A GLOBALIZAÇÃO E O BRASIL
A globalização (seus pressupostos, sua realidade, seus desdobramentos) tem sido, nesse contexto, apontada como o carrasco, disfarçado porém impiedoso, do inevitável declínio dos estados nacionais.
Se imagem é forte e a personificação descabida, não há como recusar o exame do fenômeno: para que se possa mais objetivamente confirmá-lo, qualificá-lo ou desautorizá-lo.
É o que se intentará a seguir, considerando, em particular, o caso brasileiro.
1. Globalização e ideologia
Conceituar e compreender o que seja globalização não é tarefa simples. O fenômeno – ou melhor, o processo – não se expressa de forma organizada, estruturada. Seu sujeito oculto, “o mercado”, é um ordenador invisível, com regras sem paternidade impostas pelas forças dos fatos, quase como se fossem leis da natureza (GORZ, p.25; DUNNING).
Os atores mais aparentes da mundialização são os grandes grupos econômicos transnacionais.
Eles vivem hoje dias de glória. São metamorfoses das multinacionais dos anos 60 e 70 (que se instalavam em outros países para atender a demandas internas quase sempre defendidas por fortes barreiras às importações).
Com a liberalização crescente dos mercados de bens, serviços e capitais – que as próprias transnacionais fomentam e de que são beneficiárias –, elas vêm se configurando como estratégias empresariais planetárias. Apoiam-se no domínio de tecnologias de ponta; em modelos informatizados de gestão, inclusive à distância; no acesso fácil aos mercados financeiro e de capitais; no apelo de marcas e nomes de prestígio, sustentadas por mídia igualmente globalizada. Pouco importa onde se situam seus quartéis e comandos (sequer há muito interesse em divulgá-los). De qualquer lugar, as transnacionais coordenam redes mundiais de fornecedores, plantas de montagem e cadeias de vendas, dispersas por vários países segundo critérios de localização e regionalização que livremente estabelecem.
Porém o agente talvez mais audaz (tão desejado quanto temido) da globalização é o capital financeiro, que alcança hoje cifras inauditas e se encontra no ápice de seu poder e brilho. Anônimo e desterritorializado, ele se desloca mercurialmente pelo mundo, movido pela telemática, em busca incessante de maiores interesses. A instantânea fluidez, o desimpedido movimento são vitais a sua existência e multiplicação. Por isso, em seu afã especulativo, ele rejeita regras, ignora fronteiras. Defende com unhas e dentes essa sua liberdade de circulação e escapole ante qualquer sinal de seu cerceamento. Volatiliza-se quando pressente por perto riscos maiores. Migra célere para as plagas mais longínquas se vislumbra nelas melhores oportunidades de lucro.
A presente etapa de globalização do capitalismo de mercado fortalece e promove o ideário liberal. Converteu, porém, o liberalismo em poderosa ideologia, ainda difusa mas de grande força impositiva: com sistema de signos, códigos comunicativos, retórica próprios (ECO, p.82-94).
Sua maior implicação política é a emergência de uma nova relação de forças que vem favorecendo o capital mundializado em detrimento do poder dos estados nacionais.
2. O Estado nacional e a globalização
Os estados-nações, ao contrário do mercado e suas personagens mundializadas, sempre foram atores expostos em cena aberta. As sedes de seus governos estão em todos os mapas. Eles se exteriorizam em sua plenitude, identificam-se espetaculosamente, são pessoas inteiras de direito público, senhores armados de seus defendidos territórios.
Crescentemente numerosos, os estados-nacionais do Ocidente impuseram-se pouco a pouco (no caso brasileiro, em especial a partir dos anos 30) em todos os domínios. Legislaram sobre tudo. Avançaram sobre o mercado, regulamentando, protegendo, arbitrando, incentivando, financiando, planejando. Enveredaram pelas atividades econômicas, encampando serviços de utilidade pública privados, instalando indústrias e criando bancos, detendo parcelas significativas do capital, material e financeiro. Expandiram-se ainda, providencialmente, sobre a sociedade civil, garantindo direitos e benefícios, buscando substituir seus próprios institutos e instâncias, ou a eles sobrepor-se. Invadiram inclusive as esferas da intimidade – a família, o mundo vivido –, intentando controlá-las, pautá-las, colonizá-las (HABERMAS, v.2, p.332-73).
As crises que os estados nacionais passaram a vivenciar são resultantes dessa hiperexpansão – configurada na Europa mais na forma do Estado social embora sendo ainda Estado empresário; no Brasil (e, em geral, na América Latina), mais no molde do Estado empresário procurando tornar-se também Estado social.
Na Europa, percebeu-se a crise mais como de governabilidade. Detendo em geral quase a metade dos PIBs de seus países, os estados do Ocidente europeu se tornaram responsáveis por quase tudo. Colocaram-se, assim, frontalmente na linha de fogo de demandas sociais crescentes e conflituosas, revelando-se mais e mais incapacitados para filtrá-las, arbitrá-las, financiá-las, atendê-las. Sua vulnerabilidade tornou-se função de sua própria, extensiva presença, originando questionamentos e contestações, inclusive de natureza institucional (POMBENI, p.112-24; GORZ, p.25).
No Brasil, a crise foi a princípio de legitimidade de regime autoritário e centralizado e de gigantismo estatal. Evoluiu, contudo, no bojo do processo de democratização, para exacerbação extemporânea do nacionalismo econômico e hiperextensão do Estado: na Constituição de 1988, viu-se o mercado interno como “patrimônio nacional”, protegeu-se a “empresa brasileira de capital nacional”,6 sancionou-se o Estado empresário. E se avançou formalmente em direção a Estado social de corte europeu. É, assim, compreensível que, embora legitimado politicamente, o Estado logo tenha mergulhado em crise de governança: de viabilidade financeira, capacidade administrativa, qualificação gerencial.
Só bem mais tarde (em fins da década passada) é que se percebeu mais amplamente no país que os paradigmas de capitalismo de mercado e de Estado já estavam sendo configurados pela lógica econômica e pelo receituário político ancorados na globalização. O Estado no Brasil passou então a vivenciar crise de natureza existencial, refletindo sua inadequação aos signos, códigos e retórica da ideologia mundialmente dominante e desencadeando a busca de uma mais atualizada e consentânea modelagem institucional (ALBUQUERQUE, 1995, p.141-4).
Ora, esse modelo podia ser facilmente acessado – e sem maiores custos. Estava impresso nos códigos e sendo anunciado pela retórica da ideologia da globalização. E já vinha sendo aplicadamente copiado por outros países.
Seu princípio fundador é simples e circunstacialmente convincente: postula menos Estado e mais mercado na organização da economia e da sociedade. Ou seja, trata-se de substituir, o quanto possível, um ordenador e gestor econômico-social demasiado explícito, pesadamente burocrático, voluntarista, pouco eficiente e em crise por outro, invisível, descomplicado, impessoal, de maior eficácia e mundialmente triunfante.
Essa substituição, com efeito, passou, em larga medida, a ser defendida e realizada no Brasil dos últimos anos. Através da desregulamentação econômica e social, na verdade conduzida anteriormente à presente década e nem sempre muito efetiva. Da ampla e abrupta liberalização comercial de 1990, mantida até hoje, embora com retoques e ajustes. Da flexibilização do mercado de trabalho, apenas iniciada, e da pregação pela liberdade de sindicalização. E principalmente mediante a desestatização em grande escala, realizada ou agendada, pela qual o Estado já privatizou o controle de quase todo o capital estatal aplicado em atividades diretamente produtivas e vem concedendo à iniciativa privada, nacional ou estrangeira, a exploração de serviços públicos (em energia, transportes, comunicações) e a gestão do patrimônio que lhes corresponde.
Observe-se, a propósito, que desregulamentação e desestatização são signos, conotativamente negativos, que, no código comunicacional da ideologia da globalização, já contêm, implícita, a afirmação de que o Estado se tornou excessivo. Liberalização e privatização, léxicos de valoração positiva, traduzem mensagens que apontam, subliminarmente, o mercado como a solução.
Liberalização, por sua vez, envolve inserção, passiva e ativa, na economia mundializada. Ou seja, significa tanto a abertura do mercado interno às importações quanto o crescimento das exportações (se viável). E também a livre e indiscriminada movimentação do capital transnacional e de seus resultados: para dentro e para fora do país. A alternativa apontada para a inserção é o isolamento, o atraso, a exclusão.
Pelo menos dois corolários se deduzem desse princípio angular da ideologia da globalização. Eles visam a criar, no âmbito de cada estado nacional, um ambiente propício à aplicação do capital, sob suas várias formas. Segui-los é visto como imperativo.
O primeiro deles recomenda aos estados nacionais rigorosa disciplina macroeconômica: estabilidade de preços e de regras, comerciais, fiscais, financeiras, cambiais; e equilíbrio das contas públicas e externas. Há parâmetros mundialmente reconhecidos para medir os resultados alcançados pelos governos nessa empreitada, que determinam o grau de confiança da comunidade financeira transnacional e, não menos importante, os humores de organismos multilaterais (como o FMI, a OMC e o Banco Mundial) em relação a cada país. E há também medidas engatilhadas para os casos de mau comportamento. Uma delas é a sanção representada por ataque especulativo. Uma outra, mais paciente e programada, traduz-se no remédio (geralmente ministrado sob a coordenação do FMI) cuja bula contempla ajuste macroeconômico, em geral amargo e minudentemente monitorado por aquele organismo.
O segundo corolário postula das economias nacionais elevados padrões de eficiência e competitividade sistêmica. Naquelas que ainda não os alcançaram, deve caber aos governos a criação e manutenção dos requisitos para tanto necessários. Isto geralmente envolve um vasto conjunto, variável caso a caso, de medidas de política pública, a ser executadas com eficiência e preferentemente pela iniciativa privada. Elas em geral incluem: a expansão e modernização da infra-estrutura econômica (transportes, energia, comunicações) e dos serviços urbanos; a melhoria dos sistemas de saúde, educação, qualificação e ciência e a tecnologia; ônus tributários e encargos sociais os mais baixos possíveis; mercados financeiro e de capital sólidos e eficientes; ordem e segurança pública; estabilidade política e avanço da democracia; seriedade na gestão dos negócios públicos. Naturalmente, os países que apresentem, nessas áreas, níveis elevados de desempenho, atuais e potenciais, exibem as precondições de atração do capital transnacional – sendo evidente que tudo isto, a despeito de importante, não lhe é suficiente, pois a motivação maior que preside seus movimentos é o ganho.
Uma avaliação realista desse paradigma de reinstitucionalização do Estado, se deve advertir para seus riscos, não pode obscurecer as oportunidades que podem resultar de sua adoção.
Reconheça-se de início que, se ele cria condições propícias ao emprego e multiplicação do capital (qualquer capital, inclusive o nacional, se é que essa qualificação ainda faz sentido), também pode favorecer o dinamismo do mercado interno e a prosperidade dos negócios, em especial no contexto de economia mundial em expansão.
Ademais, poucos discordariam hoje da maior parte das medidas derivadas dos dois corolários há pouco explicitados. Os objetivos a que elas visam são ambicionados por todos os estados-nações – e vêm sendo naturalmente perseguidos pelo Brasil. Eles correspondem a um projeto (liberal, sem dúvida) de modernidade.
As questões mais suscetíveis de controvérsia parecem residir, assim, no núcleo duro da ideologia da globalização.
É improvável que sua pregação por mais mercado e menos Estado resulte na insensatez do Estado mínimo, espantalho de que se valem os que combatem o ideário liberal moderno. Ela contém, entretanto, clara opção pela eficiência obtida pelos mecanismos do mercado, o que poderia dificultar a busca da eqüidade mediante ações de governo, crucial em países que, a exemplo do Brasil, apresentam grandes disparidades sociais e regionais. Porém, mesmo com relação a esse velho trade-off, emerge hoje nova compreensão, uma maior dose de eqüidade sendo crescentemente vista como necessária à expansão do próprio mercado, ao equilíbrio do desenvolvimento e à paz social. Ou seja, dentro de certos limites, eficiência e eqüidade são tidas como complementares, havendo, assim, uma boa margem para políticas sociais e regionais públicas voltadas para a redução de desigualdades – mantidos, evidentemente, os equilíbrios interno e externo da economia e a austeridade fiscal do governo.
Finalmente, o conflito entre a soberania dos estados nacionais e os mandamentos da globalização precisaria ser melhor situado e qualificado, quer por um olhar, mesmo ligeiro, sobre o passado, quer à luz de alguns fatos contemporâneos.
A experiência histórica revela, com efeito, que países de menor poder e estatura estratégica como o Brasil quase sempre se conformaram, no comércio, no câmbio, nas finanças, à ordem internacional, seja até 1914, durante a centenária Pax Britannica; seja entre 1944 e 1976, durante a mais breve Pax Americana, lastreada no Sistema de Bretton Woods, de que resultou a criação do FMI. No interegno entre as duas hegemonias (1914-1944), os estados nacionais impuseram-se soberanos sobre as normas internacionais: num primeiro momento, devido a exigências da economia de guerra; depois na onda de nacionalismo econômico, estatização e autoritarismo que varreu o mundo. Os resultados a que se chegou – inflação, depressão, fragmentação do sistema monetário internacional, anarquia econômica e um segundo conflito armado de dimensão plenetária – não foram nada animadores. Nos anos 70, suspensa a convertibilidade do dólar, adotadas as taxas flexíveis de câmbio, geridas por cada governo, novamente a autonomia dos estados-nações pareceu triunfar sobre ordenamento internacional que, àquela altura, somente poderia resultar de pactuada e pluralista cooperação entre os mais importantes deles. Cada um, porém, seguiu o seu próprio caminho: promovendo o crescimento e o bem-estar, expandindo exportações e contendo importações, inclusive mediante desvalorizações competitivas e forte protecionismo. Poucos esperavam que, em mercado mundial desregulamentado mas crescentemente interdependente, emergisse uma nova força, o capital transnacionalizado, capaz de ditar suas próprias regras (GILPIN, p.118-170).
As crises econômicas recentes – do México, da Ásia, da Rússia, do Brasil – revelaram o poder destrutivo do capital financeiro quando liberto de quaisquer controles.
Não importa aqui indagar as causas dessas crises, que são variadas. Cabe é constatar que os movimentos abruptos de capital nelas atuaram como fator cumulativamente desestabilizador, aprofundando-as, ampliando-as para outros países, comprometendo o próprio desempenho da economia mundial.
Se elas apontam para a necessidade de ordem econômico-financeira internacional mais regulamentada e estável, sabe-se que esta não é tarefa fácil ou de resultados imediatos. E que seu êxito depende da ação concertada e conjunta dos estados nacionais, que, malgrado desafiados, continuam detendo poder político, com os mais importantes deles guardando grande força e influência internacionais.
Em lugar de estribar-se em uma potência hegemônica, uma economia internacional financeiramente mais estável deve assentar-se no pluralismo, envolvendo a cooperação entre os estados-nações, a começar pelos mais relevantes (McKIBBIN & SACHS). Nessa tarefa, não se pode descurar a coordenação de políticas macroeconômicas. Nem ignorar a realidade dos blocos macrorregionais, atuais (União Européia, Nafta, Mercosul) ou em gestação (Alca, Bloco do Pacífico) – que são, lembre-se, uma iniciativa política dos estados atuando em defesa de seus interesses nacionais – e não, como a globalização, um produto despersonalizado do mercado.
3. Capitalismo e Estado no Brasil
Além de serem ainda sujeitos internacionais importantes e ativos, os estados nacionais dispõem, portanto, de graus de liberdade suficientes definir novas institucionalidades em consonância com a forma de capitalismo que vier a orientar a organização de suas economias.
Passe esse efeito, é mais do que pertinente perguntar que tipo de capitalismo de mercado está em implantação no Brasil. Pois, note-se, não é suficiente afirmar a vitória da economia de mercado sobre a de comando. É necessário indagar que modelo de capitalismo vem se impondo, triunfante, com a globalização, em que medida o país está evoluindo para implantá-lo e se realmente deve, sem maior reflexão, seguir nessa direção.
O processo de mundialização da economia está pondo em confronto os dois arquétipos de capitalismo de mercado hoje mais relevantes: o anglo-saxão e o germânico (PRODI, p.12-20).
O capitalismo anglo-saxão (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Austrália), apoiado em mercado de capital eficiente, ágil, pulverizado, capaz de refletir rapidamente as mutações dos valores econômicos, é fortemente concorrencial e incorpora plenamente o liberalismo. A propriedade do capital está disseminada por milhões de acionistas privados, anônimos, desinteressados da gestão cotidiana das empresas, que é confiada a executivos profissionais (os CEOs, chief executive officers). Suas ações são vistas como um bem como qualquer outro, sendo constantemente compradas e vendidas aos preços de mercado e passíveis de aquisição por quem quer que detenha capital financeiro, nacional ou estrangeiro.
O capitalismo germânico (Alemanha e norte da Europa, transportado desde o século passado ao Japão), também chamado renano (ALBERT), é controlado por pools de acionistas em geral formados e liderados por um grande banco (no Japão por um keiretsu7). Eles têm presença ativa na gestão das empresas e mantêm intensas relações com o Estado, obtendo dele continuado apoio e beneficiando-se de políticas industriais e comerciais públicas. Tornam-se assim mais resistentes a desnacionalizações e são capazes de liderar fusões e alianças estratégicas e negociais.
A intensa interação entre essas duas escolas do capitalismo no âmbito da globalização evidenciou suas marcadas diferenças, apontando a necessidade de harmonização (PRODI, p.19). Contudo, o capitalismo anglo-saxônio, aberto e flexível, confiando mais no mecanismo decisório do mercado, guarda maior consistência com a ideologia e a práxis financeira atuais da globalização. E os desdobramentos recentes da conjuntura mundial sugerem, ademais, que o paradigma mundial de capitalismo terá semblante mais anglo-saxônio do que teuto-nipônico.
Com respeito ao Brasil, está hoje evidente que o capitalismo brasileiro não mais se apóia no tripé, tão decantado nos anos 70, constituído pelo capital estatal, o capital privado nacional e o capital estrangeiro. Sua primeira perna está sendo amputada na cirurgia da privatização. E a segunda, a iniciativa privada nacional, se ainda remanesce nas figuras de alguns capitães de indústria que simbolizam o velho capitalismo de propriedade familiar, vem se implicando, através de parcerias geralmente desiguais, com o capital transnacional, além de estar sendo muitas vezes compelida a ceder-lhe o controle dos negócios.
Esses fatos afastam o Brasil de um outro modelo, não-alinhado e trifronte, de capitalismo misto, que se poderia chamar de latino: ainda remanescente, embora visto como anacrônico, na França, Itália e Espanha, mas que vem sendo claramente rejeitado na América hispânica (Argentina, Chile, México). E sugerem que o país estaria tentando caminhar em direção ao paradigma anglo-saxão.
Porém a simples adoção, pelo Brasil, desse modelo não estaria inume a turbulências. A estreiteza de seus mercados financeiro e de capitais; o porte ainda modesto dos grupos empresariais privados do país, muitos ainda familiares, nenhum deles realmente global; e a virtual ausência, implicada no paradigma, de proteção estatal e de políticas industriais ativas estariam entre os fatores de vulnerabilidade que poderiam determinar grau indesejável de desnacionalização patrimonial (se é que essa possibilidade ainda preocupa), além dificultar uma inserção mais autônoma e dinâmica da economia no mercado mundial.
Por outro lado, vislumbra-se, no processo de desestatização, a emergência de consórcios empresariais formados por bancos, fundos de pensão e líderes industriais brasileiros (com, ou sem, participação estrangeira). O que estaria sendo visto como positivo e envolvendo a adoção formas de controle patrimonial e de gestão de negócios aparentadas às germânicas.
Não se pode, entretanto, concluir que o país esteja conscientemente adotando modelo híbrido, com as virtudes (e sem as fraquezas) dos dois paradigmas, ou seja, flexível como o capitalismo anglo-saxônio mas resistente como o renano.
Não há ainda, no Brasil, um projeto definido, claro, próprio, que seja do conhecimento da sociedade. Tudo parece estar sendo conduzido ao sabor do martelo, sem que se possa saber ao certo onde se quer ou vai chegar.
Esta opção só se justifica se se tem como certo que a propriedade do capital e o poder decisório e de negociação nela implicado não são relevantes para o desenvolvimento nacional.
No entanto, admitindo-se que o Brasil afinal caminhe para adotar uma forma híbrida de organização econômica apoiada na convivência dos dois arquétipos de capitalismo de mercado hoje em confronto, o Estado nacional, reconstruído, deveria, em decorrência, assumir feição, também bifronte, afiliada ao social-liberalismo. Ou seja, constituiria, ele também, uma mescla do Estado liberal norte-americano e do Estado social alemão, podados os inconvenientes (e excessos) de ambos.
Ele seria, em síntese, um Estado de ações estratégicas, tanto no social quanto no econômico. Assegurador de direitos sociais e promotor do crescimento e do desenvolvimento. Porém abstendo-se de produzir diretamente bens e serviços, inclusive, sempre que possível, nas áreas sociais (educação, saúde, previdência).
Não seria um Estado evacuado de sua substância política, pois se incumbiria de formular, propor e coordenar projeto nacional incorporando visão consistente e amplamente compartilhada do futuro do país.
Essa concepção estratégica, quando bem executada, poderia contrapor-se a forças supranacionais com propensão para fragilizar seu organismo político, além reduzir os riscos de fragmentação da economia e o esgarçamento da sociedade.
Nesse contexto, a reforma e reestruturação do aparelho estatal não podem contentar-se apenas com os objetivos de eficiência e competitividade, mas devem incorporar também, explicitamente, os de eqüidade. Deveriam, ademais, situar-se dentro da moldura cultural que conformou historicamente a institucionalização política nacional, constituindo-se antes uma evolução do que uma ruptura com o passado.
Essa matriz cultural, calibrada pelas transformações econômico-sociais em curso e as tendências globais portadoras de futuro, deve orientar o estabelecimento dos graus de coordenação, regulamentação, regulação e incentivo das atividades geridas pelo mercado; a concepção e execução de políticas ordenamento espacial, tanto regionais quanto urbanas, voltadas para reduzir os hiatos inter-regionais de competitividade; a redefinição das políticas sociais, envolvendo especialmente: novos direitos sociais e nova previdência social, atentos ao fato de que o emprego formal já não é (nem provavelmente será) a forma dominante de inserção econômica e de geração de renda; novo modelo para a educação e qualificação voltado para a igualação de oportunidades e a redução da pobreza; e novos mecanismos e instrumentos de inserção produtiva da população ativa e de proteção ao trabalho.
2006-06-17 03:27:30
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answer #1
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answered by Anonymous
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