homens notáveis que as circunstâncias e a própria opção confinam em fronteiras estreitas, mas não obstante sabem criar dentro delas uma preeminência real, que não vem do barulho publicitário, e sim do talento e da fibra humana.
Seu nome está na rua através da Lei nº 606, de 27 de novembro de 1957, que denomina Avenida Pio Lourenço Corrêa a via pública da sede do município anteriormente conhecida por *Avenida 38* da Vila Nice.
2006-06-29 12:57:47
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